A política da imagem
Publicado em: 24 de julho de 2014Os diferentes usos da fotografia na obra do artista ANTONIO MANUEL
EM SUA RECENTE EXPOSIÇÃO no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, de dezembro de 2013 a fevereiro de 2014, Antonio Manuel apresentou duas novas instalações, uma delas com o nome de Até que a imagem desapareça. Depois de muitos anos focado na produção de pinturas abstratas, sem lidar com a imagem fotográfica, eis que ele a recupera. Todavia, recupera para, ao longo dos dois meses da mostra, fazê-la desaparecer, lentamente lavada pela água que pingava sobre ela e era acolhida num recipiente postado no chão. As imagens que se apagavam remetiam a trabalhos antigos. O recipiente, como um tanque de revelação no qual se mergulha a impressão fotográfica para revelar a imagem analógica, agia ali no sentido inverso: velava-a, borrando-a e dissolvendo-a.
A imagem principal, retirada de uma fotografia de jornal, copiada e apagada em um dos recipientes – eram três deles no total –, pertence a sua já clássica série Repressão outra vez – Eis o saldo (1968). Nela, vê-se a polícia perseguindo estudantes nas ruas do centro do Rio. A afirmação que à época encabeçava a serigrafia ganha agora um sugestivo ponto de interrogação: “Repressão outra vez?”. Decorridos quase 50 anos, o que resta da memória de um passado autoritário ainda não completamente cicatrizado? Como não repeti-lo? Qual o papel da arte na inscrição do passado e como ela nos ajuda a nomeá-lo, retê-lo e transformá-lo? Qual o lugar da imagem na obra de Antonio Manuel e como ela se desdobrou no tempo?
Na entrevista “Com que sonham os filósofos”, de 1975, Michel Foucault relata seu interesse pela pintura, o convite ao olhar que ela lhe faz e o prazer que dela se extrai. A certa altura, falando de pintores contemporâneos seus, assinala que o fato deles lidarem com a restauração da imagem figurativa é o que mais lhe agrada. Isso após um longo período de desqualificação. Essa mesma retomada ocorria entre os artistas brasileiros da nova figuração, como Antonio Dias e Carlos Vergara. Tanto no Hemisfério Norte como aqui, tal restauração estava atrelada a uma agenda política urgente, que não se projetava utopicamente no futuro, mas reclamava uma ação direta na realidade. A arte se declarava atual e atravessada pelos conflitos políticos do momento.
Há nesse aspecto uma reverberação pop, o primeiro momento de uma estética globalizada que se disseminava horizontalmente entre a juventude insurgente. A contaminação entre alta e baixa cultura liberava o desejo de atravessar o fazer artístico com a energia vital que emanava de fora dos museus. A negatividade que regia a desconexão modernista entre experimentação artística e sociedade de massas se transformava em uma afirmação crítica, assumidamente – e simultaneamente – contraditória e dissonante. Não por acaso, lia-se na entrada de um dos penetráveis da instalação Tropicália (1967), de Hélio Oiticica: “A pureza é um mito”.
O JORNAL COMO SUPORTE
Nessa mesma exposição em que Tropicália foi exibida – Nova objetividade brasileira (MAM-RJ, 1967) –, Antonio Manuel, convidado pelo próprio Oiticica, apresentou sua primeira série de desenhos sobre jornal. Interferindo diretamente nas páginas, ele rasurava notícias e imagens e fazia surgir uma multidão de figuras anônimas, destituídas de identidade individual e potencializadas como expressão coletiva. O uso do jornal evidencia o suporte, impregnado de sentido, sujo, carregado de informação efêmera e mundana, deliberadamente público e claramente político. É a partir dessa superfície ruidosa – de textos e imagens – que a ação do lápis de cera faz brotar uma multidão de seres expressivos, cada um com sua própria singularidade gráfica.
Restaurar a dignidade da imagem na década de 1960 não significava um retorno à ordem, uma retomada do modelo da representação figurativa contra o impulso experimental da tradição moderna. Pelo contrário, significava um apelo ao que havia sido reprimido no processo de depuração das artes visuais – a vontade de conferir à figuração a mesma carga afetiva que a palavra cantada dera ao rock. A imagem era um chamado à participação por meio de um curto-circuito entre identificação e desidentificação. O que se via era reconhecível, mas nada aparecia como visto normalmente, e, nesse intervalo, se instaurava um impulso de rebeldia. Como observou o crítico alemão Benjamin Buchloh, “em 1963, Warhol justapôs as mais famosas fotografias de estrelas glamorosas a imagens anônimas e cruéis da vida cotidiana (que haviam sido rejeitadas pelos arquivos da imprensa diária)”.
O que faz um acidente automobilístico no campo simbólico das artes visuais? Como ele pode ser visto ao lado da representação de múltiplas garrafas de Coca-Cola ou de imagens de Marilyn Monroe? Como um desenho sobre jornal pode ser considerado arte? Seria a imagem cotidiana capaz de se deixar deslocar e tornar-se surpreendente e mobilizadora? O diálogo indireto entre as obras de Antonio Manuel e de Andy Warhol ainda carece de estudo crítico. Apesar dos contextos diferentes e das motivações díspares, notam-se certos pontos de contato, a saber: o uso de arquivos fotográficos da imprensa; o estatuto ao mesmo tempo pictórico e ready-made da imagem; a apropriação crítica dos criminosos; o olho atento às margens da sociedade; e a utilização de dispositivos não convencionais de visibilização da obra. O enfrentamento de uma ditadura outorga à poética do artista brasileiro um tom mais dramático e menos cínico.
Com frequência, separa-se a obra de Antonio Manuel em duas fases: a primeira, iniciada nos anos 1960, é marcada pela atuação política e performática; a segunda, de meados dos anos 1980 em diante, com uma pintura advinda da matriz construtiva, é taxada de formalista, ou seja, é despolitizada. A opção pela abstração geométrica acompanharia o processo de democratização brasileira, no qual as vozes políticas retomam o espaço público depois do exílio; essa escolha aparece também como uma espécie de reação ao retorno à ordem de uma pintura figurativa que já nascia excessivamente acomodada às demandas de mercado.
Ao se observar mais de perto o desenvolvimento da poética de Antonio Manuel, percebe-se desde o começo uma articulação entre o político e o formal que desqualifica essa divisão estanque. A passagem dos desenhos sobre jornal de 1966 e 1967 – que lhe renderam um prêmio de aquisição na Bienal de São Paulo em 1967 – para os Flans já denota uma preocupação estruturante, formal, e um diálogo estreito com a tradição concreta brasileira. Não é mero acaso o fato de muitos Flans terem sido retirados do Jornal do Brasil, diário que Amilcar de Castro renovara nos anos 1950, dando à diagramação uma grade arejada e ortogonal que as intervenções de Antonio exploravam plasticamente.
Os flans – cartões plastificados a partir dos quais se produzia a matriz em chumbo que ia para as rotativas nas gráficas dos jornais – eram descartados depois de utilizados. Antonio Manuel passava as noites recolhendo os que mais lhe interessavam, do ponto de vista político ou formal. Ele usava então pó de talco para ressaltar a imagem que ficava apagada, e nela desenhava com nanquim. A estrutura geométrica era sempre privilegiada, e o desenho deslocava as imagens anteriores, dando-lhes qualidade pictórica e intensidade política.
Os Flans de 1968 são documentos de rua, imagens da violência urbana e do movimento estudantil que resistia à ditadura. Eles não apenas revelam os acontecimentos como imprimem sobre eles uma vontade de agir e a necessidade de tomar partido. Essa intervenção antecipa muitas das ações contemporâneas da Mídia Ninja. É política, arte e ação, tudo junto; é uma disputa pela imagem e pela produção de uma narrativa dissonante, na contramão das versões oficiais. Vozes se multiplicam e subjetividades políticas são constituídas no próprio processo de enfrentamento das ruas. Como escreveu Lygia Pape, sob o pseudônimo de Janaína, a respeito dos Flans: “A grande euforia dos momentos coletivos. O coletivo como emblema. Depois, o singular, a antimanchete.”
CORTINAS CERRADAS
Em 1968, ao preparar no MAM-RJ o trabalho que seria exposto na pré-Bienal de Paris de 1969, Antonio Manuel fez outro uso dos Flans. Com o artista Julio Plaza, transformou-os em serigrafias com fundo vermelho, impressas sobre madeira, e escondeu-as atrás de uma cortina preta, que deveria ser aberta pelo público. De certo modo, com o aumento da tensão política, a cortina antecipava ironicamente o gesto da censura, que iria se intensificar após a publicação do AI-5. Premonição aguda: um certo general Montanha viu a obra e interditou a exposição, que não chegou a ser aberta ao público. A ditadura manteve as cortinas cerradas, e o movimento, reprimido nas ruas, não teria mais espaço de circulação simbólica.
O jogo entre revelar e velar, tensionando os limites do que pode ser visto e deslocando o universo das imagens descartadas pela censura, foi uma constante dos processos poéticos do artista no período mais crítico da ditadura – entre 1968 e 1975 – e seria depois retomado pontualmente em outras obras. Quando, em 1973, Antonio teve uma exposição inteira censurada no MAM, em vez de acatar a decisão e retirar-se, ele procurou formas de colocá-la em circulação por outros meios, criando no caderno cultural de O Jornal, depois de longa negociação com o editor Washington Novaes. Essa inter venção-exposição seria chamada De 0 às 24 horas, o tempo de validade de um jornal. Em suas seis páginas, foram reproduzidos os textos e as imagens que seriam apresentados no museu.
A imagem atua ao mesmo tempo como testemunha e inter venção. Em vez de se limitar a mero documento da realidade, ela se desdobra em outras possibilidades não previstas pelo controle instituído. As decisões formais são aliadas no processo – como observou Lygia Pape, “o fio gráfico como alicerce do meio plástico”. A inserção de textos, para além dos encontrados nas manchetes, começa a aparecer junto às imagens e se torna determinante na série Clandestinas (1973). O processo era semelhante ao dos Flans anteriores. Havia agora o acréscimo de material – imagem e texto –, sempre com grande apelo poético: “Pintor ensina Deus a pintar”, “Abajo el puerco intelectual”, “Torquato Neto: Deus um clarão no salão / Poeta virou estrela”, “Línguas insaciáveis: sabor doce para bocas amargas”. Em Clandestinas, o artista insere material visual, gráfico e textual na capa de um diário e o imprime, provocando mais atritos ao devolvê-lo à circulação em algumas bancas da cidade.
Em toda a criação dessa série, Antonio Manuel utilizou a redação do jornal O Dia, com a intermediação de Ivan Chagas Freitas. Não era mais o flan que interessava e sobre o qual surgia sua obra, mas a própria manipulação do jornal e sua circulação clandestina. Era possível comprar nas bancas, sem querer, uma “obra de arte”. Isso durou até o dono do jornal, Antônio de Pádua Chagas Freitas, pai de Ivan e futuro governador do Rio de Janeiro, descobrir a presença transgressora do artista na redação, produzindo capas falsas para seu diário.
Foi também do arquivo desse jornal que Antonio Manuel retirou as imagens desconcertantes de criminosos presos e/ou assassinados violentamente pela polícia e pelos esquadrões da morte. Com essas imagens e o som de Guilherme Vaz, ele produziu o filme experimental Semi Ótica (1975), no qual cada imagem surgia seguida de uma ficha policial fictícia, com nome, idade e cor de cada um. Na informação sobre a cor – a maioria era composta de negros e pardos –, ele atribuía cores delirantes como semiverde, semiamarelo, semipreto etc.; todos misturados, mestiços e pela metade, semicidadãos, evidenciando uma fratura étnica e social que não deixa de aparecer “opticamente” no tom da pele. Era a semiótica crítica de uma sociedade cuja democracia racial continua sendo um mito.
AS INSTALAÇÕES
Algumas das questões relacionadas ao uso da imagem fotográfica e do jornal serão, a partir da década de 1980, deslocadas para a produção de instalações. Como escreveu Ronaldo Brito ao abordar Fantasma (1994), uma das mais emblemáticas instalações do artista, “por princípio, uma instalação devia tomar em ato determinado espaço público para expor suas propriedades estéticas, culturais e políticas”. A ação se desloca da rua e dos jornais para o interior do espaço institucional, sem deixar de carregar consigo o ruído e as tensões do mundo. No mesmo momento em que ele preparava essa instalação, ocorria no Rio o massacre de Vigário Geral. A eliminação indiscriminada de jovens negros das periferias brasileiras – já explorada em Clandestinas e Semi Ótica – seria incorporada sutilmente nessa instalação. Constituída por um labirinto de carvões pendurados do teto, ela apresenta uma pequena fotografia extraída de um jornal carioca e colada num canto da sala, iluminada por duas lanternas. A imagem mostra um sobrevivente do massacre, com o rosto coberto por panos, acossado por microfones, dando uma entrevista coletiva para a imprensa. A beleza do espaço da instalação, com suas sombras e seu silêncio negro, é dramatizada pela queima de vidas e pela transformação da testemunha em mais um fantasma da nossa violência cotidiana.
Aqui também cabe lembrar de uma instalação de meados da década de 1970, preparada para Veneza, na qual as imagens de criminosos utilizadas em Semi Ótica foram ampliadas, postas no chão e cobertas por um tapete negro, que podia ser levantado por fios que pendiam do teto. Juntam-se então dois momentos, duas experiências plásticas semelhantes e uma mesma revolta, fundamentalmente ética, perante a exclusão social.
Se o rosto do sobrevivente em Fantasma estava coberto para esconder sua identidade, é a própria identidade da imagem que vai se dissolvendo nos dois trabalhos recentes do artista, realizados para a exposição no MAM. A memória da obra passada e a fugacidade da notícia do jornal são agora lentamente rasuradas. Será que, num mundo inflacionado de imagens, seria a sua dissolução a condição de qualquer contundência expressiva, de qualquer possibilidade de conflito?
Em Nave (2013), o cubículo enquadrado por quatro portas vazadas acolhe um monitor com imagens de um filme curto. Sobre a tela, de um saco de pano pendurado, pinga vagarosamente a água que desfoca a imagem noturna das ruas do Rio, combinada a uma fogueira alimentada por pedaços de jornal. Da mesma forma que, em Até que a imagem desapareça, resquícios de suas obras passadas eram diluídos pela água, aqui, referências às ruas e aos jornais remetem ao campo político de sua poética, reencenando-o sob a ação dissolvente da água, do fogo e do tempo.
Na cena inicial do filme, dois recortes de jornal são deslizados por baixo de uma porta e entregues à câmera, como se vindos do passado. Em um deles, lê-se: “Memória afetiva”. É essa memória afetiva que será reposta e desfeita continuamente no vídeo. Em alguns momentos, o foco recai sobre alguma manchete: crise na educação e impunidade sobressaem. Se nos Flans o artista interferia no jornal e trazia à luz a imagem apagada para dar-lhe contundência política, agora ele a vela, a dissolve – não mais um impulso para a ação, e sim um salto introspectivo, uma pergunta, de natureza política, sobre o poder da imagem e que tipo de ação cabe a ela suscitar.
O buraco nos muros, o apagar das imagens, o vazio nas telas de Antonio Manuel são formas de interrogar o estado desconcertado do mundo. Percorridas quase cinco décadas de trajetória, o artista – percebendo que as formas de representação representam muito pouco, mas sem cair na indiferença niilista – desfaz-se das imagens do passado para que se abram outros espaços de criação e outras formas de ação. A queima dos jornais no fogo e a dissolução na água das imagens dos Flans são uma liberação dos modelos do passado, para que os jovens e suas novas tecnologias inventem suas próprias subjetividades políticas. Há toda uma história da imprensa e da arte, com suas crises e reverberações políticas, a ser escrita – das ações de Antonio Manuel às intervenções da Mídia Ninja. ///
Antonio Manuel (1947) nasceu na cidade de Avelãs de Caminho, Portugal, e veio para o Rio de Janeiro com a família aos seis anos. Além de seu trabalho com pintura, escultura, gravura, desenho, instalações e performance, dirigiu os curta-metragens Loucura & cultura (1973) e Arte Hoje (1976), entre outros.
Luiz Camillo Osorio (1963) é crítico de arte e professor de estética do departamento de filosofia da PUC-Rio, Desde 2009, é curador do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
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