A fé na encruzilhada
Publicado em: 16 de abril de 2014O fotógrafo Guy Veloso apresenta o projeto “Penitentes – Dos rituais de sangue à fascinação do fim do mundo”, que realiza há 10 anos. Pinçadas de um arquivo de cerca de 10 mil slides, estas imagens registram o movimento de fé e misticismo que se repete pelo país durante a Semana Santa e o Dia de Finados. A matéria abaixo foi publicada na ZUM #3 [outubro de 2012].
Conhecidos como Alimentadores de Almas, homens e mulheres de mortalhas palmilham vielas entoando ladainhas e rangendo suas matracas. Os grupos se reúnem em cemitérios, encruzilhadas e casas de famílias em luto para rezar pelos espíritos dos entes queridos.
Altruístas, eles nada pedem para si. Suas preces são resquícios de uma tradição oral antediluviana que diminui ano a ano, com a morte dos líderes e o desinteresse das novas gerações. Os grupos costumavam sair à meia-noite, mas o horário foi sendo alterado nas últimas décadas, por razões de segurança.
Além das exaustivas caminhadas carregando cruzes e candelabros, uma pequena parte dos penitentes pratica a autoflagelação, açoitando o corpo com as disciplinas – cordões de couro com lâminas de metal na ponta. Tradicionalmente, a autoflagelação só termina quando a anágua e o capuz estão totalmente tingidos de sangue.
Os recomendadores de almas muitas vezes sofrem com a perseguição da polícia, a discriminação da Igreja e o preconceito da população local.
A NOITE DOS PENITENTES
Os penitentes do ensaio fotográfico de Guy Veloso nada pedem ao fotógrafo. Apenas se penitenciam dos pecados próprios e alheios, dos pecados cometidos e a cometer. Para eles, o pecado está inscrito no corpo, que já pecou antes de pecar. É, aliás, a mensagem do batismo. Somos concebidos em pecado e em pecado nascemos, já pecando. É do que nos falam as autoflagelações sangrentas, o corpo punido até que o capuz e a túnica brancos fiquem completamente ensanguentados, como se vê nas imagens dos penitentes de Xique-Xique (Bahia). Sofrem ainda pela culpa das poucas alegrias que um pobre pode ter, até pelas transgressões dos tempos do cativeiro que deixou sua indisfarçável marca na cor de sua pele. A cor da culpa é a cor das escravidões, a do índio, a do negro, a do mestiço. Uma inversão espantosa e cruel do que foi de fato a relação entre senhor e escravo. São raros os propriamente brancos nas fotografias de penitentes de Guy Veloso. Os penitentes de Nossa Senhora da Glória (Sergipe) contracenam com o retrato desbotado de um preto velho que tem no pescoço um colar simbólico do candomblé. A foto documenta mundos desencontrados, tensões significativas entre visões de mundo, desconstruções recíprocas, gritos prisioneiros no silêncio da história.
Não se trata de poses de sofrimento e privação. Nem de teatro da Paixão, como muitos julgam e é o caso em Vila Boa de Goiás. Nem Veloso quis trabalhar a composição para maquiar os estigmas ou acentuá-los, o que seria bem próprio dessa sociedade de maquiagens. Nada além da perspectiva do acompanhante dos devotos, que os segue e vê. O fotógrafo deixou-se levar pelo fluir natural dos ritos que observou, das procissões desses andarilhos da fé e do medo da perdição.
Guy Veloso faz com que as diferenças entre esses grupos, suas funções e a diversidade de suas concepções da penitência, que não é pequena, se proponham na própria linguagem fotográfica. Sua fotografia se compromete com uma leitura puramente visual da realidade penitencial e com isso arrasta e incorpora quem as vê às peregrinações noturnas dos sofredores. É impossível não intuir o cheiro da poeira e da terra pisadas pela multidão, o clamor de benditos e ladainhas elevando-se das imagens dramáticas e sofridas. Ouço nessas fotos o som seco e funéreo da matraca de Semana Santa, antípoda do sino festivo de Páscoas e Natais, ouço lamentos, súplicas e confissões. Nem um gemido de dor, porém. Apenas sofrimento puro e devocional.
As irmandades de penitentes vêm de distante data. São resquícios do catolicismo repressivo das punitivas fogueiras da Inquisição e da religiosidade quaresmal e popular dos tempos coloniais. Nesse sentido, resquícios também das diferentes impugnações que esse catolicismo popular passou a sofrer desde os tempos iniciais da modernidade. Tanto da parte da Igreja quanto da parte do Estado, como se viu no doloroso e emblemático caso de Canudos. Ali, o Estado combateu o que supunha ser insurgência do antigo regime, no que era apenas religiosidade impregnada de práticas dos penitentes que elegeram aquele lugar como território sagrado da espera do fim dos tempos, o do limiar do milênio. Ali, a Igreja combateu as tendências autonomistas de uma religiosidade brasileira através do movimento antagônico de fortalecimento do poder papal e da centralidade de Roma. Foi a chamada romanização da Igreja católica das décadas finais do século 19.
Há nos penitentes, por isso, uma religiosidade de resistência na fé simples que os anima. Quanto mais reprimida, mais fortalecida como meio de exorcização do mal e do maligno. Os penitentes situam-se no limiar da vida e no pórtico da morte. Imunes, portanto, às dominações dos espaços de poder, seja o poder político, seja a prepotência eclesial. Obedecem desobedecendo.
Em algumas fotos de Veloso, os penitentes vestem sobre a mortalha branca – símbolo de mortalidade e da presença antecipada da morte na vida de cada um – uma casula negra ou púrpura, uma cruz com resplendor bordada sobre o peito e cruzes nos extremos e no dorso. São vestes de quem, ao revestir-se com os símbolos da fé, representa o sagrado, sacraliza-se, dota-se de sacerdócio. O melhor indício desse atributo é a foto dos penitentes cujas cabeças estão cingidas por uma mitra de papelão.
Associo o traje dos penitentes ao traje altamente simbólico e extremo de um penitente louco, no fascinante e belo Manto da apresentação, de Arthur Bispo do Rosário, uma casula sacerdotal. Nela bordou, do lado de dentro e do lado de fora, os nomes de seus amigos para apresentar-se perante Deus no dia do Juízo Final, como um intercessor. Por mais de 50 anos interno de uma instituição psiquiátrica, nele se confirma o abismo que separa a mística dos penitentes e a razão da psiquiatria e da sociedade moderna. É nesse sentido que se pode compreendê-los como sobreviventes da moderna tirania da razão. É nesse sentido que a fotografia de Guy Veloso resgata da escuridão da noite os resíduos de uma fé antiga que a modernidade reconcebeu como loucura, folclore, crendice, ignorância. No entanto, teimosia dos vencidos, insubmissão, esperança mística.
Essas irmandades têm uma diversidade de características e de funções. Em alguns lugares, restritas ao homem, em outros, restritas à mulher. Numas, as funções das alimentadeiras ou dos alimentadores das almas. Noutras, as dos flagelantes, os que praticam a autoflagelação. Noutras mais, as dos pedintes, como a dos penitentes do Salitre, em Juazeiro, na Bahia, que pedem donativos e dinheiro para a refeição ritual do Sábado de Aleluia, véspera do dia da Ressurreição. Vejo aí indícios de uma versão brasileira, rara ou pouco visível, dos comedores de pecados. O que pedem é para comer e o que comem é o elenco dos pecados das almas. Exercitam a caridade tomando para si os pecados alheios. Umas associadas aos ritos de Semana Santa, em particular à Quarta-feira de Trevas e à procissão do fogaréu, da procura e da busca de Nosso Senhor. Outras, associadas aos ritos funerários, em particular aos do Dia de Finados. Todas, de diferentes modos, devotadas ao diálogo dos vivos com a morte, e não propriamente com os mortos, embora em nome deles. A morte como figuração de um ente da finitude, do limite, do tenebroso transe entre o passageiro e o eterno.
São costumes ainda fortes nas regiões também conhecidas como centros de peregrinação, como a região do Cariri e a de Canindé, no Ceará, o que indica que a tradição dos penitentes é parte de um complexo religioso e não costume isolado. Ela se alimenta de outras práticas religiosas e é o que lhe garante continuidade.
Os significados e essa forma de organização comunitária do culto estão mais preservados e mais próximos do que devem ter sido na origem, quanto mais distantes geograficamente dos centros de difusão da modernidade. Quando associada ao que é próprio do Dia de Finados, reúne intercessores e intercessoras que pedem a graça divina em favor das almas dos que, no Purgatório, ainda estão distantes do Reino. Quando associada à Semana Santa e sua liturgia, parece reter na essência o entendimento que da fé resultou a Contrarreforma, a vida como mortificação, como adiamento da graça, como sofrido tributo.
É significativa a coincidência de que a tradição dos penitentes seja forte no Nordeste e que justo ali a Inquisição tenha sido mais ativa que em outras regiões do Brasil. A difusão de uma cultura religiosa repressiva e autopunitiva não se concretizou apenas na ação dos penitentes. Movimentos sociais como o do sertão de Canudos, em que o Conselheiro encontrou seu martírio, tinham vários componentes que ainda existem na devoção dos penitentes, como o cuidado com os cemitérios. A sangrenta e lenta agonia de Canudos indica a extrema valorização do sacrifício, responsável pela anômala resistência ao ataque militar, até praticamente o último homem. A visão religiosa do mundo, de um povo inteiro, mostrou sua vitalidade no banho de sangue do sertão. A República não entendeu a fé sacrificial da gente mestiça que verte o próprio sangue nas chibatadas autopunitivas e com ele alimenta as veias intersticiais da nação. Gente que se esconde e se mostra, no semissegredo de sua concepção de fé, de túnicas e capuzes, na visão agônica de uma Semana Santa que não termina, de uma crucificação que perdura, de um Cristo que não ressuscita.
O ensaio fotográfico de Guy Veloso é o retrato granulado de uma redenção que não se consuma, de um Purgatório que continua ardendo, de um fim dos tempos que não acaba. De um Nosso Senhor que se demora nos confins da eternidade e não retorna para cumprir a promessa da salvação; que teima em sangrar na cruz todos os dias, fazendo deles uma perene Quarta-feira de Trevas, na luz incerta e trêmula das tochas e archotes dos penitentes. Dos que vivem à espera da Semana Santa para externar o que é a cotidiana expectação dos dias em que Deus, em seu Filho, está mais vulnerável porque próximo da morte carnal e da transfiguração eucarística. Dia de exibir a ele as chagas da autoflagelação, de gemer os benditos de invocação, de compartilhar sua Via-crúcis, de oferecer-lhe o corpo chagado para que não se sinta negado, como o foi na agonia do Getsêmani, naquelas horas derradeiras de sua liberdade humana já no caminho da liberdade divina. Momento de transfiguração dos dias santificados em que o Deus que se torna frágil se torna próximo, humano, sofredor, um Deus que sangra sob o açoite de seus algozes e tropeça no caminho da crucificação.
Em muitas de suas fotos, Guy Veloso esmera-se no exame visual dos detalhes de corpos dissimulados pelas túnicas e capuzes da penitência, mutilados pelos vergões da disciplina e suas lâminas cortantes, desfigurados nos contornos mal definidos à luz amarelada de tochas e velas. Na aparente uniformidade proporcionada pelas vestes geralmente brancas, as cruzes demarcam uma anatomia imaginária do corpo do pecador, que nelas se esconde, se anula, se nega numa devoção própria do limiar da morte.
Na cultura da penitência, entre nós, há as penitentes do Recôncavo baiano que organizam o velório de Nossa Senhora da Boa Morte. Há os penitentes que nas horas liminares da noite visitam em procissão os cemitérios e cruzeiros, a visita de cova, para alimentar as almas. Há os autoflagelantes que, no suplício paciente, dilaceram o próprio corpo e dele fazem verter o sangue da expiação. Há os que revestem o peito, as costas, a cintura, os braços e as pernas com os arames pontudos do cilício, para que qualquer movimento do corpo lhes imponha o sofrimento da penetração dolorosa e sangrenta, lhes lembre a fragilidade da carne. Consciência mística do corpo temido por seus ímpetos pecaminosos. Não vertem lágrimas, vertem sangue; não balbuciam queixas, pronunciam silêncios. Não há, no pouco das feições que se pode ver nas fotos de Veloso, um único sinal de dor e sofrimento. É parte do ritual a postura estoica para demonstrar que, se Cristo submeteu-se ao sacrifício da morte cruenta na cruz sem um gemido de dor, a devoção do penitente só terá sentido se for imitação de Cristo, uma resposta longínqua àquele “Deus meu, por que me desamparaste?”. São as penitências dos dias perigosos e tenebrosos da Semana Santa, da ruptura do véu do templo, de alto a baixo, dividindo o tempo dos testamentos e das dispensações, o do brevíssimo tempo do maligno na perdição da noite. Ou daqueles penitentes de Campo do Brito (Sergipe) que cingem a cabeça com a coroa de espinhos sobre o capuz. Dias em que penitentes, solidários com o sofrimento de Cristo, compartilham sua Via-crúcis, impondo-se o mesmo suplício que se abateu sobre o Filho do Homem. Havendo até quem se proponha, como um Simão Cireneu, a carregar-lhe o madeiro, para aliviá-lo do peso de tantíssimos pecados dos seres humanos.
A trajetória dos penitentes é um imenso Calvário, que nas trevas, e não raro no segredo de recintos ocultos, é imaginariamente erguido para redimir os pecadores dos pavorosos pecados de que a cruz é feita. ///
Guy Veloso (1969) nasceu e trabalha em Belém. Formou-se em direito e é fotógrafo desde 1988. Participou da 29a Bienal de São Paulo, em 2010.
José de Souza Martins é fotógrafo e professor titular de sociologia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e seu professor emérito. Publicou Sociologia da fotografia e da imagem (2011) e José de Souza Martins (Coleção Artistas da USP, 2008).
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