O espanhol Joan Fontcuberta fala sobre fotografia e a decadência da mentira no festival Solar, que começa hoje em Fortaleza
Publicado em: 5 de dezembro de 2018De passagem por Fortaleza, onde participa da primeira edição do Fotofestival Solar, o fótografo e escritor catalão Joan Fontcuberta respondeu algumas perguntas sobre seu trabalho, principalmente em torno da pós-verdade e fake news, temas que sempre abordou em seus projetos. “Cada época adota seu regime de verdade. Hoje vivemos o regime da ‘mentirocracia’. Apesar de assistirmos à irrupção furiosa da pós-verdade e dos fatos alternativos, o paradoxo é que, para manipular, hoje em dia não é preciso nem mentir”, comenta Fontcuberta.
Ao redor do tema Abismo, o I Fotofestival Solar, que começa hoje na capital cearense, apresentará exposições, debates, projeções e filmes até o próximo dia 9 de dezembro. As mostras Terra em transe, Sobre a cor da sua pele, Sueño de la razón, Miragem e Vento solar acontecem em diferentes espaços do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. No ciclo de debates, além da presença de Joan Fontcuberta, o festival contará, entre outros, com a presença de Maureen Bisilliat, Nair Benedicto, Berna Reale e Tatewaki Nio (ganhador da Bolsa ZUM de Fotografia 2017).
Leia abaixo entrevista com Joan Fontcuberta:
Seu trabalho como curador, escritor, fotógrafo, artista e pesquisador está sempre, de maneiras diferentes, perguntando: até que ponto podemos acreditar nas fotografias? Então pergunto: até que ponto podemos acreditar em Joan Fontcuberta?
Joan Fontcuberta: Acima de tudo, o motor que tem guiado minha vida e meu trabalho é a dúvida. É com a dúvida que a racionalidade se impõe ao dogma. Você tem que duvidar de tudo, até da necessidade de duvidar. Portanto, definitivamente também devemos duvidar de Joan Fontcuberta.
Quanto à crença na veracidade das imagens, como mudou (se é que mudou) sua percepção sobre o tema desde seus primeiros trabalhos na década de 1980 (como Herbarium ou Fauna) diante de casos mais recentes de fake news com impacto decisivo em importantes questões políticas, como Brexit e as eleições de Trump e Bolsonaro?
JF: Cada época adota seu regime de verdade. Hoje vivemos o regime da “mentirocracia”. Apesar de assistirmos à irrupção furiosa da pós-verdade e dos fatos alternativos, o paradoxo é que, para manipular, hoje em dia não é preciso nem mentir. Basta uma dose de informação interessante que distorça a interpretação dos eventos. Desde Maquiavel e Goebbels que essas técnicas são bem conhecidas. A diferença agora está na gestão das evidências. Desviar o olhar e focar nos acontecimentos de uma maneira discriminatória são recursos bem eficientes para a demagogia e a distorção de informações. Umberto Eco já escreveu em seu romance Número zero: “os jornais não foram feitos para difundir notícias, mas para escondê-las”. A mídia não quer mais informar, mas persuadir. Não quer mais fazer jornalismo, mas sim política.
Os rótulos e categorias em torno da fotografia (documental, artística, etc.) são cada vez mais fluidos e questionáveis. Para muitos profissionais, isso soa assustador e intimidante. Que conselho você daria para estes fotógrafos e artistas?
JF: Sempre achei que não há fotografias boas ou ruins, mas bons ou maus usos da fotografia. Agora, com a inteligência artificial, os algoritmos e machine learning, o ato de olhar está se deslocando do olho. Fazer fotografias é cada vez mais o resultado de processos automatizados. E a produção de imagens está se tornando mais fácil, sem exigir talento nem competência técnica. Neste contexto, o que importa é a gestão da imagem, a prescrição de um sentido. Precisamos repensar os “quartos” que a fotografia habita.
Você pode nos contar um pouco sobre seus projetos em andamento? Para onde está indo a sua fotografia?
JF: Além de alguns projetos focados na metodologia do fake, estou interessado em pensar a desmaterialização da imagem. Nesse sentido, estou a alguns anos desenvolvendo uma série chamada Trauma, visitando arquivos na busca de imagens em estado de deterioração traumática: fotografias doentes, fotografias que sofreram algum tipo de distúrbio que tenha perturbado sua função documental e as desabilite a continuar “habitando” esse arquivo. Se antes nos gabávamos de usar a câmera para vencer o tempo e aprisionar experiências e histórias, agora percebemos que essa ilusão pode ter durado muito. Mas não dura para sempre e, eventualmente, o tempo acaba cobrando sua vingança: a fotografia, antes um baluarte da memória, torna-se amnésica e a imagem vira um fantasma.///
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Tags: Exposições, fake news, festival SOLAR, Pós-verdade