Rever a escuridão
Publicado em: 2 de abril de 2014Em 2006, o Victoria and Albert Museum de Londres sediou uma mostra sedutora intitulada Crepúsculo: a fotografia na hora mágica (Twilight: Photography at the Magic Hour). A exposição exibia obras de Bill Henson, Gregory Crewdson, Philip-Lorca diCorcia e outros, e explorava aquele interlúdio em que a luz diurna do mundo dos fatos começa a deslizar sutilmente para o reino dos sonhos. Embora a impressão geral tivesse certa cor romântica, a atmosfera de cada uma das fotos dependia de seu grau de escuridão, em um equilíbrio entre a memória — do dia que findara — e aquilo que a noite prometia.
O passo seguinte da fotografia feita ao crepúsculo é fotografar a noite em si, e por certo dispomos de uma ilustre tradição de fotógrafos que fazem precisamente isso. Já perto do fim da vida, Diane Arbus disse amar “o que não posso ver em uma foto. Em Brassaï, em Bill Brandt, há o elemento da escuridão física real, e é muito instigante rever a escuridão”.
Os riscos são óbvios. Reagindo com algum desdém à série A noite (The Night), proposta por William Gedney, John Szarkowski, diretor de fotografia do Museu de Arte Moderna de Nova York, comentou que a fotografia está relacionada àquilo que se pode ver, ao passo que as fotos ali propostas tinham por objeto o que não se pode ver. O dilema é tão simples quanto complexo: permitir que vejamos aquilo que não pode ser visto.
As fotografias noturnas da cidade de Gaza feitas por Gianluca Panella durante apagões abordam justamente essa questão. O contexto prático que lhes deu origem — conforme explicitado pelo World Press Photo, que recentemente premiou a série na categoria Notícias Gerais — é o seguinte:
“A única usina de energia da cidade de Gaza parou de funcionar em novembro passado, depois de ficar sem óleo diesel. Havia anos, o suprimento de energia provido pela rede elétrica de Israel era intermitente, e cortes no fornecimento de eletricidade devidos à falta de combustível eram, fazia tempo, ocorrências diárias. Em dezembro, chuvas torrenciais e graves enchentes em Gaza provocaram apagões ainda mais longos que os habituais. Suprimentos alternativos de diesel eram, antes disso, contrabandeados desde o Egito, por meio de túneis sob a fronteira. Este ano, porém, os militares egípcios — que derrubaram do poder a Irmandade Muçulmana, simpática ao governo do Hamas em Gaza — fecharam a maioria desses túneis. Em resposta às inundações, Israel suspendeu temporariamente o bloqueio e permitiu que um suprimento de emergência de 450 mil litros de combustível, pago pelo Catar, chegasse a Gaza. Pouco a pouco, a usina voltou a operar, mas a infraestrutura local permanece inadequada para atender à demanda de energia”.
Quando essas fotos foram tiradas, em dezembro de 2013, apagões podiam durar até 21 horas por dia. As fotos, inevitável e muito apropriadamente, são bastante escuras, no limiar daquilo que é compatível com nossa capacidade de enxergar alguma coisa. Elas mostram uma economia e uma infraestrutura devastadas por todo tipo de obstáculo prático.
A escuridão, porém — de pronto óbvia e difícil de penetrar —, é também metafórica. O acesso a Gaza está sujeito a restrição rigorosa, e é muito difícil ver com os próprios olhos o que se passa lá. Se a Cisjordânia ou os territórios ocupados lembram um vasto complexo prisional, Gaza é a solitária. Nos Estados Unidos, a discussão a esse respeito é abafada, cegada de antemão pelas alegações de que toda crítica a Israel e a suas políticas é inerentemente antissemita.
Enquanto isso, a vida cotidiana dos palestinos vai acumulando frustrações, tempo perdido, humilhações e, por consequência, raiva. Há pouco tempo, um filme chamado A aldeia que reagiu: cinco câmeras quebradas (The Village that Fought Back: Five Broken Cameras) foi feito a partir de cenas registradas por Emad Burnat, um fazendeiro que passou anos filmando a resistência ao Muro da Separação e à usurpação por parte dos assentamentos. Ao filmar amigos sendo presos, feridos e, por fim, mortos, ele nos permite testemunhar coisas que raras vezes vêm à luz (como um soldado israelense mirando cuidadosamente um prisioneiro e, de propósito, atirando em sua perna). Cinco câmeras são destruídas, mas, no processo de filmagem, uma delas salva a vida de Burnat ao aparar a bala que o teria atingido.
Ainda assim, o preço pago por Burnat e sua família foi alto. Em uma das cenas, sua esposa lhe pede que pare de filmar – que, na verdade, desista daquilo. É fácil entender esse pedido, uma vez que o que o marido está registrando é uma sequência de derrotas — algumas pequenas; outras, a maioria, grandes —, com algumas eventuais vitórias minúsculas aqui e ali. A pergunta que volta e meia nos fazemos, portanto, é como é que os palestinos conseguem evitar a desesperança completa — seja ela sob a forma de resignação e rendição ou da vingança suicida. As fotos de Panella fornecem uma espécie de resposta.
Sim, porque elas são de uma beleza arrebatadora — e foi isso que me lembrou a mostra do Victoria and Albert Museum. As poucas janelas iluminadas brilham como as das mansões esplêndidas pintadas por Atkinson Grimshaw na Inglaterra vitoriana. Embora escasso, o ralo colorido proveniente de outras fontes de luz é tão magnífico como o vermelho vívido, o laranja suave e o azul elétrico das imagens noturnas de lares indianos de Morada dos sonhos (Dream Villa), a série de Dayanita Singh.
É evidente que precisamos proceder com cuidado nessa linha de raciocínio.
O propósito de fotografar privação em escala tão intensa não é proporcionar prazer estético ao ocidental bem de vida, sentado em seu escritório à luz de um abajur às 11 horas da noite, com a calefação ligada e a música tocando em seu aparelho de som. As raras e suntuosas manchas de cor não devem nos distrair do odor invisível, nos cegar para o fato de que uma das principais consequências dos cortes de energia foi a torrente de esgoto que invadiu aquelas mesmas ruas. Da mesma forma, porém, não há como negar que há uma beleza assombrosa nessas imagens. O que leva a outra pergunta: será isso expressão estética de algo igualmente inspirador na perseverança de pessoas capazes de seguir resistindo, de tocar sua vida, de evitar a desesperança ou, no mínimo, de continuar vivendo em meio a ela?
Pense nas famosas palavras finais da novela de Conrad, aquelas sobre o Tâmisa que flui “para o coração de uma treva imensa”. Essas fotografias, rodeadas de treva imensa, mergulhadas nela, sempre conduzem, ao contrário, a alguma área ou fonte minúscula de luz.
É tentador acrescentar a “luz” uma outra palavra: esperança. Mas, de novo, devemos nos esforçar para não sentimentalizar o que é — e não pode ser — visto. Para evitar isso, tenha em mente uma passagem escrita por um dos melhores autores a escrever sobre fotografia, John Berger, que, em um ensaio de 1983, nos pede para imaginar “que não estamos vivendo em um mundo no qual é possível construir algo próximo do Paraíso na Terra, mas, pelo contrário, que vivemos em um mundo cuja natureza está muito mais próxima daquela do inferno. Que diferença isso faria para qualquer uma de nossas escolhas políticas ou morais? Teríamos de aceitar as mesmas obrigações e participar da mesma luta em que já nos vemos; talvez até abrigássemos um sentimento de solidariedade mais resoluto para com os explorados e os sofredores. A mudança seria apenas no grau de enormidade de nossas esperanças e, por fim, no de amargura de nossas decepções”.
Em meio à treva, essa é a luz que Gianluca fotografou — a luz sob a qual seu trabalho precisa ser visto.
Tradução do inglês de Sergio Tellaroli
Geoff Dyer é escritor e colunista do jornal The New York Times. Autor de O Instante contínuo (2008), além de inúmeros outros textos sobre fotografia.