Êxtase
Publicado em: 5 de maio de 2025
Uma massa de corpos se agita em sincronia com a música. Ecos de um tempo primordial, quando a linguagem estava prestes a acontecer. A rave é a forma extática da festa – êxtase é a qualidade própria de todos os corpos que giram em torno de si mesmos até perder o sentido. Festa elevada à mais alta potência, fundada na vertigem e nos escombros do trabalho de criativos e entregadores de aplicativo dançando em cumplicidade e comunhão. A rave ocorre no espaço-tempo do Capital. Diferente do sonho da Revolução, não foi o proletariado que tomou a fábrica. Na busca do prazer, o chão de fábrica foi transformado em pista de dança pelo precariado hedonista. As coreografias executadas na pista são uma mímica da gestualidade do trabalho industrial que evaporou com a passagem à era da informação. A mecânica da dança traduz transformações no campo econômico e produtivo, ao passo que a música gerada através de máquinas reflete o fluxo informacional. Bits processados em ondas sonoras colidindo com as paredes do galpão, zeros e uns e a multidão; beats convertidos em energia bruta, com o cosmo se expandindo fora e dentro. Luzes se acendem e se apagam, a pupila dilata, a câmera fotográfica quase escapa da mão no suor coletivo. Banheiros servem de portais para outros universos. O uso de drogas dissociativas é recreação para quem vive num mundo que erige muros enquanto desmorona. A arquitetura do torpor é edificada sob a iminência do colapso. A rave é a forma estática da festa. Cabeças dopadas assentem juntas na dança estanque, joelhos se dobram em submissão à liberdade. A pegada de carbono de todas as fontes de emissão, equipamentos de luz e som, transporte, consumo de eletricidade, bebida, comida, narcóticos, imprime sua marca no piso rachado. Um dos resíduos do acontecimento é uma imagem que não é registro, é imagem que age. A primeira vez que vi uma foto da Ivi no Instagram, há quase dez anos, nem morava em São Paulo e pensei: algo importante está acontecendo. A ânsia de capturar o instante excita a criação desse documento-monumento do perene e do efêmero, do coletivo e do subjetivo, das coisas que serão lembradas e das coisas que serão esquecidas. A gramática do narcisismo regula nossos gestos. E seguimos pornificando tudo através das mídias controladas pelos fascistas. Como se não tivesse importância. O trabalho de pista se dá à sombra da morte dentro do galpão inundado de K, C, MDMA, PrEP, estrogênio, testosterona, etanol (o melhor uso é o poliuso), perseguindo a menor fração de toda a intensidade do agora na fluidez e imanência absolutas. Dança é realidade, o resto é imaginação. Ainda que dançar também signifique se dar mal, perder, fracassar, ser enganado ou preso. Quem sabe até vir a morrer. A política sexual da polícia determina como devem se comportar os corpos, deixa marcada neles a obediência. O movimento de determinados corpos desacata. Até que a fadiga vomite a celebração, porque tudo isso na verdade não passa de um prelúdio. Depois é o que conta. Simulacro de ritual, protocolo de regeneração do real no espaço do precário, boleto vencido da dívida impagável, corporificação do prazer monetizado, do excesso esmiuçado em planilhas do Excel. A rave é a forma estatística da festa. A euforia como um segmento da moda, do marketing e da matemática. Extrair do corpo não apenas o suor, mas também a informação e o lucro. Coletar, organizar, analisar, interpretar e apresentar um volume espetacular de dados. Imergir em conjunto para dentro de nossa interioridade complicada, já que é impossível despsicologizar. Vasculhando os bolsos talvez eu encontre mais uma droguinha. Vejo um par de tênis da marca Resistência pisotear o asfalto duro, aderente. Lentes escuras escondem as olheiras e a maquiagem borrada. O dia amanhece, deixando tudo às claras. Transmutada em conteúdo digital, a luz que fixou fragmentos da experiência circulará nas redes mais tarde, fechando o circuito. Até que os níveis de serotonina sejam restabelecidos e tudo comece de novo. A rave é a metamorfose do risco. ///
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Vidacobra, de Ivi Maiga Bugrimenko (Quadradocirculo, 2024
Fotos nas festas Mamba Negra, Caldo, Obra, Bicuda, Darq, Zonas Liminares, Odd, Sangra Muta, Taipei Ok, Tijolo, em São Paulo, entre 2016 e 2024. Legendas completas aqui.
Artigo publicado originalmente na edição impressa da revista ZUM #28 de abril de 2025. Veja também nesta edição: The Anonymous Project & Omar Victor Diop & Taous Dahmani, Rico Dalasam, Lenora de Barros & Pollyanna Quintella, Lincoln Péricles & Juliano Gomes, Museu Palestino & Nasser Rabah, Momo Okabe, Paula Sampaio & Flavya Mutran, Pedro Costa & Nunes Crespo.
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Ivi Maiga Bugrimenko (São Paulo, SP, 1983) é fotógrafa, formada em moda pela Universidade Anhembi Morumbi. Desde 2017, registra festas da cena punk e experimental da noite paulistana, como a Mamba Negra. Autora de Vidacobra (Quadradocírculo, 2024), premiado na Convocatória de Fotolivros do Festival ZUM.
Leo Felipe (Porto Alegre, RS, 1973) é escritor. Já trabalhou como DJ, produtor de festas e curador. Entre seus livros, destacam-se A sex shop de drugs & food (Quadradocírculo, 2023), A história universal do after (NUNC, 2019) e A fantástica fábrica (Pubblicato, 2014).