Revista ZUM 26

Sinais dos tempos

Lotty Rosenfeld & Alexia Tala Publicado em: 20 de junho de 2024

Lotty Rosenfeld instalando Uma milha de cruzes sobre o pavimento, Santiago, Chile, 1979

Instalação de Uma milha de cruzes sobre o pavimento: no topo, na Casa Branca, Washington, D.C., Estados Unidos (1982); acima, Acrópolis, Atenas, Grécia (1996), palácio de La Moneda, Santiago, Chile (1985), e Pinacoteca do Estado de São Paulo, Brasil (2011)

O aniversário de 50 anos do golpe militar de 1973 contra o governo eleito do presidente Salvador Allende é um momento oportuno para refletir sobre artistas chilenos cujas práticas foram dissidentes – não foram muitos. Desses, destaca-se a obra de Lotty Rosenfeld, tanto individualmente como por meio do Colectivo de Acciones de Arte (CADA), que contava ainda com o artista Juan Castillo, o sociólogo Fernando Balcells, a escritora Diamela Eltit e o poeta Raúl Zurita. Poucos meses antes de falecer, Rosenfeld refletia comigo sobre os sentidos da arte dissidente: “A relação arte/política não significa dizer que a arte tematiza a política. O trabalho da arte exige que repensemos a política.” Sua obra, que tem início há quase meio século, atualiza-se cada vez que é mostrada, pensada, estudada. “Meu trabalho permanece interrogando as ordens sociais, desde a ditadura chilena até o presente mais imediato.”

Durante a ditadura militar de Augusto Pinochet, a participação de Rosenfeld nas ações de arte do CADA conferiu força e significado a seus trabalhos individuais, levando-a a reformular seu papel como artista e a refletir sobre o tempo e a impermanência. A filósofa Hannah Arendt diz que a habilidade mais importante do ser humano é criar o futuro. Atrevo-me a dizer que, sempre atenta ao que viria depois, Rosenfeld teve antes que abandonar o passado, por meio da subversão – por exemplo, fez intervenções com sua icônica cruz marcando o chão diante de locais de poder e de símbolos de concentração econômica.

O passado está presente na maioria de suas obras, por meio de referências fotográficas a trabalhos anteriores, de notícias antigas, mescladas a imagens de tv e da internet, e até mesmo de imagens médicas. Essas imagens saltam de uma obra para outra, procedimento que em alguns textos chamei de “arquivo-vocabulário” e que se relaciona com a temporalidade. Esses flashbacks fotográficos nos levam por uma viagem espaço-temporal que aponta sempre para um futuro incerto. A obra de Rosenfeld que melhor retrata isso é, sem dúvida, Moção de ordem (2002), que a artista sempre considerou sua obra-prima.

Moção de ordem começou a ser realizada em 2001, e foi exibida no ano seguinte em Santiago, no Chile. A obra consiste em diversas intervenções para uma videoinstalação expandida, com múltiplas projeções de fotografias e vídeos em diversos espaços públicos e institucionais: o Museu Nacional de Belas-Artes, o Museu de Arte Contemporânea, a Galeria Gabriela Mistral, o Centro Cívico, o metrô, todos em Santiago, além de caminhões, paredes e até o estreito de Magalhães. Esses locais sofreram intervenções com dez projetores multimídia, 10 dvds e 16 fontes sonoras.

Uma milha de cruzes

Para refletirmos sobre o lugar do vídeo em Moção, parece-me importante primeiro considerar a trajetória da artista. Pelo menos dois aspectos da obra merecem destaque: um deles diz respeito à sua condição híbrida, como lugar próprio para levantar questões sobre a relação entre o suporte audiovisual e as intervenções site-specific; o outro está ligado à memória, ao significado que o trabalho de Rosenfeld adquire em termos históricos.

Tudo deriva de Uma milha de cruzes sobre o pavimento (1979), obra que se tornou lendária na história da intervenção urbana no Chile ditatorial e crucial para a compreensão da arte contemporânea latino-americana, por carregar em si mesma a memória das formas de resistência cultural em contextos de violência de Estado que caracterizaram os países do continente entre as décadas de 1960 e 1980. É importante o vínculo direto entre essa primeira intervenção e a participação de Rosenfeld no CADA. O paradigma inaugurado pelas ações urbanas desse coletivo interdisciplinar representa um capítulo fundamental nas produções da neovanguarda chilena, o que a teórica da cultura Nelly Richard chamou de “Cena de Avançada”.

Uma milha de cruzes representa uma espécie de transgressão, de diálogo entre o visual e o espacial que ganha forma por meio da intervenção, e deu origem a diversas outras obras, tendo como desdobramento atípico Moção de ordem (2002). Diferentemente de todos os seus outros trabalhos, Moção de ordem representa um paradigma na carreira de Rosenfeld, ampliando seu “arquivo-vocabulário” ao espaço, pelo modo como a obra põe em funcionamento diferentes usos dos suportes. Para ler essa obra na chave adequada, contudo, precisamos antes compreender seu vínculo com as cruzes, obra que demanda uma espécie de corporificação, passando do visual ao espacial e pressionando um formato sobre o outro.

Em 2019, completaram-se 40 anos da primeira intervenção de Rosenfeld, fio condutor de sua trajetória artística, cujos desdobramentos, ao longo dos anos, consolidaram sua importância no âmbito da produção latino-americana. Essa ação aparentemente simples foi ganhando densidade simbólica ao ser proposta em diferentes momentos e contextos. Hoje podemos analisá-las retrospectivamente e pensar a operação estrutural da cruz como uma coluna vertebral no universo da obra de Rosenfeld. Cabe descrever brevemente em que consiste: Uma milha de cruzes sobre o pavimento corresponde à intervenção da linha descontínua na avenida Manquehue, na zona oriental da cidade de Santiago. A artista colou linhas perpendiculares brancas no asfalto, uma após outra, formando o signo “+”, ao longo de uma milha [1,6 quilômetros], como diz o título. Um mês depois, Rosenfeld realizou uma videoprojeção no mesmo local, cujo conteúdo é o registro da intervenção em vídeo e em 35 mm, em duas telas instaladas na mesma avenida, como sinais de trânsito. O ato de “desobediência” de se apropriar da sinalização pública tem relação com a própria natureza do signo “+”, que fica aberto a reinterpretações (voto eleitoral, sinal da morte etc.). A intervenção de uma milha foi realizada em outros três lugares: Kassel, Alemanha, em 2007; Cali, Colômbia, em 2008; e Nova York, EUA, em 2008; e reencenada com uma só cruz em diferentes países durante essas quatro décadas.

Uma milha de cruzes sobre o pavimento está presente direta ou indiretamente em todas as obras posteriores da artista, sendo Moção de ordem a primeira em que a imagem e a materialidade da cruz são substituídas – uma exceção, talvez, seja Proposta (entre) cruzar espaços-limite, de 1983, realizada entre as fronteiras das duas Alemanhas, na qual a artista completa a cruz com seu próprio corpo.

Moção de ordem (2002): no topo, projeções na entrada de estação de metrô, em agência dos Correios e no palácio de La Moneda, no Centro de Santiago; acima, na galeria Gabriela Mistral.

Moção de ordem

Moção de ordem é uma obra complexa, que envolve registro fotográfico e vídeo, intervenção com o registro da própria intervenção e videoprojeção como instalação em galeria. Em suas duas versões – uma realizada em Santiago, em 2002, e a outra em Sevilha, em 2013 –, a obra consiste em um vídeo que mostra a videoprojeção de uma fileira de formigas sobre o heliporto de uma plataforma petrolífera situada em pleno mar do estreito de Magalhães. A câmera filma de um helicóptero, sustentada por um guindaste. No vídeo, o caminho das formigas, formando um sinal de “+”, é interrompido por um dedo e rapidamente se desordena. O gesto de interrupção alude à transgressão perante as formas de disciplinamento do poder, retomando a ideia da resistência não violenta que aparece de diferentes maneiras na obra de Rosenfeld. O áudio desse vídeo é composto de diversos sons, misturando ruídos de rádio, grilos e o som do mar, mas sobressai a voz feminina de Diamela Eltit interpretando o monólogo de Molly Bloom, personagem de Ulysses, de James Joyce.

Às imagens das formigas se juntam outras, como noticiários televisivos e documentários históricos. Guantánamo, Mohammad Ali, George W. Bush, os franco-atiradores da Bósnia e imagens de representantes mapuche utilizadas em uma obra anterior – A Guerra de Arauco (2001) – aparecem mesclados. Ao fundo, ouvimos uma frase que se repete: “Este país não tem memória, realmente não tem memória”.

Essa obra representa um passo importante na trajetória da artista – talvez mesmo um desvio – no que tange à utilização dos suportes, destacando-se em seu corpus de trabalho.

Podemos identificar duas linhas desenvolvidas por Rosenfeld ao longo de sua carreira. A primeira corresponde ao aspecto audiovisual propriamente dito. Em geral, ela se dá na forma de um corpo de imagens composto de fragmentos de procedências distintas – fotografia e vídeo da internet, da televisão e de produção própria –, articuladas por meio de estratégias de montagem. Nessa linha, há uma reflexão em torno de algumas questões: a imagem-fragmento; a composição e a montagem; e, talvez a mais importante, a noção de arquivo (que retomarei adiante). É nesse sentido que o vídeo explora principalmente suas possibilidades expressivas, poéticas, narrativas e estéticas.

Moção de ordem (2002): projeções no heliporto de uma plataforma de petróleo no estreito de Magalhães, imagens da instalação na galeria e frames de vídeo da obra.

Rosenfeld explora a ideia de que o poder das imagens se articula não com base em si mesmas, mas na montagem de várias imagens, como se estas fossem ativadas por meio de seu vínculo forçado, gerando exercícios dialéticos. Diante do acúmulo de arquivos e mais arquivos, esses encontros incessantes acabam produzindo uma nova relação dialética, um efeito de interpretação sempre dinâmico. A cineasta Hito Steyerl, em Os condenados da tela (Los condenados de la pantalla, 2014), diz: “É uma total mistificação pensar a imagem digital como clone reluzente e imortal de si mesma. Pelo contrário, nem sequer a imagem digital está fora da história. Ela porta as feridas de suas colisões com a política e a violência. […] As feridas das imagens são suas falhas técnicas, seus glitches, as marcas de suas cópias e transferências. As imagens são violadas, rasgadas, submetidas a interrogatórios e postas à prova.

São roubadas, recortadas, editadas e reapropriadas. São compradas, vendidas, alugadas. Manipuladas e idolatradas. Ultrajadas e veneradas. Participar da imagem significa ser parte de tudo isso.” Vem daí o conceito de “imagem pobre” – imagem de má qualidade técnica que viaja pela internet. Essa materialidade “pobre”, altamente disponível, da qual se alimenta a obra de Rosenfeld, tem relação não apenas com o conteúdo das obras, mas com sua condição de produção, com a perda constante de sua aura, em seu caráter transitório e sempre disponível para a apropriação.

A segunda linha, não de todo alheia à primeira, remete às intervenções da cruz no espaço público, que são registradas em suporte fotográfico e audiovisual. O uso do suporte, então, alinha-se mais com a documentação da intervenção, sempre efêmera, pois, sem o registro, ela não poderia sobreviver no tempo. Nessas ações no espaço público, mantém-se o suporte, mas este é subordinado ao resgate da presença, do “aqui e agora”, que é condição da intervenção pública. Nesse contexto, o signo da cruz é o protagonista, com sua irrupção no espaço público, profanando e negando sua ordem por meio da sinalização. Essas ações, como toda obra site-specific, refletem-se sobre o lugar conforme o contexto. As relações do signo com o espaço abarcam as dimensões histórica e política dos lugares e os pontos específicos submetidos à intervenção. A condição de site-specific se dá nessa dialética contextual que o signo gera: um “+” aqui significa uma coisa, e ali, outra.

Arquivo-vocabulário

O que torna Moção de ordem tão especial? Ambas as linhas de sua obra – aquela ligada à criação audiovisual e a do registro da intervenção – têm um encontro muito peculiar nessa obra. Trata-se de uma videointervenção e, ao mesmo tempo, de um arquivo visual autorreferente. É importante destacar essa “camada de uso”, a dos registros da obra autoapropriados em versões futuras de vídeo, em que as imagens produzidas se misturam com as imagens encontradas. É assim que a artista faz o arquivo se retroalimentar e crescer exponencialmente, expandindo o que antes chamei de “arquivo vocabulário”.

Essa é uma questão transversal na obra de Rosenfeld, que permite que seu trabalho possa ser lido como um único grande arquivo em constante ampliação e desenvolvimento, inclusive incorporando registros das próprias obras. Mas, no caso de Moção de ordem, essa prática recorrente tem uma origem audiovisual, um vídeo de caráter conceitual projetado em um espaço real isolado – o da plataforma de petróleo –, que vai se amplificando conforme o desenvolvimento da obra. É uma autorreferência duplamente expandida: a intervenção que ocorre no espaço público é incorporada ao vídeo, que, por sua vez, é projetado no espaço público, que então volta a aparecer na montagem da videoprojeção na galeria.

Chegamos a uma questão fundamental, que se relaciona com o universo da instalação que se abre a cada montagem em galeria, em que o vídeo se dispõe a pensar também o espaço sensorial do “cubo branco”. Há múltiplas possibilidades de leitura, e isso tem relação com a natureza do trabalho e com aquilo que a artista planeja. Desse modo, as futuras montagens de uma obra como Moção de ordem permanecem no paradoxo da “montagem aberta”: a obra cresce em seu arquivo, mas está sempre suscetível a ser ampliada ou reduzida no espaço expositivo.

A primeira montagem em galeria de Moção de ordem, uma vez executadas as videointervenções e obtidos seus respectivos registros, consistiu no seguinte: em uma primeira sala, há cinco telas com fileiras de formigas; à direita, outras cinco telas com as outras imagens. Em outra sala, vemos o vídeo correspondente à intervenção na plataforma de petróleo. Na montagem posterior, a artista incluiu também as imagens das intervenções.

A solução que Rosenfeld planejava para uma terceira montagem, pouco antes de falecer, é sumamente sugestiva: sua ideia era acrescentar um carrossel de diapositivos que mostrasse as intervenções com as formigas nas diferentes locações. Essa montagem possível ajuda a entender um pouco melhor a importância da pós-produção em termos instalativos na experiência da obra, e o seu caráter não só cumulativo, mas também autopoético.

Uma montagem que incorpora outros elementos instalativos, novas imagens, continua sendo a mesma obra? O que é então Moção de ordem, pensada pelos seus suportes, suas funções e seus resultados? A resposta da artista é taxativa: “Tudo em seu conjunto, um conjunto que sempre busca crescer”.

O fator de reincorporação da documentação da obra adquire então uma dimensão artisticamente propositiva em sua apresentação. Ou seja, embora Moção de ordem deva ser pensada pela noção de vídeo expandido, a obra deve ser considerada também em relação às decisões formais e mesmo técnicas que implicam seu ingresso no espaço expositivo. A experiência de um espectador em um lugar ou outro, com determinados elementos em vez de outros, modifica não apenas o sentido da obra em um aspecto visual-sensorial (o espaço), mas também as relações que o conteúdo visual (imagem) estabelece. Ambos são necessariamente imbricados pela experiência da prática situada – intervenções site-specific –, que é a origem de tudo.

O diálogo necessário entre intervenção e registro vai abrindo possibilidades de interpretação e proporcionando experiências físicas e sensoriais que levam a questionar nossa relação com os espaços de poder e com a história. Esse é, afinal, o valor de obras como Moção de ordem e Uma milha de cruzes sobre o pavimento, ao destacarem a relação entre as intervenções, a fotografia e o vídeo, e do legado subversivo de Lotty Rosenfeld. ///

Imagens: cortesia de Alexia Tala. © Fundación Lotty Rosenfeld.

Lotty Rosenfeld (Santiago, Chile, 1943-2020) é artista e participou do movimento neovanguardista de artistas e escritores Escena de Avanzada, da Documenta 12, em Kassel, da 3a Bienal de Cali e da 5a Bienal de Xangai, entre outras.

Alexia Tala (Santiago, Chile) foi curadora-chefe da 22a Bienal de Arte Paiz na Guatemala, diretora artística da Plataforma Atacama e curadora da 8ª Bienal do Mercosul, entre outras. Foi pesquisadora convidada do Museu da Solidariedade do Chile.

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