Colunistas

A segunda morte de Bill Eppridge

Dorrit Harazim Publicado em: 22 de outubro de 2013
Importante intérprete visual dos anos 1960, Eppridge foi um dos grandes responsáveis pela fabulosa produção fotográfica da revista Life

 

Sen. Robert Kennedy sprawled semiconscious in his

© Time & Life Pictures/Getty Images

 

“Rígido, semiconsciente, com o rosto transformado em máscara acinzentada, o senador Robert Kennedy está deitado no chão de concreto. Tem uma bala no cérebro e outra na nuca. É dele o sangue da poça em volta. Juan Romero, o ajudante de garçom a quem o senador acabara de apertar a mão, ainda tenta confortá-lo.”

O texto da legenda anexada à imagem, enviado pelo repórter fotográfico Bill Eppridge à redação da revista Life, era atipicamente longo e descritivo para uma notícia quente. Era quase um tributo emocionado, esquisito para um profissional tarimbado. Destoava até mesmo do estilo praticado na publicação relançada por Henry Luce em 1936, que elevou a fotografia jornalística à categoria de narrativa, e essa, em história.

No instante em que Eppridge viu Kennedy desmoronar sobre o piso da cozinha do Hotel Ambassador de Los Angeles, na madrugada de 5 de junho de 1968, foi de sua câmera que saiu o registro indelével da cena, relegando ao esquecimento todas as imagens semelhantes produzidas por outros fotógrafos presentes à cena.

Eppridge não foi apenas o melhor. Foi, também, o que teve de tomar a decisão mais difícil: apesar do apelo feroz e desesperado da já quase viúva Ethel Kennedy para que ele, amigo da família, silenciasse a câmera, o fotógrafo prosseguiu até a conclusão da tragédia. Operou por instinto, contou mais tarde, movido pela exaustão mental.

Mas daquele dia em diante nunca mais aceitou fotografar homens públicos.

“Bobby” fora o único político que ele admirava e por quem se apegara. Aceitara com entusiasmo a incumbência de colar no senador ao longo da campanha eleitoral para presidente daquele ano de 1968, e aquela noite de junho fora gloriosa. Robert Kennedy tinha vencido as cruciais primárias da Califórnia como candidato Democrata e fizera um discurso de vitória empolgante para a massa de partidários espremida no salão nobre do Ambassador. Faltava apenas dar uma coletiva à imprensa, que o aguardava num outro salão, para poder adormecer em glória. Antes, porém, espremido entre assessores e fotógrafos, decidiu enveredar por um corredor de serviço para cumprimentar os cozinheiros.

O assassino à espreita pôde disparar cinco tiros de calibre 22 à queima roupa. O primeiro furou a testa do senador. O segundo, a têmpora. Os outros tomaram rumo errático na luta livre que se seguiu entre assessores e assassino. Eppridge conseguiu abstrair o pandemônio à sua volta, fechou o foco e interpretou a imagem do homem ferido no chão “quase como uma crucificação”, relembraria mais tarde. Conseguiu imprimir à foto em mais preto do que branco, com o copeiro mexicano ajoelhado de olhar suplicante, uma imortalidade quase religiosa.

Eppridge ainda fotografou o cortejo fúnebre do senador, cujo caixão percorreu de trem o trajeto Nova York – Washington e foi pranteado ao longo da via férrea por mais de dois milhões de pessoas. Mas largou a câmera quando o féretro chegou ao cemitério nacional de Arlington. “Peguei uma vela, me apoiei numa árvore e acho que deixei de ser fotógrafo”, rememorou quase quatro décadas depois.

Não foi bem assim, pois continuou a fazer do ofício seu ganha pão. Um pedaço deste que foi um dos intérpretes visuais mais marcantes dos anos 1960, contudo, morreu com Bob Kennedy. “A partir dali, o olhar de Bill não conseguiu mais se livrar da tristeza”, constatou sua editora de fotografia à época, Karen Mullarkey.

A segunda morte do americano Guilhermo Alfredo Eduardo Eppridge, nascido por acaso em Buenos Aires 75 anos atrás, ocorreu este mês, em 3 de outubro. Com ele, foi-se um dos últimos grandes responsáveis pela fabulosa produção fotográfica da Life, extinta em 1972.

Quando os Beatles pisaram pela primeira vez nos Estados Unidos, em 1964, para a turnê que se tornaria épica, Eppridge estava a postos no aeroporto de Nova York, recém rebatizado de John F. Kennedy em memória do presidente assassinado 11 semanas antes. Registrou as quatro cabeleiras emergindo do avião da Panam, os quatro pares de botas pretas, as quatro limusines rumando para o hotel Plaza, cada uma com um Beatle dentro. Os roqueiros de Liverpool tomaram-se de simpatia pelo jeitão pouco afoito do fotógrafo e acabaram franqueando-lhe o acesso aos ensaios e aos aposentos do hotel. Ele, por seu lado, retribuiu o privilégio evitando usar flash e abafando o clique do disparador com panos, para incomodar menos. Apelidaram-no de “Mr. Life Magazine”.

Poucos marcadores dos anos 60 escaparam das lentes de Eppridge, e em todos deixou registrada sua marca – Pete Seeger, o primeiro show de  Bob Dylan no lendário Newport Folk Festival, os três dias de Aquarius em Woodstock (por ele batizados de “mais bela coda para uma década dolorosa”), a guerra do Vietnã, o movimento pelos direitos civis.

Eppridge teve o privilégio de se juntar a uma geração da Life que ele cultuara na juventude, como Alfred Eisenstaedt, Gordon Parks, Carl Mydans e Larry Burrows. E aprendeu na revista a dominar o gênero que a tornou insuperável: narrar histórias inteiras através de ensaios fotográficos. Para ilustrar a devastação da vida provocada pelas drogas, por exemplo, Eppridge acompanhou durante meses dois jovens viciados em heroína que se autodefiniam como “animais vivendo num mundo que ninguém conhece”. Foi um mergulho altamente polêmico e estarrecedor, por expor uma condição que a sociedade da época preferia não ver. Transformado em roteiro de filme (“Os Viciados”, 1971), catapultou o nome de Al Pacino no cinema.

Como fotógrafo par excellence dos anos 1960, Bill Eppridge recebeu prêmios, honrarias, respeito e reconhecimento. Mas numa associação instantânea de nome e imagem virá à mente sempre, em primeiríssimo lugar, uma única foto sua – justamente a que ele desejaria não ter feito.

Todo fotógrafo transfigura o que vê, mesmo quando tem o propósito de apenas testemunhar. Com Bill Eppridge não foi diferente.

 

Dorrit Harazim é jornalista e documentarista brasileira. Nascida na Croácia durante a II Guerra Mundial, talvez venha daí seu interesse pelo papel da fotografia na história e pela história da fotografia como meio de comunicação.