Ensaios

Cara a cara

João Medeiros Publicado em: 22 de maio de 2025

Muita coisa mudou na minha fotografia desde que passei a morar em São Paulo. Isso foi em outubro de 2022. Eu tinha 25 anos. Pouco antes dessa mudança, eu fotografava muito a minha cidade natal, Juiz de Fora, no sudeste mineiro. Talvez você a conheça pela facada no então candidato à presidência Jair Bolsonaro, ou – caso tenha hiperfoco em Minas Gerais – pelo seu pioneirismo na industrialização, recebendo o apelido de Manchester Mineira. Eu prefiro South Park Mineira. Vivendo em São Paulo, não me sinto tão compelido a fotografar, a não ser alguns trabalhos comerciais que surgem vez ou outra. Então passei a olhar – mais ainda – para mundos virtuais.

Não confundir com Inteligência Artificial. Fotografia em mundos virtuais (Virtual Photography ou In-Game Photography) é, basicamente, a fotografia feita dentro de videogames. Na publicidade há fotógrafos especializados em mundos virtuais clicando principalmente para ações de marketing das desenvolvedoras desses jogos. Por outro lado, há pelo menos 20 anos artistas interessados em novas mídias sacaram a potência dos mundos virtuais e utilizam os videogames como ferramenta artística.

Fotos em mundos virtuais podem ser feitas printando ou gravando a tela. Jogos de “mundo aberto” (tipo de jogo em que o jogador pode explorar um ambiente livremente, sem restrições de caminho ou progresso linear), entretanto, com frequência disponibilizam o “modo fotografia”. Neste modo, a gameplay (o jogo em si) é interrompida completamente e o jogador passa a operar uma câmera virtual tão complexa quanto uma câmera real, escolhendo desde distância focal e abertura da lente, até se deseja grãos de filme ou não. Decisões que tornam questões como “mas fotografia virtual é fotografia?” obsoletas.

Todo gamer que eu conheço já sonhou em se ver dentro de um jogo. Imagine não só ter a experiência imersiva natural dos videogames, mas também olhar para a tela e pensar “caramba, esse personagem parece comigo!”. Com isso em mente, nos últimos meses tenho baixado jogos de diversas gerações e me perguntado: como uma pessoa preta, até onde posso me encontrar nesses mundos virtuais?

Desse pensamento surgiu X1, um projeto de fotografia em novas mídias que parte do autorretrato para imaginar figuras de negritude em mundos virtuais, através da criação de personagens. Nos videogames, X1 é a abreviação de confrontos “um contra um”. Na minha perspectiva, é não somente o confronto da autoimagem inerente aos autorretratos, mas também o confronto com a máquina.

Partindo daí, em uma ordem cronológica, decidi traçar uma linha do tempo da presença de negritude em mundos virtuais em alguns jogos lançados entre 2000 e 2025, de diversos gêneros (RPG, esportes, ação e aventura).


WWF Warzone (1998) e Tony Hawk’s Pro Skater 2 (2000)

WWF Warzone e Tony Hawk’s Pro Skater 2 são dois jogos pioneiros na criação de personagem. Aqui, tudo ainda era muito limitado: as faces são sprites pré-definidas, ou seja, fotos de pessoas feitas no mundo real e inseridas no jogo, sem possibilidade de alterar detalhes. Os personagens ficaram esquisitíssimos e tenebrosos, culpa dos rostos pré-definidas. No Tony Hawk’s, pelo menos, dá para usar umas roupas legais de skate. O maior problema das pessoas pretas em mundos virtuais já se apresentava: os cabelos.


Tony Hawk’s Underground Project (2003)

Na sexta geração, os jogos abandonaram as faces pré-definidas. Mas as alterações em detalhes do rosto ainda tinham muitas limitações. As escolhas de cabelo para pessoas pretas se limitavam entre o afro estilo Jacksons 5, a trança do R. Kelly e o cabelo raspado em casa com má vontade. A solução aqui, como em muitos jogos, é colocar um boné ou chapéu. Pelo menos consegui colocar roupas que uso na vida real, o que fez meus amigos acharem o personagem bem parecido.


Def Jam: Fight for NY (2004)

Def Jam: Fight for NY é um jogo de luta que transporta artistas do hip-hop do mundo real, como Snoop Dogg e Xzibit, para uma Nova York virtual, onde eles devem sair na mão pelo controle da cidade. Def Jam é um sucesso imenso entre pessoas pretas. A expressão da negritude contemporânea está em todo o lugar neste jogo, não somente nas características físicas. Está na música, nas roupas e correntes, nas tatuagens e tênis, nas gírias e dialetos. A negritude aqui está na cultura — que é a principal ferramenta de manutenção de toda comunidade, principalmente na diáspora. Há ainda as limitações tecnológicas da época, mas mesmo assim Def Jam entende seu público e adiciona duas coisas simples, mas sem precedentes na criação de personagem: cabelo disfarçado e pezinho feito na régua.

Cabelo é um demarcador racial extremamente forte, mesmo em grupos tão miscigenados como na população brasileira. Mesmo nos dias de hoje, jogos que compreendem a pluralidade dos fenótipos de pessoas pretas, como nariz, boca, cabelos e suas texturas, são exceção. Não é raro eu baixar um jogo empolgadaço para jogar e criar meu personagem, e dar com a cara na porta. Você se imagina criando um samurai, ou até um pirata negro, mas simplesmente não consegue. Pior, você abre a criação de personagens e vê 20 variações de cabelo toscos, de Lord Farquaad até Nino do Castelo Rá-tim-bum — e tá tudo bem.  Mas NENHUM cabelo negro decente. Def Jam: Fight for NY não é um grande jogo, mas aqui merece destaque. Ele evidencia que a presença de pluralidade racial em mundos virtuais só é resolvida com a presença de pluralidade racial nas equipes de desenvolvedores no mundo real.


Soulcalibur 3 (2005)

Soulcalibur é um jogo de luta em que lagartos lutam contra demônios que lutam contra humanos guerreiros que lutam contra humanos piratas – mas há só um negro. E careca, obviamente. Dois negros carecas, agora que eu me fiz. Na criação desse jogo, você pode ser azul ou verde, mas os tons que mais se aproximam de pele negra são meio que tons de laranja em diferentes luminosidades, de forma que nunca fica satisfatório.


The Godfather (2006)

Quando descobri que tinha um jogo de O Poderoso Chefão já foi uma alegria imensa. Agora, com customização de personagem? Eu preciso ver isso. Minha curiosidade maior era para saber até onde Vito Corleone permitiria a existência de um homem negro na máfia italiana nos anos 50. Para minha surpresa, foi o jogo da geração em que mais consegui me encontrar. É bem verdade que não dá para ser um negro de pele escura, no máximo pardo, mas somado ao cabelo crespo/cacheado de alguns italianos e os traços grossos, o resultado ficou bem decente.


Pro Evolution Soccer 2009 (2008)

Esse foi o primeiro jogo que me lembro de gastar horas e horas no menu de criação. Há o modo “Rumo ao estrelato”, onde você pode criar o seu próprio jogador e partir de um pequeno time em busca do sucesso no futebol. Uma coisa curiosa que acontece em jogos de esporte, como Winning Eleven e NBA 2K, é que eles simplesmente lembram que pessoas negras existem. Acredito que seja porque os desenvolvedores precisam se basear em pessoas que de fato existem no mundo real. Ronaldinho Gaúcho e Edgar Davids sempre foram marcados por seus cabelos, que estão disponíveis no jogo. Desde que foi inserida no PES 2009, a criação de personagem em jogos de futebol tem se tornado cada vez mais complexa e plural, como é o futebol mundial. Centenas de opções de olhos, narizes, bocas. Magnífico para a época. Nos jogos de futebol de hoje é possível alterar os mínimos detalhes e, se você tiver uma boa percepção de si mesmo, ficar idêntico. Vide o trabalho do Androliva.


Mass Effect 2 (2010)

Que o branquelo está na lua, Gil Scott-Heron já nos avisou em 1970. Mas estão os pretos no espaço? Em Mass Effect, felizmente, sim. Por outro lado, permanece o problema do cabelo, e eu me sinto repetitivo a este ponto. Bom, pelo menos consegui lançar um risquinho na sobrancelha, mesmo tendo chegado em um personagem que mais se parece com o Mano Brown do que comigo.

Falando mais uma vez sobre como demarcadores culturais são demarcadores de raça: o cabelo vermelho foi homenagem ao rapper Oruam, que lançou tendência dominante nas favelas cariocas no início deste ano. Outra alternativa é o cabelo descolorido — o famoso “nevou”, originalmente conhecido como “loiro pivete” —, símbolo de negritude no Brasil e destaque no hino da Mangueira em 2025.

Mass Effect também tem um dos modos de fotografia mais interessantes de todos os jogos que joguei, e não duvido que tenha sido base para jogos que vieram depois.

Skyrim (2011)

Skyrim é um dos meus jogos favoritos, e um dos mundos virtuais mais ricos, criativos e divertidos da história dos videogames. É um jogo relativamente recente, sem a desculpa de limitação de hardware como os jogos do início do milênio. No entanto, um negrão não será capaz de parecer um negrão nesse jogo, a menos que escolha um cabelo raspado, ou se forçar uma trança nórdica com moicano. Você também pode buscar algo como Tyler, The Creator com a peruca de IGOR ou o personagem “transracial” da série Atlanta.

Algumas pessoas argumentam que a razão dessa ausência acontece pelo fato de que alguns jogos de fantasia serem ambientados no tempo e espaço de algo parecido com a Idade Média, onde pessoas pretas não eram necessariamente presentes. Mas, no final das contas, é um jogo de FANTASIA! Nada disso é real. Você pode ser um elfo, ou até um goblin. Mas preto? Preto você já tá querendo demais.

Não tem ninguém pedindo nada complexo, mas será que podemos ter, sei lá, cabelo disfarçado? Tranças nagô, locs, twist, dreads? Como já visto, jogos de esporte lembram que pessoas pretas existem. Mas eu quero que o guerreiro-dragão prometido pela profecia como salvador da humanidade também possa ser um negrão com corte de cabelo bolado e parecido comigo, se não for pedir muito.

Nestes casos, uma solução que tenho encontrado é aproveitar o gênero da fantasia para criar personagens que sejam retratos de minhas emoções e/ou sentimentos. Um ogro pode representar minha raiva, ou um gato falante pode ser um retrato do meu ego sem julgamentos — o gato preto da sexta-feira 13.

Hogwarts Legacy (2023)

Os três tipos de cabelo preto em videogames (tranças, afro e raspado) viviam em paz e harmonia, até que o “cabelo do Killmonger” atacou. De Miles Morales (Homem-Aranha) ao herói Phoenix de Valorant, passando pelo protagonista de Prince Of Persia: The Lost Crown, o corte do antagonista de Pantera Negra (2018) rapidamente passou de uma novidade que se afastava das tranças e afros estereotipados dados aos personagens negros, ao ponto de se tornar ele mesmo um estereótipo. Seu uso excessivo fez do corte um símbolo de um setor raramente interessado em retratar a existência negra com precisão. O próprio Killmonger em Pantera Negra teve QUATRO variações de cabelo. Parece que o “cabelo do Killmonger” foi uma maneira fácil (e preguiçosa) que a indústria achou de adicionar representatividade. Positivamente, esse não é o caso de Hogwarts Legacy.

É bastante nítido quando há pessoas negras desenvolvendo jogos. Apesar das controvérsias envolvendo J.K Rowling, autora de Harry Potter — universo onde o jogo se baseia — e seus ataques transfóbicos, Hogwarts Legacy talvez seja o jogo que melhor desenvolveu cabelos negros em termos de textura, comprimento e variações até hoje. O negócio é tão refinado que virou tendência entre gamers pretos, que passaram a compartilhar em massa imagens de seus personagens, com frequência parecidos com os trappers do Migos sendo transportados para um mundo mágico no século 19.

Em Hogwarts Legacy, assim como em Baldur’s Gate 3 e outros jogos da geração atual, jogadores podem personalizar aparência, a identidade de gênero e voz de seus personagens, permitindo assim a criação de personagens trans. Nos jogos de linha narrativa mais aberta, a criação de personagens mulheres existe desde que a criação de personagens passou a existir (ainda que com limitações semelhantes às masculinas para criação de mulheres pretas). Já em jogos como The Godfather, a narrativa subjuga a criação de personagem e o jogador precisa ser do gênero masculino. Nos jogos de futebol as mulheres são uma inserção bem recente, com a presença de times (e personalização) femininos datando de 2017 — uma evidência de que progressos nos mundos virtuais acompanham progressos do mundo real. Com maior inclusão de pessoas pretas e de outras minorias em mundos virtuais, talvez o inverso também possa ser possível.

Representatividade não é o messias das pessoas pretas. No entanto, há algo de poderoso em se ver reconhecido de maneira digna em pinturas, na TV, no cinema, no mundo — inclusive nos mundos virtuais. Tomar o controle de uma câmera virtual, portanto, adquire o mesmo significado de tomar controle de uma câmera real: contar a própria história. Se ver representado afirma a autoestima, e sair da invisibilidade é inevitavelmente uma ferramenta de propulsão na vida de comunidades marginalizadas. ///


João Medeiros (Juiz de Fora – MG, 1996) é artista visual e jornalista com especialização em cultura. Em sua pesquisa artística a juventude negra brasileira é o tema que articula uma diversidade de meios de expressão, entre eles a escrita, a fotografia e a videoarte. Retrato, masculinidades, e acesso ao lazer são seus principais interesses. No jornalismo, produz sobre música popular contemporânea e novas mídias.

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