Entre o céu e o inferno
Publicado em: 22 de janeiro de 2014Eterno aventureiro, o fotógrafo espanhol que registrou os anos rebeldes da movida madrileña apresenta seus novos companheiros de estrada.
As motocicletas chegaram antes da fotografia na vida de Alberto García-Alix. Ele tinha 12 anos, e nem sinal das fartas costeletas, quando ganhou dos pais uma Ducati amarela. O motor era fraco. Mas aquelas 50 cilindradas parecem ter impulsionado o olhar do futuro fotógrafo espanhol mais que outros elementos marcantes de sua vida, como as mulheres possantes, as tatuagens, a heroína, o rock’n’roll ou a cuba-libre calibrada de rum Negrita.
“Sobre uma moto não há molduras”, escreveu o norte-americano Robert M. Pirsig no livro Zen e a arte da manutenção de motocicletas (1974). O motociclista não contempla, ele está dentro da paisagem. vive, sobre rodas, a possibilidade concreta e constante da queda; doma o vento agressivo no rosto, o solo que escapa depressa sob os pés, as curvas imprevistas. Assim é a estrada, numa motocicleta, e assim são as fotografias de García-Alix.
Sua história arranca em 1956, em León, cidade onde nasceu, 338 quilômetros a noroeste da capital espanhola. O pai (apropriadamente, um oftalmologista) mudou-se com a família para Madri ainda nos anos 1960. A fotografia foi um acaso, repete García-Alix sempre que pode, reiterando o aprendizado autodidata. Em 1975, uma câmera “caiu em suas mãos” – é sua expressão –, mesmo ano em que um novo horizonte político “caía nas mãos” espanholas, com a morte do generalíssimo Franco.
Ato contínuo, romperam-se as comportas da chamada movida madrileña, o período de efervescência boêmio–cultural que tomaria a capital espanhola no final dos 1970 e começo dos 1980. García-Alix surfou nessa onda a sua moda, e para ela confluíram muitos outros, como o cineasta Pedro Almodóvar, a cantora punk-rock Alaska, o pintor-músico-faz-tudo Fabio McNamara e o ilustrador Ceesepe, parceiro do fotógrafo num coletivo chamado Cascorro Factory.
García-Alix tinha uma moto, uma câmera e não muito mais. Passava as marchas, de um bar a outro, de uma festa à seguinte, até acordar em algum sofá. Quando conseguia algumas pesetas no bolso, comprava rolos de filme 35 mm. E assim, de tempos em tempos, o varal de sua casa via surgir retratos de rostos esquisitos, secando entre cuecas e pares de meias.
Montserrat, 2005
É estranho, e ao mesmo tempo não, imaginar essas fotografias naquele ambiente. García-Alix, 57, é hoje um dos fotógrafos mais premiados da Espanha, um artista de grandeza europeia. Suas imagens cabem tanto numa área de serviço quanto no museu Reina Sofía, o grande templo espanhol de arte contemporânea, que lhe dedicou uma retrospectiva em 2008, com mais de 250 fotos.
O nome da exposição, De onde não se volta, é o título de um dos textos mais pessoais de García-Alix, publicado em Morreremos olhando (2008), coletânea de quase 300 páginas com todos os escritos do fotógrafo. Escrito como um ensaio com tintas poéticas, e depois reelaborado na forma de roteiro de filme (García-Alix tem se dedicado ao cinema), o texto fala, em diferentes níveis semânticos, da experiência de perder-se. Seja sobre o ato de misturar-se a um território estranho, como o fotógrafo fez sistematicamente em vilarejos da China, no final dos anos 2000, para fotografar o desconhecido, seja sobre as perdas concretas, one way, da vida.
“Noite e dia, alimentamos um demônio através das nossas veias. Anos com o sorriso morto nas pupilas e o coração desbocado. Anestesiamos amor e dor”, escreveu o fotógrafo sobre suas extensas, intensas e difíceis experiências com a heroína. “O céu ficava a cinco ou seis quadras de Madri”, anotou, sem mencionar a distância do inferno. Willy, seu irmão, foi o primeiro do grupo a morrer de overdose, aos 25 anos. Muitos outros seguiram a trilha, um “imenso cemitério”, incluindo sua companheira Teresa, a Tere.
Pessoas, lugares, situações e amores passaram e passam, sem volta, mas García-Alix tinha uma câmera e o que ele chamava de “a vontade do encontro”. “Um retrato é um encontro entre seres humanos que leva consigo a alegria e a dor de ser perene”, disse ao receber o importante Prêmio Nacional de Fotografia, na Espanha, em 1999. “Esse encontro é memória. Uma vez acionado o disparador da câmera, o sujeito fica preso na imagem. Já não é presente, é passado. Já não somos como somos, somos como éramos.”
Não eram nem foram poucos os retratados. Ao longo de cerca de quatro décadas de cliques, García-Alix fez mais de 100 mil fotografias, sempre analógicas (“no digital, há falsidade demais; a beleza está na imperfeição”). É um universo quase infinito de sujeitos solitários, a maior parte em preto e branco: transexuais, tatuados de todos os tipos (“para entrar no céu, deverás estar tatuado”), estrábicos, atrizes pornô que exibem seus atributos com seriedade e destreza ginecológica, homens feridos, um deles com um hematoma no olho (“foi golpeado no último dia do ano”, diz a legenda). Quase nunca há cores, e contam-se numa mão, repleta de anéis de caveira, os retratados que sorriem. O personagem de García-Alix está, por excelência, compenetrado: o olhar afundado numa highway da alma. E isso vale, sobretudo, para um de seus modelos mais constantes: ele próprio.
García-Alix já se fotografou jovenzinho, cercado por duas voluptuosas prostitutas fellinianas, na itália, em 1986; nu, com suas tatuagens, à beira de uma piscina, em 1991; descabelado e com um vestido preto, em 2002. Nos últimos anos, os autorretratos, ou “radiografias”, como ele chama, têm se tornado mais frequentes. A ponto de serem o tema exclusivo de uma exposição realizada no primeiro semestre de 2013 no palácio de La virreina, em Barcelona.
“Evoluí bastante porque aprendi a escutar a minha voz interior, e os anos me fizeram mais preciso e mais conciso”, disse em entrevista ao jornal catalão La Vanguardia. Mais taciturno também, acrescentaria um analista frequente de sua obra: “Não se pode dizer que García-Alix tenha ficado mais velho, mas sim que sua vontade de viver se aprofundou, e seu olhar ficou mais melancólico”, escreveu o crítico espanhol Francisco Calvo Serraller. Num ensaio intitulado “Disparos na escuridão”, Serraller chama a atenção para alguns “autorretratos” em que aparecem apenas os sapatos ou as botas pretas de bico fino típicas dos motoqueiros. “Os sapatos não refletem apenas um gosto, mas uma forma de caminhar pela vida, uma maneira de existir e, ao final, um modo de ser”, ensaia Serraller.
O crítico identifica nesses objetos um signo bem-acabado do poeta de rua, do andarilho, do trota-mundos, da versão contemporânea daquilo que Baudelaire chamou, há 150 anos, de “o pintor da vida moderna”.
Mas engana-se quem acredita que este easy rider seja apenas um artista do improviso, do esboço, do instantâneo. Muitos dos retratos, por exemplo, são planejados com uma minúcia pouco alardeada.
“Não é fácil posar para Alberto. Ele é muito meticuloso com a composição e pode te levar à loucura experimentando a posição das suas mãos até chegar exatamente aonde quer”, diz Ana Curra, cantora do grupo afterpunk espanhol Parálisis Permanente e uma das muitas musas desse homem que ama as mulheres.
Mas ouçamos também Ray Loriga, escritor, cineasta, amigo (e inimigo) de García-Alix: “Alberto é o resultado de uma combinação impossível de loucura e estratégia. Por um lado, é um caçador irrequieto. Por outro, é um cirurgião de precisão diabólica, capaz de arrancar o coração de alguém sem deixar nenhuma marca na pele. É um mestre do barulho e do silêncio.”
O próprio García-Alix não discordaria de nada disso. “Quando dou aulas de fotografia, primeiro procuro ensinar o aluno a tirar tudo o que está sobrando. Quanto ao que falta… ah, esse é um assunto difícil”, escreveu. “A fotografia sempre deve ter mistério. O mistério da própria vida, o da próxima curva.”///
Alberto García-Alix (1956) nasceu em León, na Espanha. Mudou-se para Madri com a família em 1967. Ali, no final dos anos 1970, começou a fotografar, registrando a época de efervescência da movida madrileña. Recebeu o Prêmio Nacional de Fotografia em 1999.
Cassiano Elek Machado é repórter especial da Folha de S. Paulo e curador dos debates do Festival Internacional de Fotografia Paraty em Foco.
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