O melhor amigo do
Publicado em: 20 de junho de 2013Entre luz e sombra, um registro furtivo dos cães de rua
Eles revelam no pelo, no focinho e nas formas toda a longa mestiçagem que os gerou. Os cães de raça, ao contrário, parecem se referir a um tipo ideal, estável, e é em relação a ele que são julgados nos torneios e campeonatos. A ausência dessa proteção – uma raça que os abrigue – dá aos vira-latas uma singularidade ambígua: aquilo que os torna únicos é também sinal de abandono, a liberdade para escolher os parceiros condena-os a uma vida perigosa. Nas cidades, um cão sem dono pode no máximo ser o fiel companheiro de um sem-teto, compartilhando sua fragilidade.
Nas fotos do artista plástico, músico e compositor Eduardo Climachauska, essa existência precária adquire realidade notável. A decisão de fotografá-los à noite, com flash, acentua a presença esquiva desses animais na paisagem urbana. Por vezes, as imagens se aproximam de fotos científicas de algum animal em extinção. Em outras, os cães parecem se esconder do fotógrafo, como se temessem ter a identidade revelada por um repórter policial.
Em todas elas, a luz do flash cria uma região que funciona como um tablado onde os animais deveriam atuar. Mas a margem de acaso que Climachauska incorporou a seu trabalho – ele mal olha no visor da Leica ao fotografar – frustra a todo instante o papel óbvio que a luz deveria desempenhar. E assim, vistos de lado, fragmentados ou furtivos, os vira-latas jamais têm uma representação plena, que contrariaria a vida que levam em nossas cidades. Uma tensão permanente entre sombra e luz corrói a inteireza desses cães. E esse movimento põe as fotos de Climachauska em contato com aspectos fortes de seus outros trabalhos visuais, não fotográficos, marcados por tensões irresolvidas entre forças poderosas, como nos cabos de aço esticados ao máximo sobre toda extensão de uma galeria por uma ferramenta chamada tirfor, uma espécie de guincho manual.
A decisão do artista de dispor as fotos em pares torna ainda mais precisa a observação dos cães. Contrapostos a bueiros, a uma fogueira miúda ou a uma carroça de catador de papéis, eles recebem uma qualificação desses objetos cotidianos associados aos refugos. Ou então espelham uns aos outros, como a impedir que sua imagem desse margem a outros significados ou a metáforas.
A proximidade entre cachorros e seres humanos sem dúvida pode dar a essas fotos um simbolismo complexo. O melhor amigo do homem, o ser fidelíssimo da fidelidade canina, aparece aqui abandonado por aqueles em quem tanto confiou. E isso o engrandece, apesar de tudo. Muitos artistas, cada um a seu modo, fizeram dos cães uma metáfora para questões que os afligiam: Graciliano Ramos e a Baleia de Vidas secas, Alberto Giacometti e O cão, Vittorio de Sica em Umberto D., Daido Moriyama e seu Vira-lata, Italo Svevo em Argo e seu dono… a lista não teria fim.
Eduardo Climachauska evitou o risco de tornar os cães um espelho dos sentimentos humanos, o que implicaria colocá-los numa posição duplamente domesticada: seres fiéis a nós, a ponto de poderem sentir o que nós sentimos. Nas fragmentações e na tensão entre luz e sombra, suas fotos revelam uma incompletude que pede contato com algo que está além do que vemos. Como se diz na análise gramatical, há nelas um sujeito oculto. Tanto o fotógrafo (por abdicar ao controle das imagens) quanto os demais seres humanos estão ostensivamente excluídos das fotografias.
Ou seja, os cães foram abandonados à própria sorte. São seres solitários e, por sua história, incapazes de viver autonomamente nas cidades, coisa facílima para os ratos, por exemplo. Mas, a partir daí, os sentidos se embaralham. O que significa um tatu entrevisto numa estrada, à noite? Nada que não seja um tatu visto à noite. E por que um pobre vira-lata teria a responsabilidade de carregar sobre as costas algo que estaria para além dele? Acontece que, assim como certas aves indicam a presença de terra aos navegantes, os cães estariam fadados a… Complete cada um como quiser. Eduardo Climachauska se limitou a formular a pergunta. ///
Eduardo Climachauska (Clima) é artista plástico, cineasta e compositor. Nascido em 1958, vive e trabalha em São Paulo. Formou-se em cinema pela Escola de Comunicação e Artes da USP.
Rodrigo Naves (1955) é crítico de arte, professor de história da arte e doutor em estética pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. É autor, entre outros, de A forma difícil (1996) e O vento e o moinho (2007).
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