Revista ZUM 25

O papangu comeu

Nicolas Gondim & Natércia Pontes Publicado em: 10 de janeiro de 2024


Minha salvação, escrever, para tentar entender o monstro. O dente da minha filha, um dentinho de leite, leitoso, diminuto. O sorriso da minha filha, que ainda guarda os dentes de leite na boca sagrada, meu tesouro, minhas joias, que estão moles, vão se perder por aí, para onde ela vai?, será que já esteve?, penso mal, estou abalada, profundamente abalada, o angu alterou meu espírito, que agora, tão mórbido, só sente o medo do monstro em tudo. O monstro com os caninos cerrados sob o casco de tartaruga, um saco preto de manto. O cheiro do monstro em tudo, preciso me despedir a todo momento, preciso me segurar em braços de vento, sonhei que estava no Agreste, me preparando para mergulhar num poço profundo e gelado, me preparei tanto, roupa, óculos, biquíni, que anoiteceu, acabei não mergulhando em nada. Fracasso, perda, uma mãe que só dorme e perde o crescimento das filhas, perde os dentes das filhas, não tem mais volta, se olhar para trás vira papangu com cabeça de caixa de papelão. Eu quero ser papangu em carne viva, congelar o tempo num quarto escuro, minhas filhas ao meu redor, estamos juntas, e elas dependem de mim, elas me amam completamente, o corpo delas também é o meu, e o meu é o delas, um jeito de ser bebê e de ser Deus, o Diabo, o único. Por que esse dente, meu Deus, foi ficar mole?, a futura banguela que me assusta como um papangu no ermo, minha filha não é mais, mas sempre minha filha. Fica, filha, congela esse sorriso numa foto digital, esses dentes são meus ou são teus?, são teus, meu amor. Eu preciso quebrar essas correntes enferrujadas, onde me encolho à noite para dormir feito um cão. Estou presa a essas correntes, eu sou essas correntes, me enfeito com essas correntes que fazem barulho quando fecho a janela. Minha filha sorrindo com um dente faltando é luz, a luz entra pelo pequeno buraco. Minha filha grande no mundo, o mundo dela, querendo ser dela, e eu sou menor que o mundo. Eu não posso ficar nesse quarto escuro, as paredes estão com infiltração. O que vai me tirar daqui? O mofo? A palavra? A faca? Tudo vai me tirar, impossível ficar, mesmo se quisesse. Tenho que criar um artifício, tenho que engendrar um objeto que me explique a morte, que me console das coisas da morte. Um saco de estômago sedento. Conheci de uma vez o amor profundamente, e em pouco tempo o modo como ele se apresentou foi desmembrado em pequenos dentes de leite que despencam do sorriso puro da minha filha, carne da minha carne, olhos brilhantes de vida e amor. A música diz que tudo é mentira, não é, não tem como ser. Os dentinhos dela sumindo, um a um, o sol se levantando no Agreste outra vez. O sol não é mentira. O papangu dança e pede, e caminha pela terra batida tarde da noite. O nome da minha filha não é mentira, ela escrevendo o próprio nome com sua letra hesitante e tão certa de si. Eu preciso de luz, de luz, de claridade, luz. Tira da minha cabeça esse botijão de água, ele é fosco, vejo tudo com névoa azul. Minhas filhas não precisam desta mãe úmida, velha, apegada a um pedaço de osso, coberta por um saco preto, um rasgo de gato no lugar dos olhos, as botas puídas. Elas precisam entender que a vida é maior do que eu entendo. Tenho sido menor que um dente. Uma mãe menor que um dente, tenho direito a estar minúscula, digo a mim mesma, mas não posso ser minúscula, por elas, do mesmo modo que precisei tomar mingau dia após dia para dar leite a elas, minha imunidade a elas, e agora eu as sobrecarrego, cerco minhas pequenas filhas com meus dejetos de cão preso. Não posso, preciso sair daqui, acender a luz deste quarto, abrir a janela, deixar a luz entrar, deixar o vento passar pelo sorriso da minha filha. Não posso ser tão egoísta e transtornada, a vida segue, cada dia uma folha cai, um dente cai, outros nascem, outros se perdem, e dentro da gente há tantos dentes, eu mesma tenho um dente artificial, feito de aço, como os dentes vorazes do papangu. Preciso aceitar que o dente da minha filha quer cair, preciso deixar que ele caia e não apodreça em sua boca, seu sorriso é meu tesouro, as pedrinhas rutilam em feixes diferentes, não posso me agarrar aos átomos frouxos de uma imagem digital. Tenho que ser maior que isso, por elas, por mim é pouco, por elas, não posso ser pouco se decidi ter filhos, preciso deixar seus dentes caírem, deixar o vento passar, deixar a luz desbotar as cores deste arco-íris que precisa se liquefazer, deixar o papangu entrar e oferecer a ele um prato esmaltado de mingau. O arco-íris precisa e vai se liquefazer, eu, presa a essa imagem, costurando linhas desengonçadas para prendê-lo à força no fundo de céu que anoitece, agora é noite, os papangus estão à solta, dando cambalhotas no ar, e estou tão noite no Agreste, mas o dia vem, o sol. Ser o sol para elas, fui e sou muito lua. Lua velha. Dentes velhos. Bruxa e burra. Espanto o inseto da mesa, o inseto até há pouco tempo imprevisível, o dente mole imprevisível, abraçar o que não sei. Só preciso ir. Ficar aqui neste quarto não é possível, preciso dizer isso a mim. O papangu tá batendo na porta. Suas mãos são luvas de látex amarelo. Se eu não abrir, ele invade pela janela. Emoldurar um tempo que passou e não viver dentro de uma moldura barata, achando que ela vai me proteger da morte das coisas, filha, você é o oposto da morte, seu dente caindo, por mais que eu relute em aceitar, seu dente caindo, filha, é o oposto da morte, minha filha. E é lá que eu quero estar. O papangu tem fome. A morte vem também enfeitada de amor, ela vem também com cheiro de recém-nascido. Preciso celebrar esse dente caído, preciso entender por que celebrá-lo, celebrá-lo com todas as minhas células, numa crença que exploda em mil significados, não vou te perder, minha filha. O papangu não vai te comer. Preciso entender que não vou te perder, que você não é um dente, um dentinho. Eu o guardarei comigo, e teus futuros dentes também, todos guardados comigo, meu amor. Depois farei um museu para expor a história dos teus sorrisos e visitarei esse museu sempre, lá fora, na praça da matriz a luz explode, minha filha, a linguagem te invadindo feito o mar, você adora se deitar na beira da praia e esperar a água morna do mar te visitar, preciso deixar o tempo te visitar, meu amor. Meu amor. Perdi tanto tempo com besteiras, longe de você. O papangu espera. Veio outro, eles agora são muitos. Eu queria testemunhar toda a trajetória dos teus dentes, mas é humanamente impossível, meu amor, eu fiz o que pude, como pude, com um bocado de preguiça, inclusive. Essa é a mãe papangu que você tem, que agora sofre terrivelmente pelo teu dente de leite que quer cair. Sua mãe, mais fraca que um dentinho. Desculpa, minha filha. O que você me diz o tempo todo, o que preciso me dizer é que não te perdi, só ganho mais camadas tuas, mais sorrisos teus a cada dia, a cada sol. Maior que o sol esse amor. É nele, nesse canto de luz que preciso estar. Que dor, vai e volta como o mar. Tenho que aceitá-la ir e vir. Seu dente talvez já tenha caído, filha. E eu não tenho controle sobre isso. Mas agora posso escrever, esses anos todos, cinco anos em que eu senti o movimento involuntário das carnes, em que senti muito além das minhas limitações intelectuais, minha filha, em que eu sentia a falta da palavra, a fome, estou de volta, estou aqui, eu comigo, você consigo, é assim que as cores se formam, não posso tentar trapacear, embora sofra, discorde das regras, quero seu dente de leite comigo, quero ele no seu sorriso, na sua boca, para sempre, vontade profunda de chorar. O mingau me deixa chorar pouco, mas chorei e ainda preciso chorar. Tirar essa batedeira de bolo engasgada na garganta. O bolo que te prometi. O verão está acabando, minha filha. Precipitações diárias, mormaço, mofo. A chuva vem rápido e não chora o suficiente, queria poder sangrar essa dor, oferecer é um trabalho de fé, preciso ter fé que teu dentinho despencando do teu céu-sorriso não é o fim do meu mundo, um mundo que emolduro com os braços úmidos, as carnes em transe, as carnes sempre estão em transe e agora regurgitam teu dente, minha joia preciosa. O papangu exige um prato morno. Estou pobre e envergonhada. Uma mãe devoradora, egoísta, tentando manter a qualquer custo o cheiro do recém-nascido, você está em outra, quer adivinhar as palavras que se formam na tua cabeça vivaz, meu amor. Quer saber o quê das coisas, e eu nessa de paninho. De te cobrir e te ninar, você não cabe mais no meu colo físico, carne pequena. Sou carne pequena, minha filha, desculpa. Preciso chover, ser grande, por você. É tudo por você, antes de você, durante você, não existe depois de você. Só durante, durante, durante, fantasia de papangu se liquefazendo. É fim de verão, e você precisa também cortar o cabelo, comprar calcinhas novas, acertar as palmilhas. Eu fico nessa de achar que é maldição, mas é vida, é você fragilzinha olhando pela janela do seu quarto. Alguém me impediu de te olhar demoradamente, tenho raiva, tenho vontade de bater, perdi teu olhinho descortinando o mundo, uma árvore que foi derrubada há meses. Agora perco teus dentes e vou perdendo coisas, como o papangu que você desenhou, né?, filha. Quem sabe eu tenho a sorte de te reencontrar bebê. Vamos perdendo, perdendo juntas. Nunca mais estarei só. Acabei de perder uma ideia, um pensamento que voou pela varanda afora. Adeus, adeus, dente, pequeno dente, existe algo muito maior do que você, preciso jogar esse dentinho fora, dar de comer ao papangu, que ele leve comigo todos os meus dentes, eu enfiada na minha decrepitude, arfando por um pedaço de osso. Que mãe boba eu sou. Tentando colar um dente que caiu. Ensina a tua mãe a viver, filha. Não quero te ensinar a morrer. Vamos abrir a porta aos papangus, filha. Me ilumina, me salva, me perdoa, me encanta, me sorri com teus dentes novos, todos os dias. Teus dentes, teu íntimo, teu corpo, só teu. ///

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Fotografias feitas entre 2007 e 2022

Papangus são brincantes que saem às ruas fantasiados, para não serem identificados. A tradição nordestina surgiu como uma brincadeira de ex-escravizados, sitiantes e trabalhadores das fazendas, que, durante a Páscoa, iam de casa em casa pedindo angu de milho – daí o nome “papangu”. As fantasias são confeccionadas por eles próprios, usando peças acessíveis: roupas velhas, plantas, objetos e adornos caseiros ou catados no lixo. Em sua performance, os bandos de mascarados caminham e falam de forma estranha, incorporando personalidades, estalando chicotes e pedindo às pessoas agrados, comida e bebida para os festejos da noite. – Nicolas Gondim

Natércia Pontes (Fortaleza, CE, 1980) é escritora, autora dos livros Copacabana dreams (Cosac Naify, 2012), finalista do Prêmio Jabuti, e Os tais caquinhos (Companhia das Letras, 2021), entre outros.

Nicolas Gondim (Fortaleza, CE, 1972) é fotógrafo, formado em moda pela Universidade Federal do Ceará e pós-graduado em imagem de moda e styling pelo Senac-SP.

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