A cerimônia secreta
Publicado em: 13 de março de 2025

Parecia que jamais morreria. Era um ser de vitalidade surpreendente. No entanto, Lourdes Grobet faleceu no último 15 de julho [de 2022]. Em sua longa e inovadora carreira, produziu grandes projetos. Destaca-se a série Luta livre, que teve início no México nos anos 1980 e foi desenvolvida ao longo de quase 40 anos. Nessa série, Lourdes investigou a vida e o trabalho dos integrantes dessa subcultura, até então desconhecidos dos próprios mexicanos – e ainda mais dos estrangeiros. Não apenas tornou esse meio mais conhecido, como nos revelou uma nova forma de imersão na realidade dos lutadores populares das grandes cidades mexicanas e em um espetáculo fundamental para as classes média e baixa do país. A série derrubou muitos preconceitos. Diversas manifestações cinematográficas, ensaísticas e literárias resultaram desse olhar inédito.
Falarei sobre Lourdes Grobet no presente, porque ela não morreu: segue viva em todos aqueles que conhecem sua obra, em seus amigos e discípulos, e naqueles que a amaram. Sua despedida foi no salão de baile Los Angeles, na Cidade do México, como seria de seu agrado. Uma celebração coletiva de uma vida excepcional.
Notas de uma espectadora
Descubro uma mulher-tigre que, vestindo sua imensa capa dourada, olha para nós de um cantinho de sua casa com paredes pintadas de modo convencional. Mas não se trata de uma mulher-tigre qualquer. Observamos seu cabelo cacheado, comprido, pintado de ruivo-escuro ou vermelho-fogo. De sua máscara, elevam-se dois chifres, e talvez ela seja uma diaba. Ou, quem sabe, um animal inventado, com chifres de carneiro e rosto de tigre. Uma fera representada por algum povo antigo. Uma máscara pré-hispânica para uma velha dança tribal. A ferocidade do rosto contrasta com o traje sexy de Mulher Maravilha ou Supergirl, uma heroína de gibi gringo.
Continuo a fitá-la, e agora essa fera em júbilo me lembra uma imagem católica. A virgem de um retábulo medieval ou dos tempos da colônia. Sob seu manto, vejo dois santinhos, ou curas, ou acólitos. Mas, claro, se volto à realidade, percebo que são seus filhos, bem penteados para a foto. Pois temos aqui uma mãe qualquer que também é a Virgem, e que também é uma fera e um demônio e uma heroína de gibi gringo. É o que é, com o objetivo de dar aos filhos a segurança dessa casinha de paredes estampadas e recantos quentinhos e acolhedores. O que melhor representa a mãe mexicana?
Elas, as crianças, muito sérias, bem penteadas com limão e vestidas formalmente, olham para a câmera de Grobet, como é natural nessa ode à maternidade sui generis, que somente uma fotógrafa como Grobet e uma modelo como a lutadora poderiam criar. Mas as crianças também são os pajens dessa rainha; os troféus ao fundo, os principais prêmios recebidos por essa guerreira da Arena México.
Não sabemos se a quimera urbana criada em conjunto pela fotógrafa e pela lutadora está a ponto de alçar voo (também vejo aqui uma ave gigante, um anjo com seus querubins ou uma esfinge de presença esquiva).
É a minha foto favorita da série. Até que vejo a seguinte.
O fato é que essa proliferação de significados toma conta de mim em cada uma das fotos dedicadas à luta livre. Tanto nestas fotografias como nas outras que integram o trabalho. Uma complexidade que somente o olhar constante e bisbilhoteiro da fotógrafa poderia criar em cada uma dessas imagens.
Que magia se desprende da imagem de Brazo de Plata provando a comida oferecida por uma cozinheira de avental (sua mãe, dona Ana Nieves de Alvarado)? O herói popular, um ser misterioso e mágico, avalia se falta ou se sobra sal no preparo. Em que momento ele se transformou em outro aos nossos olhos – em um homem de casa, comum e banal, que à noite voa e triunfa no ringue para que o público possa urrar de prazer?
E o que dizer da lutadora que, vaidosa, maquia o contorno dos olhos, que mal aparecem pelos buracos da máscara? Quanta normalidade destila a fotografia do mascarado que percorre as ruas populares com a família em um carro velho?
Um garoto espantado observa sua passagem, enquanto os filhos e a esposa agem como se nada estivesse acontecendo. Fico pensando no tanto que não sei sobre luta livre, e também no tanto que não sei de modo geral.
Associo algumas dessas fotos a imagens de El Santo e Blue Demon, aos filmes mexicanos, aos cartazes de rua em que os heróis confirmam seu heroísmo voando pelos ares ou mostrando seus músculos definidos. Mas essa série também traz uma imagem capaz de dar complexidade ao nosso olhar, quando o herói em pose de herói brilha sentado em seu trono dourado, escoltado por um orgulhoso cão de porcelana e tendo ao fundo o discreto charme da burguesia na decoração. Essa série é a cerimônia secreta que desnuda minha estreita percepção da realidade. Essas fotos revelam-me o quanto não sei.
Grobet mostra sempre algo além. Ela mesma diz que não faz fotos, mas cria imagens. É uma rebelde nata e uma brincalhona. Mimetiza sua obra, ama a realidade que escolhe reinterpretar para nós, a ponto de passar muitos anos a seu serviço e fundir-se a ela. Por isso ela se tornou tão amiga dos lutadores, empresários e até mesmo dos espectadores, pois algumas de suas fotografias do público revelam alguém que fotografa a partir de uma intimidade compartilhada.
Quando estudou na Inglaterra, a professora disse em uma aula: “Saiam para pintar paisagens”. Grobet pegou suas tintas, viajou para o interior e se dedicou literalmente a pintar pedras e troncos de árvore. Levou consigo os filhos pequenos, que de certo se divertiram loucamente. Foi detida pelas autoridades, que não sabiam se era melhor acusá-la de delito ou de delírio. Quando descobriram que era uma artista, puseram-na em liberdade. Ela continuou o projeto no México, onde pintou palmas e cactos para destacá-los do restante da paisagem. Eu me pergunto se ela não estaria brincando com a grande pintura de José María Velasco, ao singularizar os traços icônicos do campo mexicano pintando-os com cores chamativas. Ela costuma questionar o que vemos quando vemos paisagens.
“O que vemos não é o que vemos, senão o que somos”, disse o poeta Fernando Pessoa. Nosso olhar é filho de uma construção mental. A realidade é tingida por nossos sonhos. Grobet não apenas despe nosso olhar como também joga com ele. O espírito lúdico permeia sua obra. “Não faça nada que não considere divertido”, o ensinamento de seu mestre Mathias Goeritz a acompanha. Em sua mostra intitulada Na mesa (1973), havia um letreiro em que se lia “O cheiro da comida é real”, e isso me lembrou do “Isto não é um cachimbo”, de René Magritte, a célebre frase que alude à irrealidade do que vemos, do jogo de espelhos da pintura ou mesmo de tudo o que está fora do quadro. O ponto cego de nosso olhar sempre está assim, à espreita.
Em outra exposição, intitulada Mão negra (2008), uma luva monopoliza a cena e nos impede de contemplar suas viagens ao redor do mundo. Ou, melhor dizendo, uma mão negra está sempre diante de nossos olhos, impedindo-nos de ver. De quem é a mão negra que se interpõe?
Grobet é uma artista que está constantemente nos dizendo outra coisa e seu mistério. Ela nos oferece um espetáculo visual, colorido, cheio de movimento, de músculos, no qual sentimos a chave de braço, a rasteira, o baque repentino contra o chão do ringue. Ela joga com a imagem para nos revelar que aqui também está presente a mitologia dos heróis de quadrinhos, faltando apenas o “Pof!”, o “Bang!” ou a onomatopeia que quisermos.
Assim como o Super-Homem chega ao escritório e se torna um tímido funcionário de óculos, esses guerreiros têm outra vida fora da arena. Também poderiam ser Cinderelas cujas carruagens, ao soar a meia-noite, transformam-se em abóbora e nos revelam outra realidade. Sinto falta da foto de Grobet transformada em lutadora, da inversão de papéis. Posso senti-la assim, no ringue, na cozinha de sua obra enquanto a preparava. Por outro lado, não faltam a ternura, o amor que encontrou nessas personagens e o que ofereceu a elas.
E quando ela nos mostra o rosto do público, descobrimos que a luta livre não é apenas um espetáculo ou um esporte, uma coreografia armada para o encontro dos corpos. Não vemos apenas o voo, a dança e o teatro. Trata-se de um ritual coletivo, em que os espectadores, com seus gritos e emoções, dirigem o devir de cada noite. Em que o equilíbrio e a saúde do mundo estão em jogo a cada batalha entre lutadores técnicos e grosseiros. E quanto mais fundo esse ritual nos toca, mais ele nos devolve à vida cotidiana, pois os mascarados dirigem táxis, são policiais, provam a sopa da mãe, dizem vamos decorar nossa casa de um jeito bem elegante ou mesmo refinado, vamos fazer uma foto da família toda para botar num porta-retrato e deixar uma lembrança bonita para quando nossos filhos forem adultos. Vamos dar uma chupeta para o meu bebê, vamos vestir um terno para que, em 15 anos, vejam como eu era bonito. Vamos ver as quatro paredes repletas de imagens de El Santo e, no centro, protegida por seus deuses guardiães, descobrir essa pequena velhinha devota.
Após a ostentação de testosterona no ringue (homens e mulheres), após a exaltação do regozijo, do medo e das paixões baixas (“queremos sangue”, “mata ele”), após alguém retorcer uma cabeça com máscara dourada como se fosse um esfregão, ninguém esperaria tantas emoções. Ao vermos essa gente voando pelo ringue, com saltos acrobáticos e uma dança magnífica, em cenas nas quais o sangue às vezes é de mentira, e os riscos, simulados ou exagerados, esquecemo-nos de que ali estão pessoas comuns e banais.
Onde se fermentou então o poder dessa série? Só a artista sabe, mas não acho que ela esteja disposta a contar. Assim, me atrevo, com a permissão do leitor, a fazer uma brincadeira. Uma prova de múltipla escolha com as respostas possíveis, e convido-o a acrescentar outras. Eu não poderia ser solene diante de uma artista tão lúdica, que realizou uma série com lutadores que podem estar brincando conosco, que podem ser atores, coreógrafos ou heróis.
A) A proibição, a porta fechada
Talvez Luta livre tenha nascido de uma proibição. Uma proibição que, para alguém de alma transgressora, provocadora e lúdica, teria servido de estímulo, até que ela conseguisse cruzar a porta em direção ao sonho impossível de sua infância.
A autora conta que, quando era criança, as lutas começaram a ser transmitidas pela televisão. Ela, uma criança ginasta (seu pai tinha uma academia em casa e era campeão nacional de ciclismo), ficou fascinada pelo espetáculo. No entanto, seu pai nunca quis levar as duas filhas às lutas, porque elas eram mulheres. Pelo mesmo motivo, tampouco quis treiná-las, embora pudessem ter sido ginastas olímpicas.
A porta que se fecha a um pedido natural, orgânico, dado o contexto (de exercício, de atletas na família). Foi uma promessa enterrada que se cumpriria no futuro. Quando ela se tornou uma artista visual que joga, nada mais sugestivo do que abrir essa porta.
Após tentar fazer a primeira foto, as portas se fecharam: uma mulher não poderia fotografar as lutas. Por fim, conseguiu convencer o empresário, de quem se tornaria amiga e a quem fotografaria. Depois que se familiarizaram com sua presença na arena, o projeto foi crescendo, e foi preciso abrir outras portas até que ela conseguisse entrar na cozinha da casa dos lutadores.
B) Romper com a exclusão das mulheres
Grobet diz que não é feminista, que não entende a libertação das mulheres sem a libertação dos homens. É rebelde. Não se cala diante de injustiças. E é uma injustiça dizer que as mulheres não têm a mesma capacidade de lutar do que os homens. Grobet é uma atleta e nada é capaz de detê-la. Conta-se que ela foi par de dança de El Santo, o Mascarado de Prata. Que comeu carne de morsa no estreito de Bering, enquanto fazia pesquisas para seu documentário sobre os habitantes locais. Lançaram facas contra ela (a pedido seu) em uma feira popular. Um hipopótamo fez xixi nela. Foi visitada pelo espírito de García Lorca. Ninguém detém essa mulher. Por isso, ela não gostou que os lutadores fossem vistos como machos, como masculinidade em estado bruto; tampouco aceitava que as lutadoras não ganhassem papéis de protagonismo. Devolver a feminilidade oculta aos lutadores e o protagonismo às lutadoras. Desvelar o véu que mascara os gêneros, devolver-lhes sua liberdade em estado puro.
Não se tratava só da intimidade dos lutadores, mas também da intimidade do público, com olhares que significam tanto, não só para suas próprias reivindicações morais e pessoais. Que o bem triunfe ou que o mal triunfe, depende. Por isso gritamos até perder a voz: “Queremos sangue, mata ele”. Porque o bem deve vencer o mal (mesmo que seja só por essa noite).
C) Os signos da obra foram se revelando…
… à autora, enquanto seguia em frente, fiel a seus impulsos. Nessa hipótese, prefiro jogar com outra ideia: a obra reescreve a artista. Conforme abria portas e mais portas e avançava no tempo e nos espaços de trabalho e de vida dos lutadores, a artista foi se transformando. Foi descobrindo o México profundo, como ela mesma diz, retomando as palavras do antropólogo Guillermo Bonfil Batalla.
Assim, partiu do ringue e do espaço da arena para entrar na casa deles, fazer amizade com eles, comer e passar tempo com eles, conhecê-los a fundo, como sempre faz em seus trabalhos fotográficos ou documentais.
Criada essa intimidade, houve uma guinada. Passou da foto vistosa, popular, que joga com a estética das roupas e de seu colorido, para a necessidade de usar o preto e branco para retratar o espaço interior. Não se tratava só da intimidade dos lutadores, mas também da intimidade do público, com olhares que significam tanto, não só para suas próprias reivindicações morais e pessoais. Que o bem triunfe ou que o mal triunfe, depende. Por isso gritamos até perder a voz: “Queremos sangue, mata ele”. Porque o bem deve vencer o mal (mesmo que seja só por essa noite).
D) A máscara foi a chave
Ou talvez a pedra de toque que nos conta a origem dessa obra seja a máscara. O símbolo de nossa cultura, segundo o poeta Octavio Paz. Os zapatistas, por outro lado, disseram: “Vamos cobrir o rosto para que nos vejam”. Para Grobet, a cultura mexicana é uma cultura de máscaras, pois jamais sabemos o que o outro pensa de verdade. Em sua obra, a máscara esconde e revela ao mesmo tempo.
Não sei com qual dessas hipóteses ficar. Talvez com todas – ou com outras
que ainda surgirão. Encerro com estas palavras da artista: “Minha única recomen- dação é a liberdade, liberdade dos modos de se expressar, liberdade de pensa- mento, liberdade de posturas políticas, liberdade, liberdade, liberdade”. ///
Artigo publicado originalmente na edição impressa da revista ZUM #23 de outrubro de 2022. Assine a revista AQUI ou compre seu exemplar na LOJA DO IMS.
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Lucha Libre – Masked Superstars of Mexican Wrestling, de Lourdes Grobet (D.A.P/Trilce, 2005)
Family Portraits, de Lourdes Grobet (RM, 2009).
Tradução do espanhol de Bruno Cobalchini Mattos.
Lourdes Grobet (Cidade do México, 1940-2022) foi fotógrafa e artista visual. Estudou belas-artes na Universidade Iberoamericana e iniciou sua carreira artística na pintura. Formou-se em fotografia pelo Derby College, na Inglaterra. Expôs seus trabalhos em diversos países, como Portugal, México, Estados Unidos e França.
Beatriz Novaro (Cidade do México, 1953) é escritora, autora de peças de teatro, roteiros de filmes, poemas e ensaios sobre a imagem e a poesia. É consultora de projetos fotográficos na Incubadora de Fotolivros da editora Hydra. Recebeu diversos prêmios por seu trabalho cinematográfico.