Revista ZUM 23

Memórias de resistência

Arquivo da Memória Trans Argentina & Amara Moira Publicado em: 29 de janeiro de 2025

Acervo Carla Pericles

Acervo Ornela “Teté” Vega

Acervo Flavia Elizabeth Flores

Nossos corpos falam de nossa história. Desde que iniciei minha transição, meu percurso foi viver resistindo, sentindo, por parte da sociedade, total discriminação por minha orientação sexual.

Aos 18 anos, logo após ter conseguido meu primeiro trabalho em uma fábrica, fui demitida por causa de minha transição. Senti e sofri discriminação. Mesmo assim, consegui aguentar.

Aos 19 anos, não tive outra opção senão a do trabalho sexual, por não encontrar outras possibilidades, fossem elas sociais, profissionais ou de educação.

Escapei da perseguição policial, dos perigos à espreita na noite; isso sem falar da transformação do meu corpo, realizada entre companheiras, aplicando silicone industrial umas nas outras.

Nossa vida inteira era clandestina; não tínhamos direitos civis, sociais e, às vezes, menos ainda acesso à saúde, por medo de sermos presas. Vivíamos assim.

Carola Figueredo


Acervo Flavia Elizabeth Flores

Ainda nessa época (anos 1980), nós nos juntávamos pra dividir a comida. Certa vez, fizeram uma busca em todas as casas da nossa comunidade. De madrugada, não sei quantos milicos, um fiscal, um juiz (eu me lembro que ele vestia um terno branco).

Levaram todas nós. Quebraram coisas de casa, TV, guarda-roupa, cama, colchão… tudo. Pegaram primeiro uma e lhe deram tantas cacetadas que, aos berros, ela os levou até a casa da Negra Mocha; e a Negra fez o mesmo, deu com a língua nos dentes para que não lhe batessem mais. E assim sucessivamente, com todas.

Eles nos levaram em um busão com todo mundo que vivia na casa: marido, irmãos, amigas, família.

Chegamos à delegacia de Madero, e lá estavam as câmeras de um canal de televisão, nos filmavam enquanto descíamos da van, como se fôssemos verdadeiras delinquentes. Como éramos muitas, nos puseram em um escritório grande (umas 30 trans); nessa mesma noite, soltaram todos os que nos acompanhavam, só ficamos as trans. Todas roxas das pauladas. Contando umas às outras como havia sido em cada casa e o que tinham quebrado.

Ficamos só uma noite na delegacia. Achamos que eles só queriam mostrar serviço, porque naquela semana tinha havido a visita do papa Paulo VI, e nós fomos cumprimentá-lo na via expressa, descaradamente… e ele nos viu. Essa foi a nossa conclusão.

Luisa Lucía Paz

Acervo Vanessa Sander

Sempre me lembro de quando estivemos no Pozo de Banfield. Nós não sabíamos que se chamava Pozo de Banfield. Diziam que estávamos indo para o Departamento Metropolitano. Depois, quando tudo foi posto às claras, era o famoso Pozo de Banfield. Eu disse: “Ora, mas eu estive lá!”. A cela era grande e tinha um banheiro grande num canto. No primeiro dia (os militares tinham nos levado a San Martín, e dali para Banfield), disseram: “Meninos, comportem-se, que nós vamos tratá-los bem e não vai lhes faltar nada”. E depois nos trouxeram dois colchões azuis, embalados. Nós já estávamos na cela, no segundo andar; quando os desembalamos, havia coágulos de sangue neles, tudo manchado de sangue. Uma de nós se irritou e fez com que os levassem embora e trouxessem outros, limpos.

Bem, e aí nos faziam lavar as viaturas. No meio estavam fazendo uma obra, e na lateral havia um portão grande por onde entravam os Falcons, e nós tínhamos que lavá-los. Sempre me lembro de um Falcon amarelo que coube a mim e a El Negro lavar. Eles nos faziam lavar tudinho, e aquele carro estava cheio de sangue, o Falcon amarelo.

Depois, quando subíamos, nos perguntavam: “Onde estamos, onde estamos?”. Era um corredor largo, com as celas de um lado, e havia grades. Olhávamos para todos os lados e dizíamos: “No Departamento Metropolitano de Banfield”. Dava para ouvir um rádio tocando alto, durante a noite. E deu para ouvir uma garota gritando, e depois um bebê chorando. Isso em meio ao tumulto do rádio e tudo mais.

Algum dia vou voltar lá. Porque em uma das paredes pode-se ler “Julieta”. Sempre escrevíamos nossos nomes. Coisas da idade; éramos todas jovens.

Naquele momento, nossos algozes eram os policiais. Nós ficávamos na delegacia, à mercê daquele bando de delinquentes. Os militares eram a autoridade, mas, se nos encontravam, nos tiravam da rua e nos levavam à delegacia; os policiais sempre foram nossos algozes. Antes dos militares, a polícia já era corrupta, e, depois deles, ainda mais. Eles se davam a autoridade para tirar a nossa roupa.

À noite, aparecia por lá um comandante da província; chegava de repente na delegacia, e quem ele mandava chamar? As bichonas, entendeu? Para rir delas. Eles nos acordavam cedo. Eu cuidava da cozinha, e as outras, de quebrar tijolos. E, assim como nos levavam, nos soltavam. Uma ali conseguia um espelho ou uma pinça em troca de uns favores… sabe? E logo chegava o aviso de que… bem… de que estupravam você também. Porque era preciso fazer sexo, às vezes, com os policiais. Para quê? Para que lhe dessem um pouco de água quente, um pouco de pão. Eu, graças a Deus, sempre contei com minha família, que ia me visitar e me levava de tudo; mas havia garotas que não tinham quem fizesse isso por elas. Naquele tempo, a família botava você para correr, deixava você de lado. Eram poucas as famílias e as mães que nos aceitavam. Não era por maldade. Fomos criadas por outras gerações, que queriam nos educar de outra maneira. Não aceitavam aquilo. “O que vão dizer, o povo todo…?” Nos botavam para fora de casa.

E às vezes a gente fica se lembrando disso tudo e diz: “Por quê?”. Hoje eu me pergunto: “Por que tive que passar por isso? O que fiz de mal?” Naquele momento era uma coisa “normal”, entre aspas, pensar que estávamos fazendo algo de ruim e que merecíamos um castigo. Mas, hoje, ao ver todos esses abusos, sabe?, a gente se pergunta: “Por quê?”. Eu poderia ter estudado, poderia não ter precisado me virar na rua; poderia ter feito mil coisas.

La Trachi


Acervo Julieta González

Acervo Silvia Grey

Natal de 1984. Estávamos sentadas na pouca sombra formada pelas telhas de papelão da minha casinha, com Marisa “La Renga” pensando em como poderíamos fazer para passar o Natal juntas, sem que isso fosse um problema. Éramos vizinhas e dividíamos quase tudo.

Eu me lembro que, nessa época, havia um senhor fotógrafo que sempre fazia fotos nossas e as vendia para nós. Mas aquelas que ele não conseguia vender porque não tínhamos gostado, essas ele nos dava de presente. É o caso desta foto.

Em meio a tantos natais ruins, esse ficou muito presente em mim. Foi muito especial, porque três dias antes consegui juntar, com muitíssimo sacrifício, algum dinheiro para comprar a minha casinha, que era meu sonho, sem levar em conta que estávamos às vésperas das festas. Sim, claro que as festas importavam… mas essa conquista importava muito mais. Minha casa tão desejada…

Era um terreninho pequeno, delimitado por estacas, e no meio tinha um pequeno cômodo de folhas de papelão onde cabiam uma caminha e meu armário feito de caixotes de maçã. Do lado de fora, um aparador velho (onde estou apoiada) faria as vezes de mesa natalina.

Conseguir comprar minha casinha foi o sonho de toda a minha vida, pelo qual eu sofri muito.

Juntas, esgotadas por termos corrido da polícia de Villa Madero a noite inteira sem conseguir dinheiro para comer (justamente aquela noite), e ao ver que nenhuma de nós havia trabalhado, refletíamos sobre onde ou com quem passaríamos aquele Natal, o de 1984. Sozinhas, sem dinheiro, sem família, sem afetos. Chegamos à conclusão de que, mais uma vez, seria um Natal sem celebração. Como nos anos anteriores: sozinhas, pobres.

As horas passaram. Lá pelas 9 da noite, eu estava convencida de que acabaria passando a primeira véspera de Natal na minha casinha.

Fui até o armário e encontrei um tomate um pouco passado e meia cebola. Disse: “Pronto, faço uma salada de tomate e cebola. Sendo só para mim, está ótimo!” Já eram 11 horas da noite quando comecei a fazer o jantar, e aí percebi que não tinha azeite. Tive de recorrer a uma família paraguaia vizinha para pedir um fiozinho de azeite.

Ao entrar em casa com a minha salada, vi que vinham ao longe por um corredor uns seis ou sete policiais, e que, além disso, levavam uma colega. Era loira, foi só o que pude ver. Nessa hora pensei na Marisa.

Apressada, entrei em casa com meu prato de salada. Fechei a porta por dentro com arame, temerosa de que os policiais voltassem e entrassem. E esperei. Esperei mais ou menos até a meia-noite (não sei por quê!).

Enquanto estava sentada na minha cama, com o prato de salada de tomate e cebola, encontrei um pão duro quase mofado (já estava acostumada a comer pão mofado nas delegacias, quando ninguém podia nos levar nada). Comecei a comer, terminei minha janta e me deitei. Não conseguia dormir, pensando; e foi assim que passei essa festa: chorando sozinha, trancada em minha casinha, sabendo que do lado de fora os milicos rondavam atrás de minhas colegas.

Esse foi o pior Natal da minha vida. Confesso que me custa muito contar o que aconteceu, porque é impossível não chorar e poder expressar sem dor o que eu vivi. Lembrar de mim, trancada em casa, sozinha, sem nada, e com minhas outras colegas presas na delegacia, sabe-se lá como.

Muitas não sabem que houve uma época muito difícil. Era cruel. Humilhante. A forma como vivíamos, perseguidas 24 horas por dia, 365 dias ao ano. Era preciso sobreviver a esses natais violentos e repressivos.

Luisa Lucía Paz


Acervo Luisa Lucía Paz
Acervo Del Hotel Gondolin

Vou contar uma história triste: ela morreu atropelada, correndo da polícia para não ser presa, na Pan-Americana, onde trabalhávamos juntas naquela época, em Don Torcuato, em 1988 ou 1989. Porque ela sabia que ia passar semanas lá dentro.

Ao atravessar a rodovia correndo, um carro a matou, da mesma maneira que mataram tantas amigas e colegas dessa época. Foi lá por fevereiro, acho, porque nós, a Marcela “La Rompe” e Liliana íamos para o desfile [de Carnaval] naquele fim de semana. Então saímos no sábado, no domingo fomos ao velório e à noite fomos desfilar de novo, para dançar, como se a vida continuasse. Porque sabíamos que a próxima poderia ser uma de nós. Descanse em paz, Carol.

Dezenas de garotas perderam a vida dessa maneira, correndo da polícia na Pan-Americana; nunca se fez justiça.

Dalma Ramallo


Acervo Claudia Pía Baudracco

Acervo de la Mari Popi

Era a década de 1980, e a nossa presença nos desfiles de Carnaval garantia um brilho e um glamour singulares. Eu me lembro que não tínhamos que pensar com muita antecedência no que usaríamos no fim de semana seguinte para desfilar e resplandecer diante de toda aquela massa humana que, como se fosse uma grade de contenção, se posicionava nos dois lados da rua para nos aplaudir e nos ovacionar enquanto desfilávamos. Eu podia ver em seus rostos assombrados e boquiabertos sua aceitação, enquanto nos movíamos no compasso dos tambores, das pandeiretas, das maracas e dos trompetes. Isso só acontecia no Carnaval, porque durante o ano todo a polícia e a sociedade tornavam as coisas difíceis para nós; qualquer um se sentia no direito de nos apontar o dedo e de nos privar da liberdade por causa da nossa orientação sexual.

Eu me lembro que em 1987, dois dias antes de começarem os desfiles de Carnaval, comentei com minha amiga Gina Vivanco (vítima de travesticídio em 1991) que, no ano anterior, tinha visto no fabuloso Carnaval carioca uma roupa de mulher-aranha totalmente feita de tirinhas largas de elástico e argolas de metal. Como ela sabia da minha habilidade com costura, me disse: “Vamos fazer isso, bicha!”, então compramos todo o material, e mãos à obra. Passei a noite costurando à mão e fui montando a fantasia no corpo de Gina; fiquei com as pontas dos dedos todas picadas de tanto costurar para a estreia de sábado de Carnaval.

Gina foi mesmo a rainha em cada um dos distritos em que desfilou. Andava praticamente nua. Sua pele toda estava à mostra, e a única coisa que cobria a trama de seu traje de mulher-aranha era uma tanguinha preta e vermelha “ali”, e bastante purpurina fúcsia cobrindo os peitos.

Nós realmente vivíamos o Carnaval mais que ninguém, porque eram seis noites de liberdade total, nas quais nos sentíamos aceitas, desejadas, amadas, adoradas e respeitadas. Naquelas noites entregávamos a alma. A cada dia, fazíamos três ou quatro trajetos em partes distintas da Zona Sul. Podiam nos ver sambando pela avenida Mitre, em Avellaneda, no centro de Quilmes e no de Florencio Varela. Em todos os lugares, o público era igualmente amoroso.

Nunca vamos esquecer daqueles ares de liberdade, que só no Carnaval nos permitiam respirar. Hoje em dia, a tradição continua: seguimos nos apresentando, únicas, sensuais, belas e superproduzidas, querendo sempre agradar. A diferença é que, hoje, já somos donas da nossa identidade; hoje, olhando de longe e tendo sobrevivido a tantas injustiças, submetidas a tanto desprezo, a tantas perseguições, detenções e exílios, eu digo: “Obrigada, Carnaval, por nos dar de presente um respiro com ar de liberdade, em nome de um tal de Rei Momo! Que o desfile continue!”

Carmen Ibarra


Quando cheguei a Paris, me senti tão sozinha, mas, ao mesmo tempo, tão livre!

Fiquei em um hotel no número 18 da rua Pierre Leroux, onde Launa morava; isso depois de passar por uma grande odisseia no aeroporto de Orly, nos tempos em que as Aerolíneas Argentinas pousavam ali.

O problema é que eu tive que cortar o cabelo e vestir trajes folgados, porque, se percebessem que você era trans, não te deixavam entrar. Sofríamos essa discriminação mesmo nos países mais desenvolvidos.

O rapaz que havia cortado meu cabelo, Eli, era um amigo de Judit, de nacionalidade brasileira, que tinha sido expulso da França. Com o cabelo curto, eu parecia um árabe, hahahahahaha. Foi por isso que me pararam; achavam que eu estava entrando com passaporte falso, mas se deram conta de que eu era argentina.

Saí do aeroporto mais ou menos às 5 horas da tarde, e tinha desembarcado às 11 da manhã. Enfim, já estava em Paris, e já era noite. “Onde foi que eu me enfiei?”, perguntei a mim mesma, “mas, já que estou aqui, então vamos fazer das tripas coração.”

Peguei um táxi, passei o endereço e cheguei com uma fome de anteontem. Deixei minhas coisas no quarto, saí e encontrei um supermercado. Entrei e vi uns queijos; tinha um de casca vermelha. Comprei presunto, pão e iogurte, mas tinha de tudo ali. Enjoei, e no fim acabei comprando um flã, porque não sabia ler em francês, e tinha um monte deles. Passei pelo caixa e dei uma nota de 100 francos à operadora. Ela me deu o troco e voltei para o hotel. “Amanhã será outro dia.”

Lá pelas 10 horas da noite, escutei no corredor gente falando em espanhol; me fiz de desentendida e saí. Encontrei La Raula, um rapaz transformista muito simpático, e ele me disse que no terceiro andar morava Karina Pintarelli. Eu a havia conhecido no hotel da rua Matheu. Por fim ela chegou, nos cumprimentamos e tomamos uma sopa juntas. Elas tinham fogareiro, algumas panelas para esquentar sopa e café, e uma chaleira para tomar um mate. Bom, o mate era um privilégio, porque não tinha erva na França.

No dia seguinte, comecei a ir ao bosque. Um frio danado! Há quem vá achar graça, mas eu vesti dois casacos: um de lã e outro de pele de coelho. Bem, a fofoca começou a se espalhar; as argentinas ficaram sabendo que tinha chegado mais uma e vinham me cumprimentar por curiosidade. Outras, porque já as conhecia de Buenos Aires.

Essa noite não foi ruim para mim, eu era nova e ganhei uma boa quantia. Quase um ano do meu salário na farmácia. Não vou negar, eu adorei, porque podia viver bem, no sentido de que tinha liberdade.

Saí com as meninas, e elas me levaram para conhecer a praça de Clichy, onde havia um enxame de trans. E conheci La Pavón, que me deu seu cartão de visita. Ela fazia vestidos etc.

Os namorados caíam do céu, hahahahaha, era outra vida. Conheci um rapaz da minha idade, muito simpático, com quem tive uma relação durante algum tempo. Ele me fez conhecer muitas coisas, me ensinou a me comportar na sociedade francesa. Eu não sabia falar francês e acho que até agora não falo bem, hihihihihi. Ele me fez estudar francês, e pouco a pouco fui me adaptando. Ele sempre me dizia: “Não vou julgar você, mas veja se não vai morrer fazendo isso. Você tem que buscar algo que lhe permita se aposentar mais tarde.” A verdade é que ele tinha razão, mas eu era tão esquisita que só pensei nisso mais tarde.

Vieram tempos difíceis com a epidemia de aids; muitas companheiras de várias nacionalidades começaram a morrer. Nós, estrangeiras, não tínhamos nenhum apoio, então começamos a nos organizar entre nós. Cristell morreu sozinha. Tinha um garoto que vivia com ela, mas, na hora em que ela morreu, o imbecil desapareceu; acho que foi isso que deu o clique na minha vida.

Fomos ao enterro com Jessica, Patricia, Raúl, Karina e outras garotas.

Quando chegamos ao necrotério, já haviam fechado o caixão. Isso me deixou muito indignada, e exigimos velá-la de acordo com nossos costumes.

Foi aí que percebi que não bastava ter dinheiro; todas nós ali presentes tínhamos isso, mas não tínhamos uma integração social. E comecei a lutar por nossos direitos de integração.

Kouka García


Acervo Claudia Pía Baudracco

Era novembro de 2001, logo depois da Marcha do Orgulho LGBT, quando decidi partir. Saí fugida da Argentina e me exilei em Nova York.

Não tinha muitas opções para escapar da repressão e da perseguição que vivíamos.

Esta foto é da primeira vez que vi a neve. Saí sozinha pelas ruas para aproveitar e pedi a um desconhecido que a fizesse. Depois, enviei pelo correio a Claudia Pía quando ela estava presa.

María Belén Correa


Acervo Rosario La Uruguaya
Acervo Claudia Pía Baudracco


RECONTANDO HISTÓRIAS

Por Amara Moira

Acervo Gina Vivanco

Acervo Claudia Pía Baudracco

Quando se pensa na história das existências trans latino-americanas, o Arquivo da Memória Trans Argentina (AMTA) surge como marco incontornável. Esforço coletivo de reunião de documentos variados (fotos, depoimentos, diários, recortes de jornais e revistas, objetos pessoais etc.), esse arquivo pioneiro nos mostra como, ao longo do século 20, na Argentina, pessoas trans resistiram à transfobia, construindo seu direito de existir da maneira como se entendem.

O projeto foi idealizado por Claudia Pía Baudracco e María Belén Correa em 2012, ano-chave para a história trans, pois foi quando entrou em vigor na Argentina a Lei de Identidade de Gênero, a primeira no mundo que, sem recorrer à patologização, reconheceu o direito de pessoas trans à identidade. A coleta que Pía vinha realizando por iniciativa própria foi o ponto de partida para a criação do arquivo, que atualmente conta com mais de 10 mil itens. A ativista, contudo, faleceu meses antes de María Belén ter dado início efetivo ao projeto, a partir de seu exílio nos Estados Unidos.

Como era de esperar, uma parcela significativa do acervo remete diretamente a momentos sombrios da história recente de pessoas trans na Argentina, como os períodos que compreendem a ditadura militar (1976-1983) e o início da epidemia do HIV/aids. Não à toa, um dos objetivos assumidos pelo projeto é reunir “recordações para formar o retrato das amigas que já se foram” e deixar claro “o porquê de hoje [serem] menos de 100 as que [passam] dos 55 anos”, como se lê na apresentação do livro em que parte do arquivo foi publicada.

No entanto, basta folhear as páginas da obra ou percorrer as séries temáticas já digitalizadas e disponibilizadas para consulta no site do AMTA para perceber que a alegria é um dos elementos predominantes desses registros pioneiros. Alegria de quem teimou em tramar redes e forjar brechas até poder, enfim, existir; alegria de quem descobriu pares quando tudo indicava serem figuras únicas, anomalias, monstros; alegria de quem, pouco a pouco, foi rejeitando a vergonha que lhe ensinaram, que lhe impuseram, inventando o orgulho de ser quem é.

O AMTA registra as violências que nos vitimaram, mas não só isso: exibe também uma constelação de memórias afetivas que desvelam nossa força, nossa coragem e as estratégias de que nos valemos para burlar o “cis-tema”, a “cis-norma”. Os ardis para sobrevivermos à infância, à adolescência e à vida adulta, as diversas maneiras como nos descobrimos e nos viabilizamos trans, os corpos e as subjetividades que vamos construindo, as ocupações que historicamente têm tornado possível nossa existência (com destaque para o trabalho sexual), o papel decisivo das festas e boates, lampejos da vida cotidiana, encontros de militância, eis o que se pode encontrar nesse acervo.

Documentos como esses recontam a história de uma perspectiva trans. Não só da Argentina, aliás: no Brasil, destaca-se a iniciativa do Acervo Bajubá, uma compilação excepcional de “obras de arte, livros, periódicos, lPs e Cds produzidos por lésbicas, gueis, bissexuais, travestis e transexuais brasileiras”, além de produções que tematizam a diversidade sexual e a pluralidade de expressões de gênero no país.

Ao contrário do AMTA, o Bajubá não enfoca exclusivamente as identidades trans. Esse perfil misto tem suas vantagens, pois nem sempre é possível identificar se estamos diante de uma narrativa de dissidência sexual ou de gênero, sobretudo quando estamos falando do passado. Boa parte dos casos se apresenta de forma nebulosa, borrando as fronteiras entre sexualidade e identidade – algo que convém não perder de vista quando se deseja compreender os descaminhos a partir dos quais fomos produzindo existências tanto trans quanto LGB cis.///

Tradução dos relatos do espanhol de André Albert.

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Texto originalmente publicado na edição impressa da revista ZUM #23.

No Festival ZUM de 2021, a criadora do Arquivo da Memória Trans da Argentina, a ativista María Belén Correa conversou sobre a relação entre fotografia, identidade de gênero e democracia com a escritora Amara Moira. Clique no link para rever: Youtube da ZUM.

Archivo de la memoria trans argentina (Chaco, 2020), org. María Belén Correa

Amara Moira (Campinas – SP, 1985) é travesti, feminista, doutora em teoria e crítica literária pela Unicamp e autora dos livros E se eu fosse puta (hoo, 2016) e Neca +20 poemetos travessos (O Sexo da Palavra, 2021).