Avenida Celso Garcia
Publicado em: 25 de janeiro de 2016As cenas da avenida paulistana feitas por LUCIA MINDLIN LOEB em 2004 e 2014 narram a corrosão silenciosa da cidade.
Lojas fechadas, prédios abandonados, calçadas vazias. Percorrer as imagens pacientemente recolhidas por Lucia Mindlin Loeb ao longo da avenida Celso Garcia é uma jornada melancólica. Difícil acreditar que um dos grandes corredores comerciais da cidade de São Paulo tenha atingido tal estado de degradação.
“É deprimente saber que tanto esplendor, essa vitalidade tão bela, teve que morrer, e que caminhamos entre ruínas”, escreveu Hegel em suas Lições sobre a filosofia da história universal: “Tudo parece condenado ao desaparecimento […]. Quem viu as ruínas de Cartago, de Palmira, de Persépolis, de Roma, sem refletir sobre a caducidade dos impérios e dos homens, sem cobrir-se de luto por essa vida passada, poderosa e rica?”.
Não se trata, porém, da mesma tristeza: o luto recolhido dos que contemplam as ruínas da Antiguidade
não se compara com o desconforto angustiante que nos assalta diante das imagens de São Paulo. As
marcas do tempo costumam reforçar o encanto das edificações inteiramente mortas, mas só enfeiam as
construções que ainda deveriam abrigar a vida. Não estamos apenas lamentando uma civilização distante: estamos assistindo à agonia da nossa.
Mais que presenciar, contribuímos para sua morte. Em seu ensaio “As ruínas”, Georg Simmel observa que a aflição suscitada pelos imóveis desamparados provém da nossa passividade: os homens não destroem o edifício, mas permitem que ele desmorone. Dessa cumplicidade surge “o desassossego amiúde insuportável evocado pela visão de lugares dos quais a vida desertou e que, contudo, continuam servindo de cenários de uma vida”.
Por que consentimos com sua destruição? Talvez porque nossa tragédia urbana não resulte de uma grande catástrofe, mas do acúmulo de pequenas decepções. Assim como nos romances de Gustave Flaubert, não somos derrotados em combates grandiosos: “Vamos perecendo lentamente com nossas esperanças fanadas e nossas ambições frustradas”, explica o historiador Arnold Hauser em História social da arte e da literatura.
As imagens de Lucia espelham essa corrosão silenciosa da cidade. Suas fotos recordam a rua vazia pintada por Edward Hopper durante a Grande Depressão no quadro Domingo de manhã cedo (1930). Mas conseguem algo que não transparece no quadro de Hopper: elas desvelam a origem desse drama – uma origem frequentemente ignorada até por aqueles que vivenciam, pessoalmente, a decadência da avenida. Isso só é possível porque a rua que “fala à câmera não é a mesma que fala ao olhar; é outra”, esclarece Walter Benjamin. É um objeto inteiramente diverso. A fotografia substitui “um espaço trabalhado conscientemente pelo homem” – o logradouro que julgamos conhecer porque o atravessamos todos os dias – por um espaço que esquadrinhamos com nosso inconsciente.
“Percebemos em geral o movimento de um homem que caminha, ainda que em grandes traços, mas nada percebemos de sua atitude na exata fração de segundo em que ele dá um passo. A fotografia nos mostra essa atitude […]. Só a fotografia revela esse inconsciente óptico, como só a psicanálise revela o inconsciente pulsional”, diz Benjamin na “Pequena história da fotografia”. Qualquer um é capaz de perceber o despovoamento da avenida. Porém só as imagens conseguem narrar como se processou seu declínio.
Como as fotos podem representar a passagem do tempo, se elas não se movimentam? Há dois caminhos. O primeiro consiste em mostrar o instante decisivo da ação, que resume as etapas anteriores e posteriores do processo. Teorizado pelo crítico alemão G.E. Lessing no ensaio “Laocoonte” (1766), o método acabou celebrizado pelo fotógrafo Henri Cartier-Bresson. No segundo método, uma imagem apresenta os diversos momentos de uma sequência temporal. É uma técnica arcaica, usada na Antiguidade (como na coluna de Trajano) e na Idade Média (como na tapeçaria de Bayeux), que subsistiu até a idade moderna, no Martírio de São Maurício (1580), de El Greco.
Nas paisagens de Lucia encontramos o segundo esquema – não porque as imagens tenham sido manipuladas para forjar uma tira de quadrinhos, e sim porque a própria disposição da rua expõe sua história. As primeiras imagens da Celso Garcia no lado ímpar ainda mostram um logradouro comercial bastante movimentado. Pouco a pouco as figuras humanas vão se tornando rarefeitas. A proporção de portas fechadas aumenta assustadoramente, até que deparamos com um deserto.
O espaço sedimentou o tempo. No início do século 20, a Celso Garcia era a principal rota entre o centro e a zona leste. Possuía casarões, grandes indústrias (Matarazzo, Cotonifício Paulista), um comércio vigoroso e vários cinemas – a fachada do Cine São Jorge sobrevive até hoje numa loja de sapatos. Tudo mudou a partir da segunda metade do século. As avenidas abertas pelos prefeitos Prestes Maia (1961-65) e Faria Lima (1965-69) esvaziaram o centro e os bairros que gravitavam ao redor. Com a inauguração da Radial Leste, em 1972, a Celso Garcia deixou de concentrar o tráfego da zona leste.
A classe média local migrou para o sudoeste da capital. Na década de 1980, as indústrias também começaram a deixar a região em busca de terrenos maiores. A linha leste-oeste do metrô acentuou a decadência, pois direcionou o fluxo de pessoas para as áreas mais próximas às estações. O bairro empobreceu, o comércio fraquejou: as lojas de roupas foram substituídas por oficinas mecânicas, a venda de móveis novos deu lugar à troca de artigos usados. Os cinemas fecharam – alguns viraram templos evangélicos. Um levantamento feito em 2000 apontou que 46% das lojas da Celso Garcia tinham fechado as portas.
Em 2004, o arquiteto Roberto Loeb pediu a sua filha Lucia que fizesse um levantamento fotográfico da avenida, para subsidiar a formulação de um plano de revitalização do corredor. Então com 31 anos, Lucia conhecia bem os bairros da cidade, graças a seu trabalho no suplemento Seu Bairro, do jornal O Estado de S. Paulo. Levou cinco dias para registrar os nove quilômetros da avenida, de ponta a ponta, numa imagem contínua – um esforço que lembra os Panoramas pintados por Victor Meirelles no final do século 19 e, mais recentemente, o livro de Ed Ruscha Todas as construções da Sunset Strip, de 1966.
“O projeto de revitalização não foi para a frente”, diz Lucia. Ela decidiu então publicar uma parte das fotos no livro de artista Entre 2 esquinas (2007). No ano passado, refez o percurso: “Queria registrar a passagem do tempo”. Remontou então as primeiras fotos, para formar duas sequências comparáveis. Diferentemente de Ruscha, Lucia não suprimiu as distorções entre as fotos: “Deixei muita coisa com uma perspectiva torta, distorcida. Ficou uma sequência mais caleidoscópica”. Em vez de uma sucessão homogênea, com cortes imperceptíveis, vemos uma montagem repleta de fraturas e imperfeições. Um todo desajustado. Manipulando as imagens no computador, poderíamos obter um panorama perfeito e asséptico. Mas seria a abordagem mais adequada ao objeto? Não é melhor que a forma ressalte as contradições da metrópole, em vez de suavizá-las?
Sim, o tempo passou. O gigantesco complexo da Febem foi desativado. Cortiços sofreram intervenções, a Biblioteca Hans Christian Andersen foi reformada, ergueram-se conjuntos habitacionais. Surgiram mais
igrejas – entre elas o Templo de Salomão, da Igreja Universal. “Em alguns lugares restauraram os prédios velhos, que hoje parecem novos. Outros viraram estacionamentos. A Lei Cidade Limpa retirou os outdoors. Mas tem pichação que ainda continua no mesmo lugar”, observa a artista.
A rigor, nada mudou. Daí a importância dessas fotos. O filósofo Georg Lukács dizia que toda obra de arte interpela o homem para que este faça o que é certo. É verdade que as fotos de 2004 não conseguiram persuadir o poder público a fazer alguma coisa. Quem sabe as novas tenham mais sorte.///
Lucia Mindlin Loeb (1973) é fotógrafa e artista visual. Formou-se em design gráfico no Centro Universitário Belas Artes, com mestrado em artes pela Escola de Comunicação e Artes da USP. Mora e trabalha em São Paulo.
Mauricio Puls (1960) é formado em ciências sociais pela USP. Escreveu os livros Arquitetura e filosofia (Annablume, 2006) e O significado da pintura abstrata (Perspectiva, 1998). É colaborador do jornal Folha de S.Paulo.
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