Regina Silveira, a arte de corrigir a realidade
Publicado em: 5 de agosto de 2015Matéria publicada na revista ZUM#8, abril/2015.
Brazil Today é uma série de quatro cadernos com cartões-postais corrigidos por REGINA SILVEIRA em 1977: um dedicado às belezas naturais; outro, às cidades; o terceiro, aos pássaros; e o quarto, aos índios do Brasil.
Esses 24 cartões referem-se a um Brasil de 1977, que é quase sem tirar nem pôr o de hoje, quatro décadas depois. Muita coisa mudou nesse tempo (1977 era outro ano de chumbo da ditadura dura), mas muita coisa mudou apenas para confirmar o que escreveu Lampedusa em O leopardo, aqui visto primeiro como filme nos anos 1960, sob a assinatura de Visconti: é preciso que tudo mude para que tudo fique como está. Olhar para qualquer um dos cartões é ver uma imagem do Brasil tanto de 1977 como de agora – nos destroços da cultura urbana empilhados por toda parte, nos abutres ou urubus sobre Brasília, nas cidades encaixotadas em seus informes edifícios cinzentos cercados de carros, e nos índios obrigatoriamente idênticos a si mesmos, como espera o patrimônio histórico. Essa sensação de um eterno presente que se arrasta décadas afora é existencialmente angustiante para quem vive o país hoje.
No entanto, reconforta esteticamente a ideia de que esta arte feita então é uma arte de agora. Disso sabem os museus e os colecionadores do exterior, que já correm atrás dos anos 1970 depois de esgotar os mananciais dos 1960. Brazil Today beneficia-se de uma vantagem indevida, sim: o país de que fala, sendo outro, ainda é o mesmo. Mas esse problema é do país, não da arte.
Para fazer os quarto cadernos, inspirados num suplemento de turismo de mesmo nome publicado pela revista Manchete, Regina Silveira serviu-se de cartões-postais comprados no aeroporto de Congonhas, perto de onde morava e que ainda era civilizado. Regina conta que podia comprar só o estritamente necessário: o dinheiro era pouco, os artistas voltavam as costas ao mercado (e não esperavam que o Estado fizesse o que o mercado não fazia). Perder um cartão-postal ou qualquer outro material por erro ou descuido era um pequeno drama econômico. Comprados, os cartões passavam por uma ampliação. Era nela que a artista intervinha. O resultado era reformatado (palavra que não existia à época) para o tamanho original e impresso em serigrafia, e a obra-que-não-era-obra seguia para encadernação (com uma garra espiral) na papelaria da esquina. Matéria-prima da artista: a fotografia preexistente, o desenho à mão, a fantástica letraset (delícia dos designers pré-computador) e alguma outra imagem tirada de livros e catálogos. Assim ela tem trabalhado: com anamorfoses, distorções de imagens de jornais e revistas ou obras de arte conhecidas às quais impõe sombras inesperadas – desfigurar, reconfigurar, jogar com a luz e seu oposto.
Eram os tempos áureos da apropriação de imagens de terceiros e da “intervenção crítica” sobre elas, nas palavras da artista. O “imaginário gráfico” à disposição, já imenso, embora minúsculo se comparado ao de hoje, era invariavelmente mediado por “matrizes fotomecânicas” transpostas tais quais para outros suportes e a seguir alteradas criticamente – no caso de Regina, alteradas zombeteira e corrosivamente. A fotografia – tanto a do cartão-postal, um ready-made para Regina, como as outras a ele acrescentadas – era apenas matéria-prima para a artista, uma commodity, assim como o minério de ferro e o café, que o Brasil ainda hoje exporta sem valor agregado. Commodity no sentido econômico e no sentido comum: uma comodidade para a artista. Essas fotos não eram escolhidas por algum valor estético ou documental: bastava que registrassem um fato. Algumas eram fornecidas pelos próprios cartões-postais; outras, como as dos cemitérios de carros, foram tiradas, a pedido da autora, pelo artista Julio Plaza, com quem estava casada: ele não era, porém, o autor das fotos, apenas um captador de imagens. A fotografia entrava como ready-made, simples índice, pura fotografia – aquela que se aliena na cultura que ela mesma gera e que não tem condição de afirmar-se sobre essa cultura, tanto que a ficha técnica da maior parte dos cartões-postais usados não registra o nome do fotógrafo. Nessas imagens, inexiste um sentido estético ou crítico nato, acrescentado depois pela artista, à mão, com a letraset e por meio da serigrafia. Não era muito diferente o uso da fotografia por outros artistas do período, como León Ferrari, Hélio Oiticica ou Robert Rauschenberg; tudo que servia de base estava no mesmo grau zero de significado estético: o cartão-postal, a foto apressada e utilitária, a letraset.
O destino desses cartões era virar arte-postal: enviados pelo correio (não havia internet) para outros artistas e não artistas, tornavam-se moeda de troca de ideias e experiências “de arte”, num exemplo do desviante fazer estético. Mas isso não os impedia de serem mostrados em espaços de exposição alternativos. O conjunto Brazil Today foi exibido pela primeira vez em 1977, no MAC USP, na mostra Poéticas visuais, e depois em 1978, na Printed in Brazil, organizada pela própria Regina Silveira (não havia curadores ainda – não tantos e não no sentido atual; a artista, aliás, por isso mesmo, dispensa olimpicamente os curadores, o que ela nega sem convicção) e enviada por correio como um banal pacote endereçado à Other Books and So (é So, não Co) de Amsterdã. Mais recentemente, o conjunto foi visto na Fundação Cartier de Paris, na mostra América Latina 1960-2013. Os curadores da mostra não discutiram, no catálogo, se essas peças de Regina Silveira eram ou não fotografia ou “de fotografia”, nem se podiam ser ali vistas: consideraram que fazem parte do uso da fotografia e isso basta – pelo menos para a arte.
Mesmo não sendo panfleto, Brazil Today é ácido. E mostra maldade (malícia) estética (Friedrich Schlegel), esse tipo de “beleza lógica” visto também em artistas como Nelson Leirner, Paulo Bruscky e Berna Reale. O caderno Natural Beauties (os títulos estão em inglês, já que a revista que os suscitou também era para inglês ver) mostra a rampa do palácio do Planalto, o Museu do Ipiranga e o Masp sob montanhas de carros de ferro-velho, os mesmos que entram ou saem pela porta de um vagão do metrô de São Paulo. (O Masp aparece todo em concreto aparente, quase branco de ainda tão limpo, harmonioso sem as colunas vermelhas que a arquiteta, em arroubo alegórico, depois lhe impôs. Deveriam as obras tombadas ser protegidas contra os erros de seus criadores?) Em outro caderno, urubus, abutres e demais pássaros de mau agouro sobrevoam Rio e Brasília. No caderno das cidades, todas as imagens mostram São Paulo, tomada como emblema de todas as cidades brasileiras: a obra de Regina Silveira não era jornalismo de turismo, mas obra de arte que na época não era bem obra, nem de arte. Essas cidades são vistas sob uma malha reticulada que as ameaça por cima ou fragmentadas e estocadas em caixas retangulares transparentes, todas iguais e uniformizadoras, as mesmas que envolvem os Indians from Brazil, também dispostos dentro de labirintos, símbolo recorrente na obra da artista. Nessa mesma série, os recursos visuais ampliam-se para incluir imagens tiradas das folhas da inovadora tecnologia da letraset: num cartão, uma fila indiana de índios paramentados para alguma cerimônia é enquadrada por duas figuras masculinas idênticas de chapéu, terno, gravata e a então promíscua pasta 007. O efeito é irônico e pungente. Como nos outros três cadernos.
Essa era uma outra ideia de arte, uma arte-não-arte com difi ldades para referir-se a si mesma como não arte, ao mesmo tempo que procurava os espaços alternativos da arte alternativa e queria ser arte. Um paradoxo. Não importa, a arte sempre conviveu com os paradoxos, e a de Regina Silveira está repleta deles. Ela mesma distribuía, na entrada das estações de metrô, cópias de outras “obras” ou obras suas do período, como o panfleto Pudim da arte brasileira, uma forte tacapada na cabeça dos ideólogos locais da “arte nacional”, que viviam buscando raízes sólidas por toda parte numa época em que já se sabia, como a artista sabia, que as raízes são sempre móveis. Hoje, o exemplar original datilografado do Pudim vale dinheiro (dinheiro verdadeiro, dizia o argentino León Ferrari referindo-se às notas verdes americanas, não esse que ainda hoje anda por aqui com outro nome), assim como vale dinheiro essa arte dos anos 1970 que agora entra para a coleção do MoMA e de outros museus do Primeiro Mundo (que esse também continua a existir).
A crítica social e política contida em Brazil Today é clara e evidente, embora nada panfletária – por isso mais eficaz e duradoura, já que vale hoje: os urubus continuam voando sobre Brasília, São Paulo continua entupida de lixos variados e de carroças velhas disfarçadas de carros, os índios continuam encaixotados em imaginárias caixas antropológicas e patrimoniais. A atualidade desses cadernos está vinculada ao modo de composição da artista. Quem vê a imagem de uma grande e ameaçadora ave preta que voa sobre a Transamazônica, em meio a enigmáticos traços negros indicativos de direção – que formam corredores aéreos, como um pentagrama musical –, tem poucas chances de saber que esses desenhos são esquemas de voo de aves extraídos de exemplares da Scientific American, uma de tantas revistas a servir de fonte usual para a artista. Não importa: tudo isso se transforma numa alusão por vezes enigmática, porém de forte fundo crítico – aos olhos da época e aos atuais. Arte contemporânea. Em 1977, Regina Silveira corrigia a realidade brasileira pintada de rosa pela ditadura militar, que punia com prisão quem “denegrisse o país no exterior”. Esses mesmos cartões-postais continuam, prospectiva, retrospectiva e profeticamente, corrigindo a imagem brasileira atual. ///
Regina Silveira (Porto Alegre, 1939), artista com longa trajetória no ensino, realiza exposições individuais e coletivas desde os anos 1960, no Brasil e no exterior. Em seu percurso predominam obras gráficas em diversos meios, ao lado de instalações e intervenções urbanas.
Teixeira Coelho (1944) foi diretor do MAC USP e curador-chefe do Masp. Autor de A cultura e seu contrário, entre outros.
BRAZIL TODAY (1977), SERIGRAFIA SOBRE CARTÕES-POSTAIS. 10,5 × 15 CM.
REPRODUÇÕES DE NINO ANDRÉS. COLEÇÃO DE OMAR KHOURI.
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