Entrevista com a artista visual Sofia Borges
Publicado em: 7 de março de 2014Apesar de muito jovem, a paulista Sofia Borges já tem uma trajetória expressiva no campo das artes. Exposta na França, Espanha e Noruega, a artista tem um estilo bastante próprio, marcado por imagens não raro enigmáticas: muitas vezes não se sabe muito bem sequer o que foi retratado. Algumas dessas imagens podem ser vistas na ZUM#5, com comentário de Felipe Scovino. Sofia conversou com a ZUM sobre alguns aspectos de sua obra e confirma: o indefinido, a incógnita e a equação são ideias que a fascinam.
Como desenvolveu a sua sensibilidade especificamente fotográfica? A família a incentivou? Que fotógrafos a inspiraram?
Apesar de sempre ter tido uma clara predisposição a tudo o que tivesse a ver com criação, durante a minha infância e adolescência em Ribeirão Preto, longe do mundo da arte contemporânea, eu nunca havia pensado em ser artista ou fotógrafa. Minha decisão de fazer artes plásticas surgiu quando, visitando uma exposição de arte contemporânea, me dei conta de que, se havia uma profissão na qual as pessoas faziam aquele tipo de coisa, então era aquilo o que eu ia fazer. Eu tinha 19 anos e havia acabado de me mudar para São Paulo para cursar outra faculdade, e acho que foi aí que a minha relação produtiva com arte começou, pelo menos de forma mais consciente.
Em 2004, ingressei em artes plásticas na USP, e durante os dois primeiros anos me dediquei muito ao desenho, à escrita e à escultura. O interesse pela fotografia surgiu na biblioteca da ECA; às vezes passava as tardes olhando os livros de arte e um dia me deparei com um da Diane Arbus, depois do Duane Michaels, Cindy Sherman, Francesca Woodman e outros. Esses livros me marcaram muito. Fotografar surgiu por um interesse em observar a relação entre as coisas. Pouco importava técnica/máquina/revelação/impressão, eu estava interessada no processo quase quimérico que acontecia entre uma coisa e a sua imagem.
Então, para entender melhor esse processo, comecei a fotografar a minha família; em reuniões, Natais, Réveillons e outras cerimônias. Me interessava observar como a fotografia conseguia instaurar um outro lugar para as coisas – e por ‘coisas’ quero dizer também as pessoas e as próprias cerimônias que ali aconteciam. Descobri nesse momento que a fotografia era ‘em si’ um lugar representativo, mimético, construtivo, e absurdo, onde tudo se encontrava deslocado ou destituído de sentido. A passagem entre realidade e representação me interessava profundamente, como a distância daquilo que eu via para o que se apresentava como imagem. No começo achava fascinante ver a minha própria família destituída de sentido. Eu não os fotografava para reconhecê-los, e sim para estranhá-los. Pelo mesmo motivo, por entender esse estranhamento do objeto e o esvaziamento do seu sentido ao se tornar “uma imagem”, comecei a fotografar a mim mesma nos lugares mais cotidianos.
Foi assim que começou minha relação com fotografia: desde o início o meu interesse tem um sentido investigativo, e, por mais que minha pesquisa apresente mudanças abruptas o tempo todo, minha produção desde sempre se dedica a entender do que se trata, afinal, uma imagem fotográfica.
Títulos de fotografias (e obras de arte em geral) podem direcionar o olhar de quem aprecia uma imagem. Até que ponto, na sua obra, os títulos direcionam o olhar do público?
O processo de dar título a um trabalho não é simples. No começo, meus trabalhos eram sempre sem título, mas percebi que isso gerava um problema desnecessário, pois toda vez que um trabalho era citado numa fala ou texto era preciso descrevê-lo minimamente para saber de que obra estava se falando. Por isso, a partir de um momento, eu passei a querer dar títulos bastante descritivos e objetivos aos trabalhos, não para defini-los propriamente, mas para localizá-los dentro de minha produção. Não durou muito tempo essa intenção, pois percebi que o título ajuda a definir, na verdade, a leitura de um trabalho. E não há como escapar disso, é uma espécie de finalização. O que eu poderia fazer seria colocar isso em função do que estava tentando construir. A primeira vez que aconteceu foi no díptico (e exposição individual) Ambas, de 2009. Hoje todos os meus trabalhos têm título, e alguns ainda localizam de forma mais objetiva o objeto retratado, como Coelho e Tronco Partido. E outros são títulos que apontam um desvio, um curto-circuito, definem um problema, como Monstro, Esqueleto, Oitenta Milhões de Anos.
Você pode falar um pouco sobre a gênese de algumas de suas fotografias? Natureza-Morta com Martelo, por exemplo, você a produziu? Ou encontrou aqueles elementos já dispostos daquela forma em algum lugar e teve a ideia da imagem?
O ângulo, o foco, a profundidade de campo, a temperatura de cor, a luz, o contraste, o tempo expositivo, todas essas escolhas “técnicas” ou formais definem a imagem. Não é o que “importa”, mas é o que define, recorta e formata o conteúdo daquilo que estou apresentando como imagem. No caso de Natureza-Morta com Martelo e Ointenta Milhões de Anos, que são trabalhos feitos no mesmo dia e local, de forma muito parecida, eu produzi com elementos que encontrei ali na hora, naquele mesmo lugar. Essas fotos foram tiradas durante a minha pesquisa para a 30ª Bienal de São Paulo, . Foi uma época em que viajei muito para fotografar, mas sempre com destinos bastante específicos, tanto fora do país quanto para pequenas cidades do interior do Brasil. Visitei inúmeros museus, zoológicos e centros de pesquisa em paleontologia. Na ocasião dessa foto, eu estava num pequeno laboratório da USP em Ribeirão Preto dedicado à paleontologia. Tinha finalmente conseguido a autorização para entrar ali e fotografar o que eu encontrasse. E apesar do martelo e do crânio que peguei meio aleatoriamente para fazer a composição serem tão relevantes para a imagem os objetos mais “nobres” eram os pequenos ossos envoltos em terra: fósseis de quase 100 milhões de anos.
Há também um grande mistério nas suas imagens – são muito indefinidas, enigmáticas, do tipo “decifra-me ou devoro-te”. Acha que as pessoas, em geral, as decifram ou são devoradas por elas?
Eu costumo dizer que meu trabalho é muito mais sobre como constituir uma pergunta do que necessariamente sobre como responder a ela. Nesse contexto, me interessa muito a ideia de equação matemática: numa complexa sentença que sempre resultará em zero não importa as variáveis x, y ou z. Ou como nos casos de equações formadas que sabe-se ter solução, mas ninguém nunca conseguiu resolvê-las. Ou ainda as identidades matemáticas em que uma coisa é sempre igual a outra, uma incógnita = outra incógnita. Me debruçar sobre tais conceitos me ajudou a definir algo que procuro em minha pesquisa: a incógnita. Tanto o resultado zero ou igual à outra equação quanto o problema sem solução são metáforas caras para eu tentar responder sempre a uma mesma pergunta, sempre obtendo um mesmo problema: o que é uma imagem e que é uma fotografia?
Como é sua relação com as imagens que cria? Você sempre as decifra antes de virarem uma fotografia (e, só então, as registra)? Ou elas ainda hoje a devoram?
Mais do que uma busca por imagens, a minha trajetória na fotografia sempre se deu como um processo investigatório de tentar entender do que se tratava aquela imagem – ou do que se trata “a imagem”. Nesse sentido, é uma pesquisa sobre a linguagem e sobre o sentido das coisas. Mas, para mim, não se trata de “falar” sobre a linguagem, e sim de buscar imagens que sejam “em si” esses problemas, buracos, falhas, vazios ou interdições. Talvez esse seja o maior motivo de minhas exposições mudarem de “assunto” de forma tão abrupta e em curtos espaços de tempo. Pois não se trata de falar sobre um “tema”, nem apresentar um “ensaio”; trata-se de criar uma equação, uma incógnita, um problema, e para um mesmo problema as variáveis x,y,z são infinitas.
Bruno Ghetti é jornalista cultural e mestre em estudos cinematográficos pela Université de Paris VII.