… Umas
Publicado em: 5 de junho de 2025
As vanguardas do século 20 desejaram os meios de comunicação. Por parte dos críticos e artistas, a utopia de transformação dos sistemas hegemônicos – fruto do vínculo entre revolução artística e revolução política – implicava a mobilização do homem comum através da esfera pública. Revistas e jornais eram veículos disputados por novos vocabulários em construção, muitas vezes contraditórios.
Associando forma e conteúdo, os casos mais conhecidos no Brasil são do final dos anos 1950, a exemplo da reforma encabeçada por Reynaldo Jardim e Amilcar de Castro no Jornal do Brasil. O arcabouço de matriz concretista, dedicado a construir uma visualidade moderna, levou Castro a eliminar as linhas que dividiam as colunas, a enfatizar uma diagramação vertical e a explorar os espaços em branco das páginas. Não bastava que o Suplemento Dominical do JB publicasse alguns dos mais importantes debates sobre arte brasileira da época; era preciso instigar uma forma nova, uma visualidade que compreendesse o fenômeno artístico a partir dos problemas da linguagem e de seu próprio léxico estético.
Naquele espaço, fora do ambiente acadêmico, o pensamento sobre arte se construía sobretudo em público, exigindo de críticos como Mário Pedrosa e Ferreira Gullar um compromisso não apenas com os termos de um debate permeado de erudição mas também com a formação de repertório dos leitores – uma negociação atenta à construção de uma esfera pública na qual a arte (e o crítico) fosse capaz de exercer sua função social, norteada pelas utopias construtivistas. O êxito em entrelaçar experimentação e dimensão pedagógica rendeu tanto reconhecimento que o SDJB (sigla pela qual o Suplemento era conhecido) acabou dando origem ao Caderno B, então publicado diariamente.
No entanto, a despeito das boas intenções, a arte brasileira não foi capaz de produzir toda a emancipação que desejava; afinal, era oriunda de uma modernidade que não veio acompanhada de uma modernização mais ampla, apesar de ensaiada pela industrialização. A ditadura civil-militar (1964-1985) eclipsou os sonhos construtivos e tornou as desigualdades mais aparentes, revelando o lado sombrio do progresso desenvolvimentista. Alguns jornais foram fechados (como o Correio da Manhã, em 1974), e criaram-se ferramentas para restringir conteúdos por meio do Serviço Nacional de Informações (SNI). Além disso, se a arte moderna atuara, no início do século 20, operando divergências em relação aos valores simbólicos estabelecidos pelo sistema sociocultural, nos anos 1960, manifestou-se um pacto entre arte, consumo e cultura de massa, estressando ainda mais as relações entre capital e trabalho e mostrando que mesmo os gestos disruptivos eram incorporados às estruturas hegemônicas. A arte moderna tornou-se artigo de luxo. Sua integração à vida social não se deu enquanto bem comum, mas como fetiche e bem de consumo.
Nascida nos anos 1950, Lenora de Barros acompanhou tal transição, inserindo-se em uma geração que ensaiou novos procedimentos e negociações perante um mundo em transformação. A convivência com Décio Pignatari e os irmãos Campos, do círculo de amizades do pai, Geraldo de Barros – nome fundamental do movimento concretista –, a manteve perto de uma produção que aproximava a poesia e as artes visuais dos meios de comunicação, através de revistas mais experimentais – e nada comerciais –, como Noigandres e Invenção, ou de meios de amplo consumo, como o SDJB, o Suplemento Literário do Estado de S. Paulo e o Correio Paulistano. Nesse espectro diverso, os poetas trabalhavam na construção de repertório e respaldo teórico para suas experimentações, em contraponto a uma crítica mais preocupada com a formação de um sistema literário no Brasil, sobretudo pela atuação de Antonio Candido.
O legado da poesia concreta viu as publicações autônomas se multiplicarem nos anos 1970. Das mais precárias (parte delas vinculada à “geração mimeógrafo”) às mais sofisticadas, como Código e Navilouca, a lição era simples: se não há meio de recepção, é preciso criá-lo. Tratava-se de uma geração interessada na poesia visual, ou na chamada “poesia expandida”, produção híbrida que não era aceita nem no círculo literário tradicional nem no circuito de exposições. A ambição não era alcançar a ressonância do grande jornal, mas criar ao menos um pequeno público para chamar de seu.
Homenagem a George Segal (1975), primeira obra de Lenora de Barros, foi publicada na revista Poesia em Greve (projeto gráfico de Julio Plaza, nome crucial das artes visuais), e só anos depois ganhou versões em fotografia impressa e vídeo. Na fotoperformance, o rosto da artista nos encara com uma variedade de expressões, até ser coberto por uma máscara de espuma. Em 1981, foi a vez de o hoje consagrado Poema – de 1979 – ser publicado na revista Zero à Esquerda, antes de participar de exposições no mundo todo. Em uma sequência dividida em seis atos (fotografada por Fabiana de Barros), a obra encena um encontro íntimo (e conflituoso) entre corpo e máquina – no caso, a língua da artista e uma máquina de escrever.
Lenora exerceu ainda outras funções que a aproximaram do universo dos periódicos, como editora de arte no jornal Folha de S.Paulo, nos anos 1980, e editora de fotografia na Folha e na revista Placar, nos anos 1990. Desde aquelas primeiras obras, contudo, já se configurava um dos métodos que seria aplicado em suas colunas dos anos 1990: o uso do espaço midiático como uma espécie de ateliê aberto.
Dito pelo não dito
Lançado nos anos 1960 pelo Grupo Estado, o Jornal da Tarde, apesar de mais conservador, trouxe consigo algo da experimentação conquistada pelo Jornal do Brasil nos anos 1950. Nos anos 1970 e 1980, o JT seria reconhecido pelas capas arrojadas que buscavam capturar a atenção do público. A participação mais direta de artistas, porém, ocorreu apenas nos anos 1990, quando Fernão Lara Mesquita, então diretor de redação, convidou também nomes como Rita Lee, Cacá Rosset e Marília Gabriela para conduzir colunas semanais de teor livre.
Intitulada “…Umas”, a coluna de Barros circulou entre 1993 e 1996, integrando o Suplemento Cultural do jornal, com publicação aos sábados, e rendeu mais de 100 edições. Naquele espaço, testemunhamos um raro exemplo de experimentação artística em um periódico de amplo alcance dos anos 1990, quando a imprensa já dedicava menos espaço aos debates críticos. A postura da artista, porém, não reflete a melancolia nostálgica dos sonhos construtivistas. Barros constrói uma obra que concilia a lição da “verbivocovisualidade” concreta com o interesse pelas imagens e os procedimentos conceituais duchampianos, então já filtrados pelo desprendimento do grupo Fluxus e pela desinibição da cultura pop.
Para trafegar por repertórios tão diversos, seu procedimento foi sobretudo o da analogia. Quando lhe perguntei como fazia para manter um ritmo tão assíduo de publicações, ela citou um trecho da Introdução ao método de Leonardo da Vinci (1894), de Paul Valéry: “Porque a analogia é exatamente a faculdade de variar as imagens, de combiná-las, de fazer que a parte de uma coexista com a parte da outra e de perceber, voluntariamente ou não, a ligação de suas estruturas”. Ao justapor imagens coletadas no banco de dados do próprio jornal com reproduções de obras e produções suas, Barros ia criando um jogo de correspondências entre artistas, dados, notícias e seu próprio processo criativo.
Em “Formas capilares” (28/5/1994), por exemplo, um ensaio visual da artista divide a página com reproduções de obras de Tunga, Lorna Simpson e Leda Catunda, junto a um curioso retrato da mulher que tinha o maior cabelo do mundo. Em “Pés pelas mãos” (25/6/1994), a figura do Saci-Pererê e o pé de Pelé convivem com obras de René Magritte, Marcel Duchamp e James Balog, costurados por textos poéticos.
Foi o espaço do jornal, e não o do museu, que permitiu a Barros circular entre diferentes estratos culturais, embaralhando valores do kitsch e do bom gosto, das estéticas do alto e do baixo escalão. Isso conferiu à coluna um tom de diário de ideias desierarquizadas, de ateliê aberto, permitindo ao público acompanhar experimentações que poderiam se desdobrar em outras obras autônomas. Esse espaço nos possibilita acessar o repertório que formou a artista: as referências que compõem seu próprio museu imaginário e as chaves de leitura que ela convoca para sua obra.
Encontramos nas colunas alguns agrupamentos caros à sua produção: a obsessão com o duplo, tão fértil para pensar noções de persona, máscara e teatralidade – vide as colunas “Meio a meio” (11/3/1995) e “Corpos dupla face” (9/9/1995), bem como a exploração da dupla negação e de uma série de ambiguidades linguísticas. Colunas como “Dito pelo não dito” (24/2/1996), “Larga-me!… Deixa-me ver!…” (13/1/1996) e “Sem” (12/8/1995) manifestam seu alinhamento à lição do artista John Cage, para quem o silêncio não constitui apenas um fenômeno acústico, uma pausa ou uma ausência, mas uma experiência povoada pelo seu avesso. Já em “Comer com os olhos” (27/8/1994) ou “Para ver em voz alta” (2/9/1995), diferentes sentidos, como a visão e a audição, são reivindicados em contraste.
Barros pretende explorar os conflitos entre ver e dizer, escrever e dizer, imitar e significar, olhar e ler, encontros e desencontros – à la Magritte. Trata-se de um exercício contínuo de desorganização da língua, para embaralhar velhas oposições, desfazer automatismos significantes e desalinhar categorias discursivas.
Para além das colunas mais curatoriais, Barros se dedicou também a explorar o espaço da página, apresentando ensaios visuais inéditos. São os casos de “A olho nu” (2/3/1996), “Encabelar-se” (30/9/1995) e “Ri chora” (2/10/1993), que tratam da fotoperformance, da sequencialidade cinematográfica – explorando noções de temporalidade, processo e duração – e dos cortes fotográficos – investigando partes do corpo em close-up, plano detalhe e plano americano.
No fluxo do jornal, as colunas representam uma quebra de ritmo que captura a atenção do leitor, exigindo outro engajamento que não o do consumo de informação. Apesar da presença maciça do rosto humano, essas obras não devem ser interpretadas como autorretratos ou autobiografias, pois sua intenção não é conectar as aparências a um desejo de individualidade e subjetivação. Em vez disso, o rosto é compreendido como suporte para uma infinidade de máscaras – um rosto polifônico, na medida em que se abre para a possibilidade de tornar-se Outra, mais do que para a definição do Eu.
Embora o trabalho se cerque de questionamentos filosóficos, sua formalização flerta com o humor autoirônico, de filiação duchampiana. Se a herança do concretismo é inquestionável, também podemos assinalar a importância das manifestações da cultura de massas. Por exemplo, reconhecemos nos rostos recortados referências às icônicas capas dos álbuns With the Beatles (1963) e A Hard Day’s Night (1964), dos Beatles, de que Barros era fã na adolescência.
Não raro, algumas dessas obras provocam o riso, ao dialogar com um imaginário lúdico, e permitem à artista abordar temas inquietantes por uma via desdramatizante, questionando a sisudez de certa tradição crítica.
Num contexto em que a relação entre arte e jornal se tornara tímida em comparação com suas grandes ambições de outrora, as colunas de Barros são o exemplo de que é possível não se intimidar perante o arrefecimento das grandes narrativas, testando modelos alternativos à crítica tradicional. Pouco apegada à moral dos discursos, a artista nos lembra que se trata, antes de tudo, de voltar à linguagem – mesmo que seja para reinventá-la. ///
+
…Umas, de Lenora de Barros (Familia Editions, 2020)
Artigo publicado originalmente na edição impressa da revista ZUM #28 de abril de 2025. Veja também nesta edição: The Anonymous Project & Omar Victor Diop & Taous Dahmani, Rico Dalasam, Ivi Maiga Bugrimenko & Leo Felipe, Lincoln Péricles & Juliano Gomes, Museu Palestino & Nasser Rabah, Momo Okabe, Paula Sampaio & Flavya Mutran, Pedro Costa & Nunes Crespo.
Assine a revista AQUI ou compre seu exemplar na LOJA DO IMS.
Lenora de Barros (São Paulo, SP, 1953) é artista visual e poeta. Formou-se em linguística pela USP. Participou da 59a Bienal de Veneza, em 2022, e da exposição Mulheres radicais, no Museu Hammer, em Los Angeles, no Museu do Brooklyn, em Nova York (2018) e na Pinacoteca do Estado de São Paulo (2019). Sua obra integra o acervo de instituições como o Museu de Arte Contemporânea de Barcelona, Espanha, MAM-SP e MAM-RJ.
Pollyana Quintella (Rio de Janeiro, RJ, 1992) é escritora, pesquisadora e curadora da Pinacoteca de São Paulo. Organizou a exposição Lenora de Barros: minha língua (2022-23), entre outras. É doutoranda pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e mestra em história da arte pela Uerj.