Uma vida em cores: em depoimento, o mestre do fotojornalismo Raymond Depardon revê a importância da fotografia colorida em sua carreira
Publicado em: 17 de janeiro de 2018
Eu não sabia que era um fotógrafo da cor. E no entanto ela estava lá. Desde as primeiras imagens. Quando cobria um acontecimento para a agência Dalmas, depois para a Gamma e a Magnum, era em preto e branco e em cores. Um terremoto, uma guerra civil, as viagens do papa ou da rainha Elizabeth: preto e branco e cores. Para mim, quase sempre, era primeiro o preto e branco, a cor depois. Eu carregava a câmera fotográfica com um filme colorido, mas não pensava em cores. Entre o final dos anos 1950 e o início dos 1980, acho que usava a cor porque não tinha alternativa. Eu não estava realmente satisfeito, a técnica ainda não oferecia uma boa performance. Acima de tudo, já que a cor desaparecia nas folhas de contatos, era impossível reter aquelas imagens, como no caso do preto e branco. Os diapositivos, de melhor qualidade, eram registrados e classificados em caixas de papelão. Então me esquecia deles. Das fotos, porém, eu me lembrava, mas, ao deixá-las de lado, permitia que aquelas cores se evanescessem e desaparecessem.
Alguns temas, contudo, parecem exigir a cor. A vida moderna (2008) não existiria sem a cor. Esse filme, que encerra a trilogia dos Perfis camponeses, não faria sentido em preto e branco. As toalhas de plástico na mesa da cozinha, os tratores, a tez dos rostos, o azul desbotado das roupas… A cor ocupa o lugar principal. É a cor da minha infância. Meu pai não diferia muito desses camponeses que fotografei.
Hoje, quando penso na cor, penso na infância, nas bengalas de açúcar, nos baleiros cheios de confeitos de nuances doces ou azedas. Tive a sorte de crescer numa fazenda. E uma infância feliz. Meus pais eram agricultores no vale do Saône. Possuíam uma plantação mediana, com uns 40 hectares, o que hoje parece pouco, comparado às centenas de hectares necessários para tocar uma lavoura. Meu irmão mais velho partiu bem jovem para estudar; a fazenda caberia a mim. Era a ordem natural das coisas. Criança solitária e sonhadora, eu vivia mais nos celeiros do que nos campos. Meus pais compreenderam antes de mim: eu não seria agricultor. Mas nunca me censuraram por isso.
A primeira câmera
Meu irmão ganhara de aniversário uma câmera fotográfica, uma pequena Lumière, que logo peguei emprestada. Eu fotografava os gatos, os patos, o cachorro da fazenda. E os campeonatos de futebol com os colegas da escola: a primeira oportunidade de encontrar meu lugar diante de um assunto, de testar a distância certa. Eu era tímido, e ser espectador combinava comigo. Também integrava o time infantil do clube de futebol de Villefranche-sur-Saône. Mas ficava mais atrás do visor do que da bola. Com a minha mesada, comprei no mercado das pulgas de Lyon uma pequena câmera usada; foi assim que fiz minhas primeiras fotos numa Rolleiflex.
Meus pais nunca se opuseram a meu desejo de ser fotógrafo, embora quisessem saber de onde vinha essa paixão, já que éramos uma família camponesa há gerações. Lembraram que, em 1900, meu avô embarcara no trem Paris-Lyon-Marselha para ir à Exposição Universal de Paris no Grand Palais. Esse Marius Depardon devia ser um curioso. Dele herdei a curiosidade, pois sem ela eu teria sido outro fotógrafo, teria trabalhado no Progrès de Lyon ou em algum jornal parecido. Não teria aquela vontade de viajar, de ir mais longe. Para mim, a cor é a metáfora dessa curiosidade.
O repórter fotográfico
“Subi para Paris” em 1958. Prestes a completar 16 anos, era aprendiz do fotógrafo Louis Foucherand. Ajudava-o a revelar os filmes, fazíamos reportagens e matérias pagas meio anacrônicas. Em 1959, por exemplo, fotografei Edith Piaf. Acabo de encontrar esse retrato graças a um programa de rádio. Não muitos anos atrás, fui entrevistado pela France Inter e, ao deixar o estúdio, uma recepcionista me avisou que alguém telefonara durante o programa: era a mulher de Louis Foucherand. Ela agora morava no interior e conservava no sótão de casa algumas fotografias que eu tinha feito. Entre elas, a de Piaf.
Eu morava na ilha Saint-Louis. Deslocava-me numa scooter, uma Rumi de segunda mão, na qual me fotografei utilizando um timer e posicionando a câmera na beirada do Quai de Béthune – no lado sul da ilha, não longe da casa do presidente Georges Pompidou. À esquerda da imagem, vemos um Cube, veículo utilitário da Citroën muito popular na época. Esse autorretrato dá a impressão de que acabávamos de sair da guerra, mas já era 1959. Louis Foucherand acabara de se associar a Louis Dalmas. E foi assim que me tornei freelance da Dalmas, uma das primeiras agências fotográficas a trabalhar para revistas.
Fiz diversas reportagens, de cachorros atropelados a entrega de prêmios literários, mas também assuntos mais glamourosos, como as debutantes de dezembro de 1960… Mandavam-me cobrir eventos, entrevistas coletivas. Havia 12 poses na câmera. As pessoas me observavam, sem dúvida porque eu era muito jovem. Eu me posicionava de frente para o que fotografava, simplesmente.
Éramos enviados para uma reportagem em Saigon e permanecíamos seis meses na região, indo de Xangai a Tóquio, de Hong Kong a Bangcoc. Não havia muitos aviões. Era uma filosofia da viagem diferente da que temos hoje. Durante muito tempo mantive esse método de viagem dentro da viagem.
Quando estava no fim do mundo, não sentia vontade de voltar. Eu não era casado, não tinha namorada.
Por muito tempo julgou-se na França que uma boa fotografia deveria ser uma fotografia complicada, mas, aos poucos, esse pressuposto parece ter saído de moda. Minhas fotos são muito primárias, e é essa simplicidade que aprecio no cinema, a de cineastas como Robert Bresson ou John Huston.
“Existe apenas um lugar certo”, dizia Huston. Essa é uma ideia essencial para mim. Quando filmo numa delegacia de polícia ou no Tribunal de Justiça em Paris, penso constantemente: onde é o lugar certo para a câmera? Ainda hoje, ao entrar num café na Bolívia, no Altiplano, penso nisso. Encontrar o lugar certo. Depois disso, são vários os elementos que vêm enriquecer a imagem: uma mulher passa com uma criança, uma montanha nevada é vista pela janela… Tiro uma foto, não mais. É o meu lado meio “século 19”… Mesmo dispondo de 12 ou 36 exposições na película. Não que precise enfrentar as limitações técnicas dos pioneiros da fotografia, que não tinham a autonomia de que desfruto hoje. Mas, ao olhar uma folha de contatos, faço sempre a mesma constatação: tiro apenas uma única foto boa.
Fotografar é passar de uma apreensão a um relaxamento. Sempre temos medo enquanto esperamos o filme ser revelado. E esta é outra magia da fotografia: captar uma fração de segundo de luz, conservar a imagem no escuro antes de a revelar. Adoro isso. E é uma das razões pelas quais ainda trabalho com prata.
Tendo começado muito cedo no jornalismo, aos 30 anos eu já me fazia diversas perguntas. O que significa viajar? Fazer reportagens? O que estou fazendo aqui, na África ou na América? Qual é o meu papel? É o lado etnólogo ou antropólogo que sempre adorei. Pierre Clastres, Claude Lévi-Strauss e Bruce Albert foram os primeiros a levantar essas questões. Sinto-me bem nos dois continentes, na África e na América Latina, que ainda têm uma dimensão rural. Lá encontro franqueza, universalismo, humanismo.
A fazenda do Garet
O mundo rural foi meu primeiro tema. Fotografei gatos, bezerros, o pastor-alemão, tudo o que me cercava na fazenda do Garet. Fotografei minha mãe também, mas não, ou pouco, meu pai. É sem dúvida a última coisa que se deve fazer: fotografar ou filmar o pai. Me arrependo de não tê-lo filmado ou gravado, mas não era capaz disso. Em 2008, quando terminei A vida moderna, depois de filmar o campo durante dez anos, retomei a Rolleiflex, que não pegava havia uns 50 anos. Pareceu-me interessante fotografar os camponeses em suas cozinhas, um pouco como se eu voltasse à infância, como se fotografasse meus pais.
A cozinha de uma fazenda é um palco de teatro. Por anos seguidos, nos meses de novembro, saí à cata de fazendas que servissem de locação para o meu filme. Foi ao mesmo tempo uma etapa difícil e essencial. Eu só podia fazer isso sozinho. Chegava por volta das nove da manhã, certificando-me de que haviam encerrado suas tarefas com os animais. E, das nove ao meio-dia, eu ficava na berlinda. Não era eu que os interrogava, e sim eles a mim: o senhor se casou em Montpellier? Tem quantos filhos? Isso era necessário para tranquilizá-los.
Fazer um filme sobre os camponeses é dizer-lhes por que eles. Eu chegava sempre com a câmera como se fosse meu forcado, meu trator, minha ferramenta. Com frequência, quando voltava, eles exclamavam: “Que prazer ver o senhor de novo!”. Eu continuava usando câmeras um tanto arcaicas. Eles diziam: “O senhor é velho, sua máquina é velha, não deve ser um fotógrafo muito conhecido.” Uma única coisa os impressionava um pouco: tinham lido no Midi Libre que eu era o autor da campanha de prevenção contra acidentes em estradas que passava na TV. E volta e meia me vinha à cabeça aquela frase do Buster Keaton: somos conhecidos quando um camponês tibetano sabe soletrar nosso nome. Convém ser modesto.
A distância adequada
Tenho uma relação especial com a cor. Não apreciava os filmes diapositivos, que julgava insatisfatórios do ponto de vista técnico; preferia os negativos e as folhas de contatos. Utilizei a cor por breves períodos. Durante 20 anos, trabalhei como repórter fotográfico para diversas agências. De temperamento pouco arrojado, cobri apenas alguns conflitos em Beirute, no Vietnã e na Argélia. Vivi mais de uma situação difícil com o fotógrafo Gilles Caron, com quem fundei a agência Gamma, em 1966. Fomos diversas vezes a Praga, Israel, Biafra. Essas reportagens, que me faziam passar longos períodos em zonas de conflito, me permitiram descobrir a distância correta diante de um assunto. Fosse no Chile em 1971, em Beirute em 1978 ou em Glasgow em 1980, não se tratava de fotografar o acontecimento, a guerra ou o conflito, e sim o que se passava ao redor, nas margens e nas franjas. Foram viagens fundadoras.
Também tivemos a ideia de desenvolver um departamento de televisão ligado à agência: ele fotografava e eu fazia os filmes. Fracassamos, contudo, ao tentar vender nossas pautas para os canais de televisão. A ideia era então bastante pioneira… Foi uma aventura que empreendi mais tarde, sozinho, fazendo filmes para a telona, e não mais reportagens. À exceção de uns poucos, rodados em Nova York ou no deserto, todos os meus filmes são em cores.
Um novo caminho no Chile
Em 1971, o Chile comemorava o primeiro aniversário da eleição do presidente Salvador Allende. Meu amigo Robert Pledge, na época secretário de redação da revista Zoom, sugeriu que fôssemos a Santiago para assistir a esse acontecimento histórico relacionado ao primeiro regime popular da América do Sul. O país estava então em plena efervescência, tanto nas minas do norte como nos territórios do sul, marcados pela reforma agrária. Decidimos tomar o rumo sul e ir até a terra dos mapuches.
Deparamos com uma paisagem que eu nunca mais encontraria em lugar nenhum. Tribunais funcionavam ao ar livre, presididos por indígenas que decidiam a distribuição das terras. Camponeses aravam a terra com bois que adolescentes tangiam – por um instante, me vi ali, criança, com meu pai. Casas de madeira destacavam-se sobre a cordilheira dos Andes coberta de neve, tendo, como pano de fundo, o Pacífico. Era magnífico.
Eu conhecia pouco a história dos mapuches: um povo surpreendente, que conseguiu rechaçar os incas e os conquistadores. Tinham, acima de tudo, essa particularidade rara de não ter chefe, o que surpreendeu e desestabilizou os invasores, permitindo-lhes preservar seu território de toda infiltração. Hoje, os mapuches são menos de 1 milhão e continuam a lutar. Infelizmente, muitos foram detidos pelo Estado chileno como prisioneiros comuns.
Em Parral, a aldeia onde nasceu Pablo Neruda, vi três homens recostados no muro de uma casa. Aproximei-me com minha Nikon e a lente de 28 mm. Frontalmente. Essa frontalidade é uma de minhas características, que compartilho com um fotógrafo americano que respeito muito, Walker Evans. Procurei essa frontalidade em meu trabalho na França, adotando esse ângulo para fotografar postos de gasolina ou fachadas de cafés. Em vão. A França, com seus rios, colinas e vales, não é uma paisagem frontal como a dos Estados Unidos, território de conquista e planícies sem fim. Os três homens esperavam. Cheguei perto e os fotografei. Eles me observavam. Não se trata de um instante decisivo, mas de uma fotografia pausada. Ainda hoje, quando viajo à América Latina, para a Bolívia, o Chile ou a Argentina, frequentemente encontro pessoas que parecem à espera de algo, como se estivessem suspensas em outro tempo.
Essa temporada de cinco semanas no Chile foi um momento capital em minha vida. Comecei a fazer reportagem cedo, aos 18 anos; estava com 28 e ambicionava descobrir um caminho novo, sem saber ainda aonde ele me conduziria. Fotógrafos como Gilles Caron entravam de peito aberto na violência do acontecimento. De minha parte, não me sentia à vontade nesse tipo de relação com o objeto fotográfico. Minha permanência no Chile foi uma revelação: fiquei num lugar que era simultaneamente um acontecimento, ou melhor, um pretexto. O aniversário da posse de Allende, os movimentos das periferias urbanas, a reforma agrária, as manifestações, as reivindicações dos mapuches, tudo oferecia material para uma reportagem completa, à americana, como as publicadas pela revista Life ou pela Look. Trabalhamos nesse espírito, embora sabendo que a imprensa francesa não reservava espaço para esse tipo de matéria: a Paris-Match privilegiava a atualidade, L’Express ou Le Nouvel Observateur publicavam uma única foto para ilustrar cada reportagem.
Em 1973, quando eu era diretor da agência Gamma, essa reportagem chilena viu-se inesperadamente enriquecida. Enviamos Charles Gerretsen, nosso correspondente em Buenos Aires, para Santiago, durante a grande greve dos caminhoneiros que serviu de estopim para o golpe militar. É ele o autor da fotografia, que se tornou emblemática, do general Pinochet dentro de uma igreja, de braços cruzados e óculos escuros. Em seguida, pedi ao jovem fotógrafo americano David Burnett, que havia conhecido alguns anos antes, que continuasse a cobrir todos os acontecimentos que agitavam Santiago: a tomada do palácio de La Moneda, os autos de fé, o Estádio Nacional transformado em imensa prisão, o funeral de Neruda, que foi a primeira manifestação dos oponentes ao novo poder totalitário. Tive a ideia de reunir esses três olhares. Uma revista publicou um suplemento, que nos rendeu, em Nova York, o prêmio Robert Capa, distinção suprema do fotojornalismo. Henri Cartier-Bresson me enviou uma belíssima carta nessa ocasião.
Uma temporada no Líbano
Em 1978, Líbano e Afeganistão estavam em guerra. Decidi me afastar um pouco do fotojornalismo, da notícia, da reportagem e do exotismo das viagens. Fazia 20 anos que eu era repórter fotográfico, carreira que, a meu ver, perdera o sentido. Eu acabara de entrar na Magnum como sócio – mais tarde, viria a ser presidente da agência parisiense. Precisava mostrar serviço. A revista alemã Stern queria imagens da guerra civil que arrasava o Líbano. A Stern era a grande revista do momento, uma das únicas a dedicar 20 páginas a um assunto. Mas exigia que cada página oferecesse um ponto de vista diferente sobre determinado fato. O tema da guerra do Líbano prestava-se a isso.
Em Beirute, optei por fotografar não a guerra civil, mas suas conseqüências e tudo o que acontecia à margem dos conflitos. Por exemplo, fotografava um carro crivado de balas, em vez de um soldado correndo numa rua sob tiroteio. Beirute era uma terra de contrastes naquela época: muçulmanos, cristãos, a cidade, as praias. Aprendi a compreender, a andar, a circular, a esconder meus salvo-condutos nos sapatos. Tinha a espantosa sensação de chegar a um lugar devastado e vazio. Houve ocasiões em que recorri a palestinos e sírios para me escoltar até a zona oeste, onde eu morava.
Em geral, estava sozinho. Pegava o carro, avançava, estacionava diante dos combatentes. E ali ouvia saltar a trava de segurança do M16 ou do Kalashnikov; eu sabia que a bala entrara no cano. “Nada de fotos!” Eu explicava que era francês, mostrava meu salvo-conduto, tentava conversar. Poucos minutos depois, ouvia novamente a trava de segurança. A bala entrara de novo: ao menor passo em falso, poderia disparar. “Me fotografe!” Não se tratava mais de conversar; cumpria bater a foto, uma foto posada e sem interesse, mas absolutamente necessária para acalmar o combatente à espera do clique da câmera. Em seguida, seria possível passar a outra coisa, apreender um momento mais espontâneo.
Esse tipo de situação é corriqueiro em guerras, o que não significa que resulte em boas fotos. Há métodos a respeitar. É preciso ser rápido. É a lição que aprendi com o fotojornalismo: saber trabalhar rápido. Henri Cartier-Bresson dizia uma coisa bastante pertinente: convém proceder como faz a artilharia, atirar, depois desligar e partir para outra. Ser rápido e escolher o momento certo.
Essa temporada de mais de um mês no Líbano me pareceu longa e dolorosa. Fiz muitas fotos, essencialmente em cores. Na minha volta a Paris, René Burri, fotógrafo da agência Magnum, me deu alguns conselhos para a reunião com o diretor de arte da Stern, Rolf Gillhausen: alocar todas as boas imagens no início da apresentação; imaginar que, a cada página, se possa descobrir alguma coisa radicalmente diferente; jogar com os contrastes entre palestinos, cristãos, falangistas. Fui para Hamburgo com o meu carrossel de slides. Projetei as imagens – o casamento de cristãos, a pobreza dos palestinos, as praias. A Stern deu 25 páginas. Mais tarde, a reportagem foi publicada na Paris-Match. Eu passara no exame de admissão na Magnum com essa primeira reportagem, que fazia jus ao espírito da agência.
O medo em Glasgow
Em 1980, depois da reportagem em Beirute publicada pela Stern, Michael Rand, da revista do jornal Sunday Times, encomendou uma reportagem sobre Glasgow. Passei lá duas longas temporadas. Um redator fora especialmente despachado de Londres. Embora, como no caso de Beirute, fosse uma encomenda, nenhuma imagem acabou sendo publicada. É uma série completamente inédita.
Glasgow me parecia o antípoda da minha fotografia. Fotografei muito o sul, a África, o deserto. E, no entanto, o norte me faz bem. Observei isso também nas minhas fotos do norte da França: lá encontro uma luz excepcional.
Topei com uma grande burguesia, ocupada em jogar golfe e promover bailes beneficentes. Vi bairros em plena decadência. Fui surpreendido no meio de uma briga na frente de um bar, num sábado à noite. Tive tanto medo em Glasgow quanto em Beirute. Não era o mesmo medo, é claro, mas às vezes eu tinha a sensação de que não deveria estar ali naquele exato momento. Eterno insatisfeito, o fotógrafo quer sempre “fazer mais uma”. Como o camponês. Meu pai também era um eterno insatisfeito. Trabalhar com a natureza implica contar com o aleatório: alguma coisa sempre pode acontecer e arruinar a colheita. Com o fotógrafo ocorre o mesmo: ele sabe que fez uma boa foto, mas o seguro morreu de velho.
Em Glasgow não havia guerra. O que fotografar então? As crianças nas ruas? Os alcoólatras? Aquele espantoso cenário urbano? A luz era magnífica. Fui em junho e em setembro, os dias eram particularmente longos. Fotografei tudo o que via, pousando meu olhar naquele exotismo do norte. Trabalhei com uma câmera reflex, mantendo-me bem próximo das pessoas, nos pubs, nas ruas. Havia muitas crianças. Hoje em dia, todos evitam fotografar crianças: seja na África ou em outro lugar, fotografar crianças é uma armadilha da qual se deve fugir. É uma regra geral da reportagem: não fotografar homens armados nem crianças. Em Glasgow eu não tinha escolha, as crianças sentiam-se em casa naquele território urbano. Simpáticas, foram meus primeiros companheiros, meus guias na cidade.
A paisagem urbana não é o meu universo. Nem Beirute nem Glasgow são meu universo. Quando cheguei a Paris, também sofri: eu era um exilado do interior. No deserto, entre os mapuches, sou capaz de encontrar pontos em comum com a fazenda do Garet – ainda que essa região rural, como muitas outras na França, tenha mudado, deixando-se pouco a pouco invadir pela periferia. Quando fotografei a França, abandonei os centros urbanos para me concentrar nos arrabaldes, nas beiradas. Era o que eu conhecia melhor. Criança, ia de bicicleta para a escola de Pontbichet; percorria aquelas zonas suburbanas que encontramos em toda parte na França, com uma série de casinhas cercadas de pequenos jardins.
Em Glasgow, esse tipo de moradia não existe. No centro, encontramos a arquitetura art nouveau de Charles Rennie Mackintosh e, mais além, os conjuntos habitacionais, prédios altos e escuros. Confesso: para o fotógrafo do deserto que sou, aquele negrume pareceu bastante fotogênico. Glasgow é uma cidade bastante exótica. O problema, portanto, é saber como evitar esse exotismo ou, ao contrário, brincar com ele. É essa a questão da modernidade na fotografia.
O que é ser moderno?
O fotógrafo Félix Bonfils viajou muito pelo deserto. Abriu, em 1867, um estúdio em Beirute, no qual fotografava as pessoas à maneira de Nadar, contra um fundo branco. Modernidade é isso. A modernidade está em Félix Nadar, Richard Avedon, Félix Bonfils. Como fotografar o piloto que lançou a bomba atômica sobre Hiroshima? Como fotografar Glasgow ou Beirute hoje? Como fotografar o índio ianomâmi na floresta amazônica? Qual é a distância adequada? Não estou perto demais? Ou muito longe?
Entre os 50 fotógrafos da agência Magnum, não existe um que adote a mesma distância. Alguns ficam muito longe do objeto, como Elliott Erwitt; outros se posicionam a menos de um metro, como William Klein. Cada um tem sua própria zona do olhar. Quando filmo, ajo de maneira a não atrapalhar. Rodando num hospital psiquiátrico, numa delegacia ou numa redação, não procuro me dissimular, mas prefiro não chamar atenção. Em 1977, para a filmagem de Números zero, em plena redação do Matin de Paris, me vesti como os jornalistas, num estilo radical chique. Quando filmo entre os camponeses, escolho outro tipo de roupa. Estou convencido de que esse detalhe influi na imagem. Gosto muito desse aspecto do trabalho, de aproximação. Aliás, dei esse título, A aproximação, ao primeiro episódio da trilogia Perfis camponeses.
Na América do Sul ou na África, na Bolívia ou na Etiópia, bastam alguns segundos, uma atitude, um gesto com a mão, para as pessoas entenderem quem eu sou. O tipo de câmera fotográfica também tem sua importância. Possuir um material sofisticado demais é um obstáculo. A partir do meu trabalho sobre os camponeses, voltei à minha Rolleiflex. Robert Capa e David Seymour fotografaram com Rolleiflex, para não falar nos antropólogos, como Pierre Bourdieu nos bairros perigosos de Argel, Edmond Bernus entre os tuaregues ou Pierre Clastres entre os guaranis no Paraguai.
Não faz muito tempo, eu estava em Los Angeles, no Hollywood Boulevard, com a minha Rolleiflex. Os jovens paravam, intrigados com aquela máquina, vintage por excelência, e me fotografavam com seus celulares. Ela é uma câmera universal, impede que caiamos no voyeurismo. Com a Rolleiflex, meu rosto está limpo: vejo e sou visto.
A França em cores
Tive a revelação da cor no início dos anos 1980. Retornava de uma longa temporada nos Estados Unidos, onde observara atentamente a técnica dos fotógrafos de lá, sua maneira de captar a paisagem, não raro no laboratório, descobrindo naquela prática uma de minhas obsessões. Eles têm uma relação particular com o mundo rural, com o espaço, que é muito diferente da nossa. A paisagem talvez seja para os americanos uma maneira de confrontar sua história. Conheci grandes fotógrafos: Robert Adams, por exemplo, para quem o grande formato era o único modo de representar uma paisagem. Essa visão foi a base de toda a escola americana, influenciada, por sua vez, pelos fotógrafos franceses, como Eugène Atget, Charles Marville e Félix Nadar.
Eu refletia sobre essas questões da relação com a paisagem quando, em 1984, Bernard Latarjet me convidou para participar da missão fotográfica da Datar, que tinha como objetivo elaborar um perfil da França dos anos 1980 e suas transformações. Aceitei em homenagem a meu pai, relembrando seu sofrimento quando foi construída a rodovia que amputaria parte das terras da fazenda do Garet, destruindo o trabalho de uma vida inteira.
Em 1984, minha mãe ainda estava viva; fotografei-a na cozinha da fazenda, a toalha de plástico colorida sobre a mesa. Eu lhe pedira que não se mexesse durante o longo intervalo de quatro minutos, o que ela evidentemente fez no terceiro minuto. Mais tarde, me arrependi de tê-la repreendido. Eu trouxera dos Estados Unidos uma câmera Deardorff de 8 × 10 polegadas. Aprendi a trabalhar com a máquina, a fazer o enquadramento de ponta-cabeça, sob o pano. É uma relação com a imagem e o tempo bem distante dos hábitos do repórter acostumado com estrelas, terremotos ou guerras. Para me familiarizar com a câmera, fiz os primeiros testes para a Datar em preto e branco. E, de repente, a cor se manifestou como uma coisa óbvia.
No pátio da fazenda, reinavam o trator do meu irmão, um Massey Ferguson vermelho e a mobilete de Nathalie, minha sobrinha. Eu não podia fotografar aquilo em preto e branco. A cor é de suma importância. O trator tem um vermelho que todo mundo conhece, faz parte do imaginário coletivo desde o plano Marshall e a modernização da agricultura francesa graças à ajuda americana.
Lembro-me do primeiro Massey Ferguson que chegou à fazenda do Garet, eu tinha uns 12 anos; meu pai adiara o máximo possível essa compra, continuando, até meados dos anos 1950, a preparar a terra com os bois. A chegada do trator foi um acontecimento momentoso. Com a encomenda da Datar, pela primeira vez optei pela cor. Enfim, chegara a hora de fazer o que eu tinha vontade de fazer: fotografar em cores.
Um momento tão delicado
Então, lentamente, voltei ao preto e branco. De 1980 a 2000, produzi poucas fotografias em cores; reservava a cor para meus filmes. As fotografias dos livros A colina dos anjos (1993), Errância (2000) e A solidão feliz do viajante (1998) são em preto e branco. Retornei a muitos lugares que eu amava, ao deserto, à Ásia, a Nova York.
Nesse ínterim, utilizei a cor para mim, por prazer. Após inúmeros deslocamentos, idas e vindas, viagens pessoais ou motivadas por exposições, fiz, quase “clandestinamente”, fotografias um pouco à parte. Digo “à parte” porque não sei realmente como chamá-las. Escrevi, certo dia, numa caixa de fotografias, algumas palavras… o que, nas agências, em especial na Magnum, chamam de palavra-chave, após a chegada do computador e a classificação digital dos clichês. No caso, a palavra-chave era “um momento tão delicado”.
Essas imagens não se conectavam por um tema, eram fotografias mais livres, que eu fizera em minhas viagens. Fotografias em cores, bastante suaves, com certa contenção. Entreguei essa caixa a Hervé Chandès, diretor da Fundação Cartier, que foi um dos primeiros a admirar meu trabalho em cores e me estimulou a usá-las, enquanto eu me julgava sobretudo um fotógrafo do preto e branco. Repórter, fotografava em cores para satisfazer à exigência das revistas, mas sem dar muita atenção a isso.
Após Errância, eu virava uma página importante em minha vida, a da viagem e da reportagem. Entrava numa nova fase, que me aproximava da infância e de suas cores. Realizei diversas viagens à América Latina, com a ideia de um dia fazer um filme de ficção, que viria depois de Errância e contaria uma história intimista entre um homem e uma mulher. Foi pensando nisso que fotografei o interior de cafés, com suas mesas de fórmica, suas cores cintilantes, seus encardidos. Imagens que hoje podem parecer tingidas de nostalgia, porém dela estão completamente virgens, levando em conta que eu conhecia muito pouco daquele continente.
Passara apenas um longo período na Venezuela em 1963, no Peru em 1970 e no Chile em 1971, mas conhecia melhor a África. Acho que essa atração pela América Latina é fruto da temporada que vivi entre os ianomâmis na Amazônia e, em algum grau, das viagens que, por conta própria, sem pauta, fiz ao Equador, à Bolívia e à Argentina.
No Brasil
Em 2003, quando fui ao Brasil para fotografar os ianomâmis, os laboratórios Kodak tinham acabado de lançar um novo filme, com o qual o técnico me prometera um resultado inigualável. De fato, fiquei surpreso com a reprodução do tom da pele, ao mesmo tempo muito próxima da realidade e superdelicada. Como fotógrafo, é importante para mim reproduzir a cor tal como ela é. Sou um mediador. Não cabe a mim adensar ou clarear, exagerar ou economizar na exposição.
Era a primeira vez que pisava na floresta, e que floresta! Senti um medo idiota – eu, o fotógrafo dos desertos da África. O antropólogo Bruce Albert logo me tranquilizou: não estava chegando de surpresa, de certa forma era convidado dos ianomâmis. Eu nunca teria me permitido visitar uma população tão delicada em um território tão imenso sem a certeza prévia de ser bem-vindo e útil para alguma coisa.
Mulheres no rio, brincadeiras de crianças, afazeres dos adolescentes, retorno dos caçadores, sessões xamanísticas: a vida cotidiana era incrivelmente calma, e os horários, embora não parecessem, eram precisos. Como em meus tempos de criança, na fazenda de meus pais, os dias passavam voando, sem tensão, cada pessoa estava em seu lugar. Minha presença parecia não perturbar ninguém.
Minha mulher, Claudine Nougaret, que me acompanhava, pediu que eu colhesse o depoimento das mulheres. Anita e Salomé logo se ofereceram: falaram do rio que alimentou seus filhos, defenderam o modo de vida que levavam, lembraram dos forasteiros que invadiram a floresta poucos anos antes. A câmera rodou durante cinco minutos, tudo foi dito, e muito bem dito, não havia nada a acrescentar.
A tradição da cor
Sinto-me próximo da escola americana que nobilitou a fotografia documental. É uma arte que nasceu nos Estados Unidos, razão pela qual os americanos reconheceram, antes dos franceses, fotógrafos como Eugène Atget ou os europeus que tomaram as ruas de Paris. A fotografia de rua é a ilustração disso: as imagens de Garry Winogrand nas ruas são maravilhosas. Não temos esse ponto de vista fotográfico na França, bem longe do instante decisivo de um Henri Cartier-Bresson ou do romantismo de um Robert Doisneau.
Quando fotografo em preto e branco, inscrevo-me na grande tradição europeia de céus carregados e escuros, densos e profundos; em contrapartida, vejo a cor muito clara, luminosa, e, sobretudo, alegre. Lembro-me de uma entrevista do cineasta Robert Altman aos Cahiers du Cinéma; ele dizia que a solução para obter planos mais luminosos era superexpor o filme. O que vai na contramão de toda a escola francesa de fotografia e de cinema, que tende a adensar a imagem.
Faço essa experiência quando fotografo o deserto. No laboratório, os técnicos costumam adensar o céu, ao passo que o deserto é um deslumbre, exibindo uma luminosidade oposta à densidade. Nos anos 1970, eu lia muitos livros sobre a África, principalmente sobre a África colonial, em geral volumes ilustrados por pinturas de artistas orientalistas, como Eugène Fromentin ou Jean-Léon Gérôme, cujas representações do deserto são especialmente luminosas, com um céu quase branco. Também havia lido os depoimentos de dois cineastas: François Truffaut, que filmara Duas inglesas e o amor (1971), e Joseph Losey, que lançara O mensageiro (1970). Esses dois filmes se passam no início do século 20, na Inglaterra. Losey instruía seu câmera a evitar o céu azul, que, segundo ele, nos mergulhava na realidade de hoje.
Na cor, há um campo incrivelmente rico, que eu explorara de modo insuficiente. Os tecidos que as mulheres de Modra, no Chade, exibem no dorso dos camelos, a elegância dos camponeses do Altiplano, as pessoas que discutem e barganham nas ruas, tudo isso eu fotografo em cor. É a imagem da modernidade.
O homem é feito assim: para passar à idade adulta, rompe com aquilo que o liga à infância. Eis uma coisa que me impressionou quando percorri a França em 2004. Descobri um café em Dunquerque com mesas de fórmica vermelha – a mesma da bancada da cozinha de meus pais. Encontrei-as também na África do Norte, mas na França restaram poucas: os anos 1970 quiseram apagar a década anterior, o mobiliário de fórmica dos cafés desapareceu com a invasão dos revestimentos que imitam madeira. Eu começara meu périplo através da França pelo departamento de Pas-de-Calais, tentando descobrir a maneira certa de abordar aquela paisagem, a princípio em preto e branco. Eu titubeava. Claudine e Hervé Chandès me incentivavam a fotografar a França em cores. Eles tinham razão. De fato, eu queria fotografar aquela França como fizera com a fazenda do Garet, com a mobilete vermelha de Nathalie e os dois tratores do meu irmão, com os encardidos, o barro cozido, as pedras, a luz, as estações: para mim, a cor é isso. ///
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Raymond Depardon (1942) começou a fotografar aos 12 anos. Em 1978, foi trabalhar na agência Magnum e, no início dos anos 1980, começou a fazer filmes também. Recebeu o Grand Prix National de la Photographie, em 1991, e o prêmio César de melhor documentário, em 1955, por Délits flagrants.
Hélène Kelmachter é curadora e historiadora da arte.
Tags: Entrevista, exposição, fotojornalismo, ZUM #5