Colunistas

Sonhos antigos, sonhos novos

Geoff Dyer Publicado em: 19 de setembro de 2013

capa ecm 1

 

O inglês Geoff Dyer (1958), autor de Todo aquele jazz, dentre outros, é um dos mais destacados ensaístas da atualidade, elogiado pela maneira com que parte de reflexões íntimas para lidar com temas universais. Nesta estreia como colunista mensal do site da ZUM, Dyer aborda a obra do fotógrafo italiano Luigi Ghirri, que será objeto de uma exposição no Instituto Moreira Salles em novembro deste ano (SP) e fevereiro de 2014 (RJ).

Às vezes, creio que o elemento definidor de minha interpretação pessoal de fotografias deriva do fato de que, durante anos, nunca pensei em quem as havia tirado. Na realidade, é mais do que isso. Além do fato de que um botão tinha sido premido, nunca me ocorria que as fotografias eram produzidas por uma pessoa. Para mim, as fotografias se reduziam a quem ou que aparecia nelas. Meu interesse pela fotografia nasceu no momento em que soube que uma foto de D. H. Lawrence que eu admirava bastante tinha sido feita por Edward Weston, uma figura famosa – vou usar apenas esse adjetivo – na história desse meio expressivo. Antes desse dia, havia minha maneira antiga de ver fotografias; depois dele, a maneira nova.

*

As capas dos discos da ecm sempre tiveram um papel importante na definição da identidade desse selo. Esse papel é menos notável hoje em dia, quando as gravações só são oferecidas em cd ou são baixadas online. Nos tempos do long-play, a capa desempenhava um papel muito maior. O design procurava transmitir, de forma geral, a constância e o espírito do projeto da ecm, ao mesmo tempo em que indicava o caráter de um disco específico.

Estou pensando em um desses álbuns: Playing, com Don Cherry, Charlie Haden, Dewey Redman e Ed Blackwell. Esse disco, gravado ao vivo em Bregenz em 1980, era o terceiro álbum da banda, conhecida em geral como Old and New Dreams, título de seu primeiro álbum. A capa mostrava uma bela foto de um gol de futebol, muito branco, contra um fundo de árvores verde-escuras (quase uma floresta). Diante da meta estendia-se o verde mais claro do campo, cujas linhas – a pequena área, a área penal – eram quase invisíveis. Da mesma forma, o gol tornava-se algo tangivelmente abstrato, e o campo, quase uma campina.

Eu conhecia todos os músicos que participavam do disco – e por isso o comprara – e também reconheci a citação que começava no canto inferior direito da capa – “O batedor começou, de repente, sua corrida…”, tirada de O medo do goleiro diante do pênalti, de Peter Handke. A única coisa que eu não sabia era quem tinha feito a foto da capa. O crédito era dado no disco, mas não lhe dei atenção, e de qualquer modo o nome não significaria nada para mim. Entretanto, de todas as muitas imagens usadas em capas da ecm, essa, mais que qualquer outra, parecia uma síntese visual da proposta da gravadora. Era como se a frase famosa – “o mais belo som depois do silêncio” – estivesse traduzida à perfeição na meta silenciosa, vazia e à espera do gol. (Essa espera, aliás, é parte integrante da ecm: nos cds, o contador de tempo começa vários segundos antes da primeira faixa, de modo que o silêncio torna-se parte da experiência de ouvir.)

Tive de esperar mais de vinte anos para valorizar direito a identidade do fotógrafo, para reconhecê-lo. Estava examinando o livro Kodachrome, de Luigi Ghirri (1943-2002), fotógrafo italiano de quem eu tomara conhecimento recentemente. E lá estava ela, a mesma fotografia. Contudo, como muitas vezes acontece nesses casos, estava um pouco diferente. A floresta do disco tinha perdido um pouco dos detalhes – a profundidade implícita – e a grama estava um tanto quanto amarelada, parecendo mais seca, fosse por causa de uma impressão imperfeita, fosse porque, com o passar dos anos, meu exemplar do cd tinha desbotado. A mudança maior, no entanto, era, ao mesmo tempo, mais sutil e mais óbvia, e poderia ser chamada de ghirriesca.

Como muitas fotos de Ghirri, essa era fechada em si mesma, de uma forma tranquila mas rigorosa. O quadro dentro do quadro – as traves e o travessão – concentra totalmente nossa atenção no quadro da imagem. Não há na fotografia nada que sugira o que poderia estar acontecendo fora de seus limites ou além do momento mostrado, porque – como muitas vezes é o caso com Ghirri – não acontece absolutamente nada na imagem, não há nenhuma indicação de movimento (o que talvez torne imprópria a citação de Handke em Playing). É como se fosse a fotografia, congelada, de um sonho. Cada uma das fotografias do livro de Ghirri, explícitas e infinitamente misteriosas, não contém quase nenhum incentivo para avançarmos, para virarmos a página e ver a foto seguinte. Satisfazemo-nos com olhar e esperar, observar. Nesse contexto talvez fosse melhor descrever a experiência não como Playing [jogar], mas como Staying [pausar, parar]. Por isso, é adequado que na página fronteira à da fotografia do gol haja uma imagem semelhante e, possivelmente, mais radical: uma rede de basquetebol em Paris, cercada por paredes, nas quais há dois retângulos de bordas negras: a tabela e uma área-alvo, menor, pintada nela.

Ghirri também gosta de imagens de lugares em que um espelho intensifica a sensação de hermeticidade, ao refletir de forma vaga ou baça uma ou mais das paredes do local. Às vezes, porém, esses espelhos atuam como janelas, rompendo discretamente o sigilo, permitindo vislumbres de outro mundo – de carne, de braços bronzeados, de biquínis. Embora calma, até serena, às vezes engraçada, a sedução narrativa desse mundo é considerável.

Alguns versos de Walt Whitman, usados por Walker Evans como epígrafe para o catálogo de sua retrospectiva no Museu de Arte Moderna em Nova York, valem também para Ghirri: “Não duvido que os interiores tenham seus interiores, e que os exteriores tenham seus exteriores…”

No caso de Ghirri, no entanto, há margem para dilação e elaboração, pois os interiores de suas fotos também têm seus exteriores, e os exteriores das fotos têm seus interiores. Daí a decisão de Francesco Zanot de tomar emprestado o título de um livro de Handke para um ensaio na edição inglesa de Kodachrome: “O Mundo Interior do Mundo Exterior do Mundo Interior”.

As citações talvez sirvam como descrição do que aconteceu quando reconheci a fotografia do disco Playing no livro de Ghirri – um incidente que pode, por sua vez, representar a experiência maior de meu interesse pela fotografia. Uma fotografia isolada de um gol, do campo de jogo e de árvores – uma espécie de beco sem saída – tornou-se parte de um mundo maior de imagens. Um novo mundo se abriu, um mundo marcado por sua hermeticidade, um mundo do qual cada vislumbre parecia, ao mesmo tempo, estar completo em si mesmo e insinuar algo mais. Essa parece ser a visão e a intenção de Ghirri: o antigo e o novo sonho da fotografia.

Tradução de Donaldson M. Garschagen

 

Geoff Dyer é escritor e colunista do jornal The New York Times. Autor de O Instante contínuo (2008), além de inúmeros outros textos sobre fotografia.