Colunistas

Uma noite em Pequim

Geoff Dyer Publicado em: 25 de setembro de 2013

SONY DSC

 

SONY DSC

Essas fotos foram feitas num bar de terraço em Pequim, em 19 de agosto – minha última noite na cidade. Nosso grupo de seis tinha jantado num restaurante famoso por seu pato à Pequim, e combinamos de nos encontrar com outras pessoas, mais tarde, nesse bar. Ele ficava num lugar aonde poderíamos chegar em apenas 20 minutos de táxi, mas depois de meia hora ainda estávamos presos no trânsito – as pessoas sempre estão presas no trânsito em Pequim –, e comecei a desejar que, como outros dois integrantes do grupo original de seis, eu tivesse preferido não vir.

Levamos uma hora para chegar à rua do bar, mas, mesmo lá, não conseguíamos achá-lo. Por que alguém teria sugerido que nos encontrássemos ali, numa rua com bares horríveis, nenhum dos quais era aquele em que deveríamos nos reunir? Foi então que vimos Veronica, com o mesmo vestido azul que usava mais cedo, quando estivemos em seu escritório. Ela nos conduziu a um elevador que nos levou a um andar alto, e a seguir subimos um lanço de escadas para esse terraço, onde tudo era magia. Fazia 30 graus e não havia poluição. Em muitas noites, disseram-me, ninguém queria estar ali, devido à contaminação do ar, que faz você se sentir sufocado. Como fazia muito calor e a atmosfera era claríssima, todos queriam estar ali. A casa estava à cunha, como uma Ibiza num ambiente urbano, em Pequim. Ouvia-se música, mas não alta demais, num volume perfeito. Aliás, tudo era perfeito, menos o fato de não haver lugar para nos sentarmos – dois amigos de Veronica já estavam ali havia algum tempo, tentando, em vão, conseguir uma mesa – e foi aí que, como acontece nessas noites perfeitas, um grupo de pessoas se levantou para sair e nos vimos juntos, em sofás e cadeiras.

Quando as pessoas se divertem, tiram fotos para mostrar depois e provar que estavam se divertindo. Muitas pessoas tiravam fotos, pessoas de nosso grupo e também de outros. É uma coisa que sobretudo os jovens fazem. Não consigo ver por quê – essas fotos nunca captam a magia de noites mágicas, só mostram pessoas sentadas, bebendo, se embriagando e tirando fotos umas das outras. Pedimos bebidas – cervejas e coquetéis. Havia em nosso grupo um escritor de Taiwan, chamado Ho Chingpin. Tinha 55 anos, a mesma idade que eu, e estava tirando fotos com uma câmera de verdade, não um celular. Fazia isso com certo cuidado, alterando o foco, a abertura ou alguma outra coisa – em certo momento chegou a trocar a objetiva –, mas de um jeito discreto e tranquilo, continuando a beber e a conversar. Passado algum tempo, mostrou-nos as fotos que fizera.

Eram sensacionais. Ele tinha feito várias fotos da irmã de Veronica, que não se parecia em nada com ela. Isso porque, viemos a saber, ela não era mesmo irmã dela, e sim o que lá chamam de prima-irmã. Não entendi seu nome. Era bailarina. Ho também tirou fotos de outra pessoa de nosso grupo, fotos lindas, de perfil, e uma de Veronica e de mim, que não ficou muito boa. Eu nunca vivera uma situação que fosse tão bem registrada em imagens. Se alguém houvesse olhado dentro de minha cabeça, teria visto aquelas fotos. Várias eram belas, mas foram as da prima de Veronica que causaram forte impressão em todos. Nelas, as cores se entremesclam de forma fascinante, a atmosfera é lírica, impregnada de romantismo. Numa das fotos há um borrão de luz amarela (estranhamente, com a forma de uma banana!) e, à direita, uma fileira de pontos azuis borrados, em meio aos quais a moça se isola em sua nitidez. Por acaso ele previra esses resultados? Como os conseguira?

Bem, ele devia estar apaixonado por ela! Essa foi minha reação ou projeção imediata, romântica e tecnologicamente ignorante. Sim, se você se apaixonasse por alguém, num bar de terraço em Pequim, aquelas seriam as imagens dessa paixão.

Ou seria apenas a câmera que estava apaixonada por ela? O rosto dela era anguloso, forte, quase duro. A luz suavizava os ângulos e, ao mesmo tempo, dava às fotos um grau extra de expressividade. Lembro-me de Ferdie Pacheco, o médico que acompanhava Muhammad Ali no ringue, dizer que, além de outros atributos, Ali tinha também o rosto perfeito para um pugilista, com traços arredondados que o tornavam menos suscetível a cortes. Aqui ocorria o oposto. A nitidez do rosto da moça fazia com que suas expressões fossem prontamente acessíveis à câmera. A lente não deslizava ou corria em seu rosto como os murros escorregavam pelo rosto de Ali. A lente se colava naquele rosto como você se agarra a cada palavra de outra pessoa quando está se apaixonando por ela. Estou imaginando que a velocidade do obturador fosse de tantos centésimos de segundo – mas alguma coisa no rosto da moça fazia com que a lente se detivesse nele por uma fração de segundo a mais, para capturar uma dimensão psicológica adicional. É preciso ressaltar a reciprocidade: seu rosto permitia que a câmera fizesse isso, trouxesse à superfície sua vida interior. E assim, numa situação muito social, Ho a captava de maneira privada. Ela está transportada, não está ali. (Mais adiante ficamos sabendo que ela dera à luz havia pouco tempo. Estaria pensando na criança em casa?) Ela parece – e também aqui a angulosidade de seus traços presta-se a isso – abstraída.  Talvez Ho tenha percebido isso, estivesse consciente disso, notara que ela tinha esse atributo especial.

Os fantásticos azuis, amarelos e vermelhos. A maciez da noite, sua promessa, seu calor e sua saudade, os lamentos e as esperanças que ela deixaria em seu rastro. O modo como cada gesto tinha o potencial de ser tocado pelo destino. A incerteza quanto a se você está reagindo a uma coisa que está ali, tangível ou intangível, ou só projetando – tudo isso estava presente nas fotografias. Era o que víamos nelas naquela noite, é o que vemos nelas ainda agora.

Uma das imagens capta também isso, graças ao homem que, desfocado no fundo, olha não para a prima de Veronica, mas para a produção da foto. Ele é nosso representante. Ele somos nós, olhando para ela, olhando para esse momento, com sua serenidade e seu mistério, tão delicadamente intatos.///

Tradução de Donaldson M. Garschagen

 

Geoff Dyer é escritor e colunista do jornal The New York Times. Autor de O Instante contínuo (2008), além de inúmeros outros textos sobre fotografia.