Revista ZUM 9

Bellow, o belo

Leandro Sarmatz Publicado em: 16 de novembro de 2015
Saul Bellow, escritor. Capri, Itália, 1984. © Ferdinando scianna/Magnum Photos/Latinstock

Saul Bellow, escritor. Capri, Itália, 1984. © Ferdinando Scianna/Magnum Photos/Latinstock

A julgar pelos inúmeros registros que deixou, Saul Bellow gostava de ser fotografado. Há imagens suas plantando bananeira – físico de nadador, só de shortinho – numa praia. De chapéu-coco e casaco caríssimo numa viela de Londres. Dedinho no queixo e ar estudadamente pidão. Considerava-se (com justiça) um boa-pinta. As mulheres também, evidência atestada pelos inúmeros casos que manteve ao longo da vida de homem que se casou cinco vezes. Consta que recebeu um telefonema da MGM logo após a publicação de seu primeiro romance. Queriam-no para galã. Estava cônscio de que, nas décadas de 1940 e 1950, quando o meio intelectual era ainda majoritariamente WASP (louro aguado), ele era um tipo exótico, que parecia evocar algum tipo de glamour do Velho Mundo. E transpirava segurança. Não apenas intelectual, mas também física, ou, se quisermos ir além, imagética. Alfred Kazin, que durante décadas foi uma espécie de xerife (um Edmund Wilson circuncidado) da vida cultural judaica norte-americana, certa vez observou que o jovem Bellow, dos intelectuais de Nova York, era o que parecia menos judeu. Estava a léguas de distância do estereótipo caixa-d’óculos-livro-no-sovaco-neurose explorado ad nauseam até mesmo por escritores da tribo. Imagem antiga. Porque Saul Bellow, himself, era o Novo Mundo.

Por isso não é uma grande surpresa que, no texto do próprio Bellow publicado na nova edição ZUM, “Imagens gravadas”, a expressão “amour-propre” é evocada diversas vezes. Porque é disso que se trata, afinal. Mesmo se assumirmos que o escritor tinha uma relação ambivalente com a imagem – o texto inteiro é um passeio de canoa por essas águas trêmulas, aqui ondas de sim, ali marolas de não –, suas inesgotáveis reservas de autoconfiança não permitiriam que desse um passo em direção a uma representação que não lhe fosse muito favorável. Vaidade das vaidades tudo é vaidade etc.? Óbvio, mas também Bellow sabia que isso fazia parte da construção da marca de um escritor num tempo e num lugar em que tais elementos eram tão importantes quanto as majestosas frases de seus romances. Não se trata de cinismo. Mas de um conceito bastante moderno (talvez à beira do escandaloso há mais de meio século) em que a potência criativa, o poder emocional e a autoconfiança impressos na obra deveriam transpirar inclusive para a figura pública do autor, alguém a ser admirado, imitado. Talvez seja um enorme exagero afirmar que Bellow teria prefigurado a era do marketing na literatura, em que os autores também passam pelo escrutínio da popularidade e de uma admiração que não se concentra apenas na sua obra. Dizer isso seria constatar então que Bellow é o pai espiritual de Susan Sontag, que não por acaso escreveu tanto sobre fotografia e que também foi objeto amoroso das lentes de diversos fotógrafos, tendo inclusive um relacionamento com Annie Leibovitz, que captou algumas das imagens mais icônicas do showbiz nos últimos quarenta anos.

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Amor-próprio. Esse “território invadido pelos tiradores de fotos” é um conceito central na obra de Saul Bellow. A imagem que construímos de nós mesmos, que alimentamos com doses maciças de vaidade e autoengano, que aspiramos projetar para os outros – amantes, colegas, amigos, chefes. Motivo de aborrecimentos eternos entre nosso “eu” e o mundo, o amor-próprio é o combustível de diversos personagens do escritor norte-americano, é ele precisamente que os energiza, que os impele para os atos mais sublimes ou sórdidos. Moses Herzog, o intelectual de meia-idade que começa a bater pino depois de ter sido traído pela mulher com seu melhor amigo, vai se apagando aos poucos, perdendo a sanidade. E isso inclusive no que diz respeito à sua imagem: “Seu rosto pálido mostrava tudo – tudo. Estava argumentando, debatendo, estava sofrendo, tinha pensado numa alternativa brilhante – ora estava tolerante, ora mesquinho; seus olhos, sua boca deixavam tudo claro sem palavras – o desejo, o fanatismo, a amarga fúria. Dava para ver tudo isso”.

Abe Ravelstein, outro intelectual, personagem do último romance de Bellow (Ravelstein, 2000), tinha um conspícuo amor-próprio como modus operandi: esteticamente, intelectualmente. Retrato fiel mas esquivo de um vaidoso real, o professor Allan Bloom, que seduzia (intelectualmente) classes inteiras na universidade, vivia como um nababo, usava as melhores roupas, gastava à larga. O livro inteiro (curtinho, um tanto imperfeito, mas que entretém como poucos) é uma discussão justamente sobre os limites da exposição de uma vida real. Não por acaso o livro fez barulho quando saiu nos Estados Unidos. Houve gente que condenou Bellow. A exposição da figura de Ravelstein-Bloom era impiedosa e indiscreta demais, diziam. O que diria Bloom, se ainda estivesse vivo, alvejado como foi em seu amor-próprio pelo amigo romancista?

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Imagem, imagens. Se Bellow foi mesmo um dos três pilares da prosa norte-americana do século XX (na companhia de Hemingway e Faulkner), com o tempo os críticos têm encontrado uma penca de defeitos em seus livros. Não do ponto de vista da linguagem: ela continua lá, de pé, majestosa e luxuriante em sua mistura de inglês shakespeariano com a cadência das ruas da Chicago de Al Capone e o argot judaico. O reparo atual é em relação à construção de seus personagens. A falha de Bellow estaria em construir caricaturas falantes e não pessoas de carne e osso. Muitos de seus personagens, dizem os detratores, são mero veículo para a peroração quase interminável de seu criador sobre temas que vão da ruína do modo urbano de vida (Mr. Sammler’s planet), o encontro entre o racionalismo à americana e a força vital e selvagem da África (Henderson, o rei da chuva), o ressentimento entre artistas (O legado de Humboldt).

De fato, muitas vezes as criações de Bellow parecem os animaizinhos do Looney Tunes, exóticas figurinhas que falam pelos cotovelos. E como falam! Talvez seu autor tenha se concentrado tanto na voz e tão pouco na construção integral de seus personagens por causa de uma espécie de desconfiança primordial da imagem, evidenciada em seu texto sobre fotografia e na referência às escrituras (certos atavismos podem ser inescapáveis). Uma relação ambígua, em que aquele que se compraz em ser retratado fica com o pé atrás na hora de fotografar o outro. Pode ser um traço de vaidade, claro, mas também uma maneira muito especial de se relacionar com o amor-próprio dos outros.///

 

Leandro Sarmatz é editor da Companhia das Letras, poeta e autor dos contos de Uma fome (Record, 2010) e Ariel, Quixote do Holocausto & Carmen Cohen (e-galáxia, coleção Formas Breves, 2014).

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