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A angústia nas megalópoles: resenha da retrospectiva de Giselle Beiguelman

Tobi Maier Publicado em: 16 de setembro de 2016
Giselle Beiguelman, Paisagens ruidosas

Giselle Beiguelman, Paisagens ruidosas, 2013-16

Andando pelo centro da cidade de São Paulo a caminho da Caixa Cultural, ouço o barulho do trânsito da megalópole, das músicas e dos gritos que nela ecoam. Ao adentrar a exposição Cinema lascado, de Giselle Beiguelman, no prédio na praça da Sé, dou de cara com As paisagens ruidosas (2013-16) – um convite para enfrentar as paisagens urbanas, como a artista e o curador Eder Chiodetto colocam no texto de apresentação. A obra é uma série de dez imagens captadas e editadas pelo celular e impressas a jato de tinta. Um comentário sobre a abundância das imagens produzidas e distribuídas por todos nós através de smartphones e mídias sociais, a exposição busca compreender a cultura de imagens contemporâneas produzidas pela câmera do celular na cidade.

Giselle Beiguelman, CGH-SDU (still), 2015

Giselle Beiguelman, CGH-SDU (still), 2015

O espaço expositivo é escurecido com adesivo preto nos vidros, e as paredes foram pintadas de cinza, gerando um contraste maior com as obras fotográficas e em vídeo. Sigo meu percurso e percebo que a obra Paisagem ruidosa CGH-SDU [ode à mínima informação] não está funcionando, isto é, a ponte-área Congonhas–Santos Dumont está fora do ar. Peço a um fiscal para ligar a obra, e como resposta sou instado a depositar minha bolsa no guarda-volumes. Volto para a sala e fico sentado num banco olhando para a tela preta desligada, pendurada entre ampliações fotográficas em cores predominantemente vermelhas e verdes. De alguma forma, estas obras me lembram as telas impressas de Wade Guyton, que também, embora em preto e branco, experimenta com os resultados formais entre a tela produzida para pintura e a impressora jato de tinta.

Gisele Beiguelman, da série Deserto rosso, 2016

Giselle Beiguelman, da série Deserto rosso, 2016

Uma série inédita e intitulada Deserto Rosso (2016), concebida como homenagem ao cineasta Michelangelo Antonioni (e seu filme homônimo de 1964), consiste em 12 fotografias feitas num cemitério de materiais eletrônicos, em que monitores de PCs se destacam. O texto que acompanha a instalação explica que a artista submeteu suas fotografias “a um programa de corrupção de vídeo para imagens de baixa resolução”. Os resultados se parecem a faixas RGB coladas sobre a imagem original, um efeito de glitch que nos remete a monitores em veículos de transporte público ou em outros “não lugares” urbanos, como as rodoviárias. É este universo que predomina nas obras expostas: os espaços urbanos de São Paulo, Rio de Janeiro e de outros lugares no mundo filtrados pela lente da câmera da artista e processados por um jogo de tecnologias incompatíveis, que rende uma segunda camada de ruído às imagens, uma espécie de emoção artificial.

Gisele Beiguelman, da série Deserto rosso, 2016

Giselle Beiguelman, da série Deserto rosso, 2016

Cinema lascado/Perimetral (2016), instalação central da mostra, consiste em uma tela de duas projeções divididas em duas paredes que se encontram num ângulo de noventa graus. Imagens da Perimetral carioca, construída em etapas entre 1950 e 1960, são justapostas a imagens gravadas durante da demolição da via em novembro de 2013. Cinema lascado/Minhocão (2010) antecede a obra sobre a Perimetral e é composta de imagens de uma viagem de carro pelo Minhocão, no centro de São Paulo; o som da instalação permeia todo o espaço. Essa via ainda está em funcionamento, e a obra de Beiguelman oscila entre a crítica e a homenagem a essa construção emblemática da cidade; as mesmas ferramentas estéticas são aplicadas, isto é, imagens aceleradas sob efeito de glitch. Um diálogo com a obra recente de Rosa Barba que tematiza o elevado na cidade – uma instalação de filmes em 16mm com música de Jan St. Werner, em exibição na 32a Bienal de São Paulo – é possível: há muitas maneiras de retratar uma construção significativa e seus efeitos sobre os habitantes das cidades.

Gisellle Beiguelman, "Cinema lascado perimetral", 2016

Giselle Beiguelman, Cinema lascado/Perimetral (still), 2016

Distribuída por entre as várias obras fotográficas na mostra encontra-se a série Fast/Slow, composta de cinco vídeos gravados com a câmera do celular e exibidos em telas de iPad com fones de ouvido. Fast/Slow: Cabscapes/Nova York (2006) é uma gravação acelerada de uma viagem de táxi por Manhattan e o que parece ser a via expressa Brooklyn–Queens (BQE) que leva ao aeroporto JFK. As imagens são acompanhadas por um loop de música jungle/breakbeat, um som que tem suas origens mais no contexto de Bristol e de Londres, na Inglaterra, do que de fato nos Estados Unidos. Boatscapes/Atenas e Busscapes/Ilha de Paros, da mesma série, apresentam imagens do mar grego com músicas parecidas às das coletâneas Café del Mar Chill-out Mix, ressoando a trilha sonora das festas na ilha mediterrânea de Ibiza nos anos 1990/2000. Estas obras, assim como Railscapes/Berlim remetem a uma estética dos videoclipes dos anos 90, quando a MTV e seus VJs eram a sensação e a arte eletrônica estava muito em voga.

Giselle Beiguelman, Cinema lascado/Minhocão, 2010

Giselle Beiguelman, Cinema lascado/Minhocão (still), 2010, still

A estética do glitch tem sido praticada tanto nas artes como na música, desde que o computador ganhou relevância como meio de produção (considere-se as obras de Carsten Nicolai ou Akufen, respectivamente), mas não fica claro por que Beiguelman não decidiu acompanhar suas filmagens com músicas que reforçassem seu conceito estético e argumentativo. Uma alternativa poderia ter sido comissionar composições que se alinhassem com as imagens, em vez de se apropriar de faixas eletrônicas que já são bastante carregadas de referências históricas e geográficas.

Giselle Beiguelman, Cinema lascado/Minhocão, 2010

Os problemas para superar as demandas tecnológicas com equipamentos antigos, as incompatibilidades entre dispositivos e programas de software que surgem da obsolescência tecnológica dominam a exposição e levam o espectador a renovar sua visão sobre o uso da tecnologia e também das arquiteturas urbanas pelas quais passa em seu cotidiano.

Por que a artista considera necessário fazer tantos exercícios repetidos para evidenciar o mesmo problema e o mesmo fenômeno estético que surge dessas incompatibilidades é uma questão, contudo, que fica no ar. Vivemos num estado de agitação contínua em nossas vidas aceleradas nas megalópoles, e as obras de Giselle Beiguelman retratam essa velocidade. Porém, em vez de refletir criticamente sobre as pressões da economia neoliberal que induzem a essa angústia, a mostra Cinema lascado acaba por deixar o espectador ainda mais ansioso.///

 

Cinema Lascado, de Giselle Beiguelman
Caixa Cultural São Paulo
Até 25 de setembro de 2016

 

Tobi Maier (1976) é mestre em estudos curatoriais pelo Royal College of Art (Londres) e doutorando em poéticas visuais pela ECA-USP. Foi curador associado da 30ª Bienal de São Paulo (2012).

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