A prata da China
Publicado em: 2 de abril de 2020Uma vez por mês, o francês Thomas Sauvin visita um lixão clandestino em Pequim atrás de negativos que seriam destruídos pela reciclagem de prata. Em três anos, seu projeto Beijing Silvermine salvou meio milhão de fotografias, a maior parte delas produzida entre 1985 e 2005, período em que as câmeras analógicas se popularizaram na China.
Feitas por fotógrafos amadores e desconhecidos, as imagens apresentam a vida cotidiana de um país recém-saído da Revolução Cultural. Distantes do contexto original e incorporadas a uma coleção de arte, essas imagens ganham outros significados e passam a integrar a categoria artística das fotos encontradas, como argumenta o premiado fotógrafo e professor catalão Joan Fontcuberta no ensaio que acompanha o portfólio.
Uma nota sobre a photo trouvée
O efeito poético das fotos encontradas pode ser maior ou menor de acordo com o grau de conteúdo e história que o observador é capaz de perceber nelas. Nesse envolvimento mais intenso ou mais débil surge o punctum de Roland Barthes: uma imagem pode emocionar alguém, mas ser anódina para outros. Por isso, Barthes se negou a reproduzir a foto de sua mãe em A câmara clara (1980) – o retrato de dois irmãos em um invernadouro, um menino de sete anos e uma menina de cinco, um retrato do qual lemos a descrição, de que todos falam, mas que, afinal, ninguém viu, ampliando assim seu mistério e seu caráter sombrio.
Na lógica do relato, essa foto viria a ser a ausência de outra ausência, a ausência da imagem que devia ter suprido a ausência do personagem. Para Barthes, os traços desse rosto teriam evocado carícias ao despertar e beijos de boa-noite. Mas apenas para Barthes; para os leitores, mesmo no maior esforço de empatia, nem o olhar nem o sorriso dessa menina (porque quero supor que a mãe de Barthes sorria) estariam impregnados de uma memória comum. No máximo, se obteria um simples dado, uma enunciação plana, sem profundidade nem ramificações: “Olhe, esta era a mãe de Barthes quando tinha cinco anos”. No começo do segundo capítulo do livro, Barthes conta: “Em uma noite de novembro, pouco depois da morte de minha mãe, estava organizando fotos, […] procurando a verdade de um rosto que havia amado”. A descoberta da foto do invernadouro significava o reencontro com essa verdade que as outras fotografias pretendiam sem conseguir.
A fotografia pode nos lançar na busca dessa verdade perdida, mas também nos fazer achar uma verdade adormecida, à espera de um acaso que a recupere da letargia, como o beijo do príncipe que despertou Branca de Neve. A escritora britânica Penelope Lively publicou no romance A fotografia (2002) a crônica de um reencontro inesperado que, entre a madalena de Proust e o beijo em Branca de Neve, ilustra esse ressurgir da consciência. Glyn Peters, um célebre acadêmico e historiador da paisagem, fuça em um armário tentando localizar velhas anotações quando encontra uma fotografia em que aparece sua mulher, Kath, morta 15 anos antes (mais adiante, saberemos de seu suicídio). A foto estava em um envelope onde se lê: “Não abrir. Destruir”.
No meio de um grupo que desfruta da campina inglesa em pleno verão, Kath aparece de mãos dadas com outro homem; embora estejam de costas para a câmera, não é difícil identificar os amantes. O achado levará Glyn a investigar a vida da mulher e repassar seus últimos anos de vida, com a sanha do marido humilhado e a meticulosidade do arqueólogo profissional. A descoberta daquela fotografia também afetará, de uma forma ou de outra, todo o círculo familiar e afetivo próximo a Kath, fazendo aflorar um passado insuspeito.
O trabalho de Glyn como historiador o habituara a desvendar enigmas a partir da interpretação de vestígios e documentos. Mas, nesse caso, havia muitas perguntas das quais não podia preservar a distância crítica necessária. Com quem Kath mantinha uma relação amorosa? Quem tirou a fotografia? Onde e em que circunstâncias? Ao longo da trama entenderemos como essa imagem ressuscitada foi a espoleta que faria explodir uma realidade cheia de arestas e conflitos soterrados, que a felicidade pequeno-burguesa de Glyn preferia ignorar. A foto encontrada constitui, nesse caso, o início de uma concatenação de vivências, e isto acontece porque estava intimamente incrustada na experiência do espectador. Se qualquer outra pessoa alheia a essa dor tivesse encontrado a foto em vez de Glyn, provavelmente nada teria acontecido. A foto teria seu segredo preservado, e hoje não teríamos o romance, porque a história de um velho professor acomodado em seu carisma universitário e entretido com suas conferências não interessaria a ninguém.
Diane Arbus, outra alma penada que resolveu tirar a própria vida, sentenciou: “Uma fotografia é um segredo sobre um segredo. Quanto mais lhe diz, menos você sabe.” A questão principal, portanto, diante de uma foto encontrada, é determinar que dose de segredo ela encerra. A artista Lúa Coderch demonstrará que o segredo contamina todas as imagens, inclusive as mais familiares. Nascida no Peru, em 1982, Coderch formula em seu projeto Recompilar fotografias sem memória perguntas semelhantes às que torturavam Glyn, mas, para isso, não esperou que o acaso colocasse em suas mãos uma foto misteriosa. A artista buscou no álbum de fotos de sua família, as imagens que nenhum parente vivo fosse capaz de reconhecer nem identificar: quem é o personagem que aparece? que relação tinha conosco? onde e quando a foto foi tirada?
É como se Lúa tomasse emprestadas as inquietudes de Glyn. A verdade é que as fotos que interessam a Coderch pertenciam a sua crônica familiar, e a inclusão no álbum indicava um significado que se desvaneceu. Como se falhassem as sinapses entre as gerações, o álbum revela assim sua condição de legado, que requer a transmissão do relato para não se dissolver. Carentes de qualquer conexão com o restante, as imagens selecionadas por Lúa Coderch ficam submersas na poética do mistério, no Unheimlich, no sinistro.
Mas isso não acontece por descontextualização, como nas experiências surrealistas com os arquivos, não há um deslocamento da imagem de um plano discursivo a outro. O que há é o deslocamento de uma consciência a outra, a ruptura dos vínculos que mantinham uma história comum. Aqui fica patente a fragilidade do processo em que o que é próprio se torna alheio: é como se olhássemos um álbum que já não é nosso, ou como se estivéssemos diante de registros dos quais foram apagados os “metadados” pessoais.
Desapegadas da recordação e da experiência: talvez essa seja a condenação de todas as imagens com o tempo. Penelope Lively termina assim o romance: “A fotografia voltou ao armário, porque Glyn não tem nem vontade nem intenção de vê-la outra vez. Poderia tê-la rasgado, mas a destruição de material de arquivo ofende seus instintos mais profundos. Vamos deixá-la onde está […]. A imagem é a mesma de sempre, com a diferença de que agora está impregnada de uma consciência nova e lhe parece diferente.” A imagem é, de fato, a mesma; o que muda é o olhar.
Se tivéssemos que estabelecer uma distinção entre uma mera foto encontrada – o que, muito graficamente, o artista italiano Franco Vaccari chama de lumpenfotografia – e o que podemos classificar como photo trouvée, deveríamos considerar não as características físicas ou estéticas da foto, mas sim essa “consciência nova”. O que estabelece a diferença não é algo na imagem, mas na atitude do espectador.
Por outro lado, é óbvio que o termo photo trouvée ecoa o objet trouvé dos surrealistas. Na história das vanguardas, o objet trouvé provocou uma ruptura com as teorias vigentes da criação artística, introduzindo três princípios radicalmente inovadores: o primeiro, que qualquer objeto, inclusive o mais banal ou aquele produzido industrialmente, pode ser uma obra de arte; o segundo, que a artisticidade não é determinada pela qualidade da manufatura artesanal ou técnica, mas por sua situação em um contexto particular de observação; e o terceiro, que o valor artístico não está na fabricação material da obra, mas no processo mental de selecionar e decidir. Esses princípios se aplicam à photo trouvée, mas acrescentando o paradoxo de que hoje há muito mais imagens do que objetos, o que nos obriga a reajustar as regras do jogo.
A primeira dessas regras para uma justa adscrição à categoria de photo trouvée já foi formulada: as fotos devem ser mudas, para que possamos dar-lhes voz – a nossa voz. Em outras palavras, as fotos devem se desprender dos laços que poderiam ligá-las a um espectador, soltar-se de todo reconhecimento para que possam funcionar como telas perfeitas, que acolham nossos fantasmas e questionem essa compilação do ordinário e do anódino. A imagem então transcende o registro visível para, através de um “fora de campo” ativo, penetrar nas reservas do invisível. Talvez a fotografia decalque a realidade, mas sempre o faz pela impostura.
Ativistas da reciclagem e artistas, como Anke Heelemann, lançaram-se à caça desse contingente inesgotável de fotos órfãs. Para seu work in progress intitulado FOTOTHEK – Armazém Especial de Fotos Privadas Esquecidas, ela colecionou mais de 100 mil fotos, com as quais não pretende fazer um discurso sócio-histórico ou antropológico, mas questionar o valor dessas imagens fora do contexto original. Sob esse parâmetro, Heelemann escreveu: “As fotos privadas tendem a perder o sentido quando são descartadas. Perdem a função como uma fonte particular de memória, que não pode ser recuperada. O sistema habitualmente fechado e autorreferencial entre produtor e consumidor de imagens é interrompido. Mas é exatamente o anonimato desse material que gera um novo potencial criativo. As imagens se abrem e ficam disponíveis para um amplo leque de leituras e interpretações. A ausência do contexto original e a perda do vínculo com o presente levará a novas interpretações.”
O portfólio Beijing Silvermine apresentado nestas páginas é uma seleção de cerca de meio milhão de fotos recompiladas pelo fotógrafo francês Thomas Sauvin, que trabalha como “olheiro” na China para o Archive of Modern Conflict (Arquivo do Conflito Moderno), uma iniciativa privada de criar acervos fotográficos heterodoxos, à margem dos critérios museológicos institucionalizados. Sauvin descobriu as fotos através de uma empresa de reciclagem que comprava negativos e diapositivos por quilo para recuperar o nitrato de prata. Graças a sua inquietude, o material foi salvo de uma destruição insensata.
A maioria das imagens foi feita entre 1985 e 2005, o intervalo entre o momento em que a economia chinesa permitiu à maioria dos cidadãos possuir uma câmera fotográfica própria e a irrupção da fotografia digital. Mas tais imagens se negam a monumentalizar o período épico em que a China deixou para trás as sombras da Revolução Cultural e se converteu na segunda potência mundial; pelo contrário, nelas se apreciam os distintos registros de uma extensa gama da photo trouvée: o insólito, o humor, o banal, o ridículo, o acaso, os acidentes, a imperfeição técnica, a degradação química… Mas as fotos cumprem o requisito prévio da photo trouvée, na medida em que nos são completamente alheias; minha perspectiva ocidental me leva a percebê-las dentro de um marco de exotismo, como ilustrações de uma outra civilização. Essa distância proporciona minha neutralidade e permite que eu as considere matéria-prima maleável na qual escrutar os aspectos que me convenham.
Foi o que fizeram, por exemplo, os historiadores franceses Michel Frizot e Cédric de Veigy em 2006, quando tentaram recapitular uma antologia da photo trouvée com base na sensação de encantamento que as imagens selecionadas produziam neles; depois, veio a vontade de compartilhar esse prazer visual. O denominador comum deveria ser a surpresa. Eles argumentavam que: “Em mãos de fotógrafos amadores, a câmera é imprevisível; captura as coisas que desejaríamos preservar, mas nem sempre como tentamos. Essas imagens revelam tanto a intenção da pessoa que tira a fotografia como aquilo que, pela inexperiência e pelo descuido, parece tê-las eludido.” Em sua justificativa, as imagens eram o resultado ao mesmo tempo da intenção do fotógrafo, da própria inércia da câmera e de um acaso incontrolável. Certo! Certo se nos ativermos ao aspecto formal ou estético, mas insuficiente se examinarmos de uma perspectiva fenomenológica. Qual é, então, o vetor que falta?
Recapitulemos. Nossa era pós-fotográfica caracteriza-se pela produção massiva de imagens e por sua disponibilidade na internet. Às fraturas ontológicas que a tecnologia digital impõe à fotografia, somam-se mudanças profundas em seus valores sociais e funcionais. Assim, a cultura visual pós-fotográfica se vê sacudida, de um lado, por um questionamento agressivo da noção de autor e, de outro, pela legitimação das práticas de apropriação. Esse novo contexto nos faz questionar a natureza da criação e as condições de artisticidade.
Diante da figura do artista romântico e do produtor modernista, erige-se hoje a figura do amador. O termo “amador” suscita, ao mesmo tempo, avaliações opostas. Um amador é alguém que carece dos requisitos e dos recursos de um profissional e que, portanto, parece não ser capaz de garantir o mesmo nível de qualidade. Nesse sentido, o amador foi estigmatizado como alguém que desenvolve uma atividade sem competência nem rigor. Por outro lado, é alguém que atua motivado pela mera satisfação pessoal, sem se submeter a interesses econômicos nem a propósitos utilitários, guiado somente por aspirações mais nobres. Todos somos amadores em algo. A facilidade de aceso às ferramentas digitais nos transforma em amadores no âmbito de atividades que, há algumas décadas, requeriam uma dedicação especializada.
De fato, na prática fotográfica atual, caberia diferenciar os simples usuários (que se limitam a tirar fotos de vez em quando e que usam a imagem de forma espontaneamente servil) dos amadores (que concebem suas fotos segundo determinados critérios e depois administram sua difusão, compartilhando-as, por exemplo, na internet). Os amadores e os simples usuários, em oposição ao estamento dos experts ou profissionais, são, portanto, aqueles que geram o mais extenso magma de fotografia vernacular, um crowdsourcing icônico que põe repertórios visuais prolíficos à disposição dos observadores, às vezes com resultados originais. Esses repertórios aparecem para os criadores contemporâneos não mais como simples representações do mundo, mas como elementos tangíveis, aptos a se transformarem em material de trabalho.
“A imagem”, dizia Godard, “não pertence a quem a faz, mas a quem a utiliza”, e o atual ecossistema icônico propicia, de fato, a reciclagem e o remix. Amiúde a ação artística consistirá de um exercício de organização de fotos, ou seja, de selecioná-las e organizá-las segundo uma afinidade visual a partir da qual será possível operar. A criação se sustentará então em afinidades eletivas, resultado de ações críticas de eleição. A institucionalização do gesto de apropriação nos obriga a ajustar sua reformulação teórica a um conceito mais de acordo com a realidade contemporânea: na prática pós-fotográfica, as imagens não são apropriadas, mas adotadas. Ad optare em latim significa “optar, eleger”. Portanto, apropriar-se significa capturar, enquanto adotar é declarar uma escolha. O acento da propriedade se desloca para o ato de eleger. É a eleição que gera significado. Adotar imagens, consequentemente, implica conferir-lhes novo significado, fazê-las reviver.
Para Walter Benjamin, o artista moderno era uma espécie de trapeiro que acumulava e selecionava dejetos para dar-lhes nova forma e sentido. Muitos artistas aplicam essa pulsão de busca aos conjuntos construídos pelos amadores e pelos simples usuários. Os amadores esperam como recompensa a satisfação pessoal, ou o prazer da descoberta, ou o entretenimento, ou o êxtase narcisista… Os meros usuários esperam apenas concluir um ato de comunicação. No entanto, a ação artística transcende esses propósitos ao assinalar valores inadvertidos até então e prescrever um sentido. O artista é movido por uma vontade de discurso, pela consciência de projeto crítico, por estratégias conceituais e ideológicas do próprio projeto, pelos contextos de legibilidade…
Transcendendo a produção amadora, o artista estabelece configurações que revelam novos trajetos de pensamentos entre as imagens. A pulsão de recolher segmentos do mundo, desvelando ao mesmo tempo sua heterogeneidade e seu poder de atração involuntário, adquire assim natureza de poética artística. Com isso, o artista superpõe intenções fortes às intenções débeis que essas mesmas imagens invocavam em sua origem, enquanto expõe a dialética entre imagens órfãs e imagens adotadas, entre imagens mudas e imagens que falam. Essa ação criativa não é privilégio dos artistas profissionais, porque a ação de recuperar certas imagens e lhes dar voz também é executada por colecionadores, historiadores, editores, designers, publicitários etc. Last but not least, como efeito colateral, a photo trouvée implicaria, por sua vez, a socialização do gesto artístico. Por exemplo, transformar a sedução exercida pelas fotos que deram origem ao projeto Beijing Silvermine em decisão de colecioná-las, organizá-las e publicá-las. Transformar a indiferença ou o olhar distraído em ênfase e olhar fascinado. Dar-lhes visibilidade, como acontece nestas páginas graças à corrente de cumplicidades entre Thomas Sauvin, o Archive of Modern Conflict e a ZUM… Tudo isso cabe nas ações de natureza artística segundo os padrões atuais. Talvez tendamos a um cenário em que os gestos artísticos prevalecerão sobre os artistas. ///
Tradução do espanhol de Luís Carlos Cabral
Joan Fontcuberta (Barcelona, 1955) é artista, professor, historiador e curador.
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