Colunistas

Por uma pedagogia do olhar

Moacir dos Anjos Publicado em: 30 de outubro de 2017

A história dos últimos meses no Brasil pode ser contada de muitas maneiras. Quase todas marcadas por ameaças à existência dos lugares – simbólicos e físicos – de resistência e dissenso que ainda pulsam no país. Uma dessas narrativas possíveis ata, em vertiginosa aceleração de fatos, uma série de manifestações de grupos organizados contra a veiculação, em exposições de arte, de imagens e gestos que supostamente incitariam a realização de atos ilegais ou atentatórios à moral dos que reclamam. Manifestações ancoradas não no convencimento discursivo de suas supostas razões, mas na aberta violência física contra quem pensa diferente e na voz gritada que quer silenciar a fala do outro. Muito já foi dito sobre várias dessas ocorrências, embora seu entendimento ainda vá ser, por um tempo incerto, motivo de perplexidade e disputas. Aqui vai somente uma tentativa, entre outras já feitas, de enxergar além do imediato e de fazer um adendo que pretende complicar um pouco mais o que é já confuso e incômodo.

Embora não tenha sido a primeira dessas ocorrências, o ataque à exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, então em cartaz no Santander Cultural, em Porto Alegre, chamou mais atenção que suas antecedentes por dois principais motivos: a maior virulência das agressões feitas e a reação acovardada da instituição, que, confrontada pela intolerância, optou por cancelar a mostra muito antes de seu término programado. Valendo-se de técnicas de intimidação ou de aberto assalto físico aos que frequentavam a exposição, grupos organizados acusaram-na de celebrar e incentivar comportamentos ilícitos ou reprováveis ao seu juízo, sendo por isso impróprias para o consumo dos visitantes do centro cultural e, em particular, de qualquer criança ou adolescente. Mais especificamente, identificaram, em algumas obras, signos e símbolos que promoveriam a pedofilia e a zoofilia, além de desrespeitar crenças religiosas. Talvez esta seja uma descrição um pouco benevolente do que lá houve, pois busca enxergar, na enxurrada desconexa e patética de empurrões e berros ali dados, uma racionalidade coletiva. Mas é por ser sintomático de um mal estar social mais fundo que esse comportamento acusatório e virulento merece ser levado à sério.

Obra Travesti de lambada e deusa das águas de Bia Leite, 2013. Imagem cedida pela Galeria Transarte Brazil.

Algumas das obras expostas no Santander Cultural foram destacadas como particularmente nocivas pelos que quiseram impedir o acesso do público à mostra, quase como se sua existência mesma fosse uma afronta e uma ameaça a valores por eles partilhados. Entre as que mais atraíram a fúria dos manifestantes estava  uma pintura da artista Bia Leite que remetia, em traços simples e cores vibrantes, a histórias de meninos que sofrem abusos de várias ordens por se comportarem em desacordo com o que convencionalmente se espera de crianças que possuem corpos anatomicamente descritos como masculinos. A pintura trazia nela escrita o termo “criança viada”, referência a um site já desativado que foi, por alguns anos, espaço livre para que muitos adultos de hoje pudessem lembrar, por meio do envio de fotos antigas, tanto das agressões sofridas no passado como do acolhimento afetivo que por sorte tiveram ao dissentir da heteronormatividade. A ira despertada pela obra é reveladora do desejo – implacável e impossível – de apagar as imagens das “crianças viadas” do conjunto do que é publicamente visível no país, como se a censura à pintura fizesse sumir do mundo o que ela expõe por meio de riscos e manchas. Mas também confunde – por má-fé ou incapacidade cognitiva –, a denúncia de uma violência ainda hoje vivida por milhares de crianças com a promoção do que os reclamantes consideram um “desvio” do gênero a que se estaria supostamente destinado desde o nascimento.

A identificação unívoca e simplista entre uma imagem e seus possíveis significados é acompanhada, portanto, pela crença na suposta capacidade de uma imagem vista fazer acontecer o que descreve ou comenta. Como se houvesse uma imediata relação de causa e efeito entre imagem exposta e ato realizado. Como se a imagem pintada de uma “criança viada”, para ficar no exemplo dado, fosse capaz de subverter a auto-identificação de gênero de uma criança “não viada” que a encontrasse, desavisadamente, em meio a uma exposição de arte. Subversão que implicaria a imagem possuir, como aponta a filósofa francesa Marie-José Mondzain, uma “influência quase hipnótica da perda do real, da alucinação coletiva ou do delírio privado”. Assumidamente ou não, é baseado nessa frágil e quase absurda suposição que se tem buscado criminalizar essa e outras imagens, censurando-as ou banindo-as para longe da vista daqueles que por elas seriam negativamente afetados.

A exposição Brasil por Multiplicação, 35a edição do Panorama da Arte Brasileira, realizada no Museu de Arte de São Paulo, foi também objeto da furiosa ação dos que confundem, sem mediações, a suposta imagem de algo e esse algo supostamente representado em imagens. Muito já foi escrito, na imprensa e nas redes sociais, sobre a performance La Bête, do artista Wagner Schwartz, apresentada no dia de abertura da mostra. Não é este o espaço para inventariar e analisar extensivamente essas discussões, ainda que tal esforço tenha grande importância. O que talvez valha a pena fazer aqui é uma tentativa de entender, para além dos equívocos jurídicos e dos cálculos políticos enviesados dos que apressadamente demonizaram o trabalho,  ainda outro motivo para a reação furiosa da qual foi objeto. E para fazer isso é preciso, de início, destacar que as acusações à performance foram alicerçadas em sua redução a uma suposta imagem-síntese – uma criança instada a tocar um homem estranho e nu –, a partir da qual muitos se sentiram autorizados a construir ilações sobre os propósitos supostamente “pervertidos” do artista e do museu que abrigou e legitimou sua obra (pedofilia foi a senha usada pelos manifestantes para disparar seus ataques). Imagem, frise-se, difundida em rede com grande estardalhaço pelos próprios reclamantes, em contradição com o intento apregoado de proteger a criança que interagiu, sempre acompanhada da mãe, com o artista durante a performance – tocando o seu pé e a sua mão.

Fotografia da performance La Bête, do artista Wagner Schwartz. Crédito da foto: Caroline Moraes.

Mais que grosseiramente redutoras, as acusações derivam de uma descrição de cena que não corresponde aos fatos ocorridos no museu, sendo antes uma versão deturpada e sem contexto difundida por quem estabeleceu, de antemão, um veredicto de culpa para os envolvidos, para o qual não caberia apelação. Não se pode atribuir à performance, muito menos à produção artística em geral, aquilo que lhes foi imputado sem uma análise e discussão sérias e informadas sobre o que se passou na ocasião. A relação declarada da performance do artista com a série dos Bichos produzidos no início da década de 1960 por Lygia Clark – objetos articulados feitos de metal e destinados à manipulação por parte do espectador ou participante – é totalmente razoável para quem conhece o trabalho da artista mineira, embora evidentemente pudesse, como qualquer proposição criativa, ser questionada em seus termos. Para isso, contudo, seria preciso ao menos tentar entender a que o trabalho se propunha – resumidamente, retomar ou atualizar criticamente os Bichos fazendo do corpo do performer o objeto a ser livremente manipulado pelos presentes –, tal como se busca entender o que oferecem um filme, uma canção ou um livro antes de emitir-se um juízo firme sobre algum deles. E não simplesmente atribuir-lhe o que se pode ou se quer projetar nele, com maior ou menor consciência dessa projeção feita. Isso não significa dizer que somente os profissionais da crítica ou da história da arte estivessem ou estejam aptos a comentar – para aplaudir ou condenar – o trabalho, posto que as informações necessária a esse entendimento estavam e estão amplamente disponíveis para quem se dispusesse a querer fazer um julgamento informado sobre as intenções do artista e as condições que foram propostas para a realização do trabalho. O problema é justamente que isso nunca esteve em jogo.

Ademais, e ao contrário do que afirmavam as desvirtuadas descrições do trabalho difundidas nas redes sociais e mesmo na imprensa pelos manifestantes, a performance não demandava a interação com crianças. De fato, não obrigava interação com ninguém. A interação do público presente com o artista durante o trabalho existia apenas como possibilidade, ou como uma aposta na capacidade de afetação da performance. Ao reduzir o que se passou durante o tempo da performance a uma única imagem descontextualizada e interpretada sem mediação alguma, o que os manifestantes de um dos movimentos mais conservadores surgidos no Brasil nos últimos anos quiseram foi forjar uma situação libidinosa que supostamente teria acontecido no museu, igualando, de modo raso e mecânico, nudez diante de uma criança a abuso sexual. Intenção imediata que está conectada, contudo, com uma agenda mais ampla que articula essa e outras agressões sofridas por artistas e instituições de arte recentemente no país. O que os líderes desses ataques tentam fazer, com cínica competência e auxiliados por seguidores orgulhosos de sua ignorância e força bruta, é combater um dos poucos espaços de sociabilidade crítica existentes no mundo de hoje – a criação e a fruição artísticas –, atribuindo-lhe intenções que são em tudo estranhas a ele. Estão empenhados em reinventar uma polêmica pré-moderna para interditar uma das únicas arenas de promoção do dissenso que restam no Brasil. Em retirar da arte a sua potência de desobedecer normas e de reinventar o que se pensava ser já sabido, confinando-a em um espaço apaziguado e inócuo e aí mantida sob vigilância estreita, violenta e moralista.

É perturbador reconhecer, portanto, que a patente perda de capacidade de olhar e de discutir imagens nesses e em outros casos recentes – extraindo delas conhecimento novo –, ancora e reforça uma cruzada de ódio contra a produção artística, amalgamando inaptidão e intolerância. Ou, dito de outro modo, perceber que os valores que embasam as agressões à arte estão vinculados ao enfraquecimento da faculdade de se construir e de se continuamente ampliar, por meio de um olhar informado que articula e inventa significados, o campo do que possui visibilidade social. Embotamento do olhar que, contudo, parece afetar não somente os portadores de uma ideia de mundo excludente e normatizada, tendo vigência através de um espectro social mais amplo e diversificado.

Menino em cela na cadeia de Altos – PI. Imagem cedida pelo Sindicato dos Agentes Penitenciários do Piauí (Sinpoljuspi).

Essa percepção deriva do destino de outra imagem que também circulou na imprensa e nas redes sociais quase em simultâneo à polêmica desencadeada pela imagem da criança tocando o corpo do performer despido no MAM. A imagem de um menino de 11 anos encontrado na cela de uma cadeia em Altos, cidade piauiense próxima à Teresina, junto a um homem preso por ser acusado, justamente, de pedofilia e estupro de menor de idade. Os agentes penitenciários localizaram a criança em busca feita na prisão após perceberem que, na checagem da entrada e saída dos visitantes daquele dia, havia divergência entre o número de pessoas que entraram e o número das que saíram. Que o menino tenha sido introduzido ali pelos próprios pais, que o deixaram com o detento com o qual tinham alguma relação de conhecimento, é já por demais absurda, além de ilegal sob inúmeros aspectos, posto que é vedada a menores a visita a celas de cadeias, salvo se for parente do detido e obtiver autorização específica da justiça para tanto, o que reconhecidamente não foi o caso. A imagem publicada, feita pelos próprios funcionários da prisão quando acharam o visitante que não saíra, mostra uma criança, vestida apenas de bermuda jeans, deitada no chão e somente entrevista através do estrado de madeira da cama do preso com quem estava escondido. As ripas paralelas que formam o estrado parecem constituir uma segunda grade de aprisionamento do menino, em adição à outra, de metal, que o impedia de sair da cela. Simboliza, mesmo sem ter sido esta a intenção do fotógrafo, a posição de extrema vulnerabilidade a que aquele corpo franzino estava submetido. Questionado posteriormente sobre o ocorrido, a criança afirmou às autoridades ter sido tocado intimamente pelo adulto com quem foi deixado encarcerado.

A despeito da extrema e irrefutável seriedade do fato, a repercussão desta eloquente imagem nas redes sociais foi muito menor do que aquela obtida pela imagem da performance La Bête, realizada no MAM. De acordo com o “Monitor do debate político no meio digital” – projeto do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso a Informação da Universidade de São Paulo –, nos seus dois primeiros dias de veiculação (3 e 4 de outubro), a imagem do menino mantido na cela junto a um adulto acusado de crimes sexuais contra crianças teve um número de compartilhamentos equivalente a somente 8,2% do número de compartilhamentos feitos da imagem do performer nu sendo tocado no pé e na mão por uma criança no espaço regulado de uma exposição de arte, aí também considerados os dois primeiros dias de sua difusão na internet (28 e 29 de setembro). Que o menino deixado na cadeia de Altos seja pobre e negro certamente explica, em parte ao menos, o relativo desinteresse pela cena quando comparada ao que ocorreu no museu em um país tão desigual e racista como o Brasil. Que também não tenha despertado a ira dos movimentos mais regressivos e fundamentalistas de direita que atacaram o artista, o museu e a mãe da criança no outro caso também está de acordo com uma agenda ultraconservadora que desvia os olhos de onde os abusos diários contra crianças são cometidos – nos lares, nas ruas e mesmo, como nessa situação extrema, em instituições prisionais destinadas a adultos – e se concentra em combater justamente os espaços que desafiam e desmontam a cultura hegemônica que controla e criminaliza o corpo, como os museus.

Mas ainda que sejam considerados esses motivos, talvez seja preciso inverter e complicar o argumento e refletir mais sobre o porquê de a publicação da foto do menino deixado na cadeia com um reconhecido abusador de crianças não ter causado reações de repúdio e de espanto tão ou mais vigorosas por parte dos que defenderam o campo da arte nos casos aqui relatados (inclusive por parte deste colunista), bem como não ter gerado desdobramentos políticos correspondentes à gravidade do ocorrido.  E a condição para o entendimento dessa assimetria passa – especula-se aqui – por admitir o que há em comum entre as duas situações acima relatadas: por um lado, a atribuição ligeira de uma relação de causa e efeito entre imagem e violência, abertamente feita pelos que querem, por isso, censurar exposições de arte e abafar a diversidade do campo do visível; por outro, a incapacidade de se olhar uma imagem violenta de modo demorado e de reconhecer, nela, a potência de desestabilizar convenções do pensamento e de engendrar, por mediações diversas operadas no campo do visível, a emergência de ações que tornem o mundo mais inclusivo.

Ambos os casos parecem revelar, para além do antagonismo que as aparta, a tibieza da cultura do olhar em um ambiente paradoxalmente inundado por imagens. Parecem atestar a incapacidade desenvolvida em décadas de descaso, no país, com a faculdade de articular imagem e ideia, bloqueando a geração de conhecimento que de outro modo não se produz. Como diz em outro contexto Marie-José Mondzain, a “relação entre a violência e o visível diz respeito, não às imagens da violência, nem à violência própria das imagens, mas à violência cometida contra o pensamento e a palavra, no espetáculo das visibilidades”. Sem se enfrentar a necessidade de formar espectadores experientes e emancipados – resgatando assim o papel de uma pedagogia do olhar –, está-se destinado a cobrar das imagens aquilo que não é culpa delas ou, inversamente, a deixar escapar o que guardam de poder que liberta. Não é desafio pequeno nem passível de ser enfrentado em prazo curto. O que somente o torna mais urgente.///

 

Moacir dos Anjos é crítico de arte. Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, foi curador da 29ª Bienal de São Paulo em 2010. Publicou ArteBra Crítica: Moacir dos Anjos (2010) e Local/global: Arte em trânsito (2005), entre outros volumes e ensaios em livros.

 

 

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