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Sertão infinito

Ronaldo Entler Publicado em: 10 de outubro de 2024
Da série Sertão Interior, de Alexandre Severo, 2013


Há dez anos, morria o fotógrafo Alexandre Severo. Nascido em Recife, tinha 36 anos e havia construído uma carreira consistente no fotojornalismo. Alguns ensaios publicados em jornais de sua cidade tiveram grande repercussão e circularam em lugares diversos do Brasil e do mundo. Por suas imagens e sua prosa, Severo se tornaria figura querida e muito conhecida nos encontros de fotografia país afora. Sem ansiedade com o sucesso, optou por diminuir seu ritmo de trabalho para voltar aos estudos. Em 2013, mudou-se para São Paulo para cursar a Pós-graduação em Fotografia da FAAP. Foi lá que o conheci. Quando estava prestes a concluir esse curso, foi contratado como fotógrafo da campanha de Eduardo Campos nas eleições presidenciais de 2014. Estava no avião que levava o candidato e sua equipe em uma viagem pelo estado de São Paulo e que, em meio a um temporal, caiu na cidade de Santos.

O que Severo deixava era uma potência já demonstrada com sobra, materializadas em imagens que, no entanto, ele gostava de gestar coletivamente, em conversas afetivas que ele ia recolhendo pelo caminho. Era um processo lento. O que ficou para muita gente foi o sentimento de um diálogo em suspensão, sempre adiado por um “calma, já te conto mais, já te mostro mais. Não tá pronto ainda…”.

Naquele momento, Severo dava continuidade a uma reflexão iniciada com o ensaio Sertanejos, reedição de uma série de retratos publicados originalmente em 2009 num caderno especial do Jornal do Commercio de Pernambuco que celebrava os cem anos da morte de Euclides da Cunha. Esses retratos trazem poses bastante convencionais, mas incluem corpos, comportamentos e cenários poucos codificados pelas representações daquele lugar. Lembro bem de uma pergunta tão simples quanto desconcertante lançada por Severo quando ele apresentava esse trabalho à sua turma da Pós-Graduação: “claro, a fotografia do sertão… Mas qual sertão e qual fotografia?”

Havia, talvez, uma outra razão para Severo trazer essa pesquisa para São Paulo. Aqui, desde um Sudeste que define o Nordeste como seu avesso, era ainda mais fácil encontrar aquilo que seu ensaio afrontava. Bastaria fechar os olhos para buscar a imagem desse sertão em que nunca estive. Rapidamente eu veria a terra rachada, a ossada do animal, a casinha de taipa no meio do nada e muitos rostos marcados pelo sofrimento. Veria um padre Cícero sempre estático e um cangaceiro provavelmente caolho que já teve muitos rostos. Poderiam aparecer xilogravuras de capas de cordéis, com imagens que certamente já vi e esqueci, mas que eu recriaria com facilidade. Poderia até ouvir o som de uma sanfona e de um triângulo. Essas imagens são de domínio público, mas, se fosse preciso, eu poderia projetar nelas assinaturas de peso, como as Gilberto Freyre, Glauber Rocha ou Luiz Gonzaga.

No ensaio publicado no JC, Severo busca evidências de transformações culturais que afrontam o arcadismo que supomos definir o sertão. Ainda reconhecemos tradições que, no entanto, parecem ter aprendido a sobreviver em movimento. Entre seus sertanejos, alguns bastante típicos, estão também uma vaqueira, um grupo de b-boys, uma travesti, um jovem empreendedor que vende e aluga cds e filmes piratas, um padre diante de uma parede repleta de ex-votos fotográficos.

Com um enquadramento mais aberto do que o esperado, Severo nos permite ver não apenas elementos da paisagem, mas seus artifícios técnicos: os limites do tecido que serve como fundo dos retratos e as tochas de luz artificial que dão detalhes àquelas fisionomias. Esse recurso, que já havia sido explorado por outros autores, adquire aqui um sentido de urgência: revelar o dispositivo é desnaturalizar o discurso da fotografia e evidenciar que a imagem se constrói a partir de uma intervenção. Essa abertura de enquadramento equivale a assumir um lugar de fala, orientado por um aparato que chega em sua bagagem e, principalmente, por perguntas pautadas desde outro lugar. Em contrapartida, essas mesmas imagens sugerem que esse universo da técnica já não é tão estranho àquele lugar.

Da série Sertanejos, de Alexandre Severo, 2009

Vemos ali que a fotografia é espalhafatosa, ruidosa, e mobiliza todo o ambiente. Se ela nos parece transparente e discreta é porque naturalizamos a submissão que a técnica impõe sobre o corpo representado, como se ele estivesse sempre vocacionado para as imagens que desejamos produzir dele. Se Severo não tem como escapar desse exercício de poder, o que lhe resta é explicitar o modo como se dá essa negociação. 

Em 2013, esse ensaio ainda reverberava e esteve no centro de um importante evento acadêmico, o 5o Theoria, organizado pelo Museu do Homem do Nordeste, em parceria com Universidade Federal de Pernambuco, em torno do tema “O futuro do passado do Nordeste”. José Afonso Junior, professor da UFPE e curador do evento, lembra que o Nordeste é uma invenção que se dá na primeira metade do século20, dentro de um binarismo que pretendia antagonizar a parte rica e a parte pobre, a parte desenvolvida e a parte atrasada do país. Ali se definem eixos que, conforme o historiador Durval Muniz de Albuquerque Junior (A invenção do Nordeste e outras artes, 1999), passarão a definir identidade do Nordeste, como a seca, o messianismo, o coronelismo e o cangaço. Mas Afonso Junior observa que, na primeira década deste século, o Nordeste havia passado por transformações significativas por conta de políticas públicas focadas na região, que também encontravam respaldo em novas manifestações estéticas, nos hábitos e nos discursos que ali se produziam. Ele reconhecia no trabalho de Severo as evidências dessa mudança e, principalmente, o esforço de dar representação a elas.

No Theoria, dividi uma mesa com Severo. Tentando emular sua estratégia de “revelação do dispositivo”, falei de um outro sertão que, naquele momento, eu descobria pelo enquadramento do cinema, especialmente por obras que se aproximavam da estratégia do roadmovie, como Cinema, Aspirinas e Urubus (2004), de Marcelo Gomes; Árido Movie (2006), de Lirio Ferreira; Deserto Feliz (2007), de Paulo Caldas; Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009), de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes; e Olhe pra mim de Novo (2010), de Kiko Goifman e Cláudia Priscila. Nesses filmes, o automóvel se torna o dispositivo de enquadramento, produzindo um olhar em trânsito e impuro, e mostrando uma paisagem movente, às vezes, borrada e indecifrável.

Da série Sertão Interior, de Alexandre Severo, 2013

Em sua fala, Severo percorreu o caminho que o levou da série Sertanejos à pesquisa que, então, realizava em sua Pós-Graduação. Era também uma passagem do retrato para a paisagem, e quase do documentário para a ficção. Ele chamava esse trabalho de Sertão Interior. Ciente de que território e representação se inventam simultaneamente, Severo preferia responder a essa pergunta esgarçando os limites dessa relação. Sua proposta não era tanto a de corrigir essa imagem, restaurar uma verdade ou produzir reparação. Ao contrário, trava-se de assumir seu sertão como imaginário. Um imaginário que, justamente por ser assumido, torna-se também mais livre, movente e desapegado das chaves que usualmente encaminham a compreensão daquele território. Agora, em vez de levar sua luz artificial, ele dispensou a luz que ali reconhecemos como natural. Fotografou o Sertão entre o fim da tarde e a noite. Em lugar do sol árido, vemos uma paisagem feita de cores frias, muito suaves ou quase ausentes. Em vez da terra rachada, vemos o grão aparente de uma imagem que parece custar a se revelar.

É desconfortável mostrar um trabalho que nunca foi concluído, a não ser diante da hipótese de que talvez esse sertão que ele buscava não teria mesmo fim. Essas imagens não são exatamente inéditas. Severo circulava com ela em prints pequenos que gostava de espalhar sobre a mesa. Algumas delas foram mostradas na Galeria Arte Plural, de Recife, e na Doc Galeria, de São Paulo, após sua morte. Mas é certo que não foram vistas o suficiente.

Encontrei também algumas anotações que Severo me mandou, no momento em que planejávamos nossa fala no Theoria. Ele diria: “calma, não é um texto, não tá pronto ainda”. Mas é bonito ver essas palavras intercaladas com as imagens.

Estive distraído. Deixei de lado o essencial, para me entreter com o transitório.

Mais importante do que nascer é ressuscitar.

Posso me esconder de mim? Não, me resta buscar algo. Mas o que? Não sei. Só que sem procura, não há revelação.

O que eu buscava naquela paisagem do sertão não era a seca da terra e sim o que tava seco dentro de mim.

… “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia” [Guimarães Rosa].

É sempre assim: a verdadeira viagem é a que fazemos dentro de nós. A viagem não começa quando se percorrem distâncias, mas quando se atravessam as nossas fronteiras interiores.

A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai do sertão é tomando conta dele adentro.

Qual sertão e qual fotografia?

O valor dessa pergunta está no fato de que ela nos convida a reconhecer a instabilidade das duas coisas. Por isso, a questão merece ser recolocada. Relancei essa pergunta a colegas que pesquisam a fotografia e vivenciam o sertão. Parece haver hoje uma perspectiva mais consolidada que situa mais claramente as bases históricas que construíram certa representação do Nordeste. Essa perspectiva tem garantido também a circulação de formas diversas de autorrepresentação e referências para uma atuação mais crítica dos olhares que chegam de fora. Mas esses esforços não anulam os efeitos dos problemas históricos e não são livres de riscos próprios. Essa é uma conversa que está em curso e será o tema de um artigo próximo desta coluna. ///

Ronaldo Entler é pesquisador, crítico de fotografia, professor e coordenador de pós-graduação da Faculdade de Comunicação e Marketing da FAAP (SP). Edita o site Icônica.

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