Entrevistas

Entrevista: Claudia Calirman e as práticas dissidentes de artistas brasileiras

Fabiana Lopes & Claudia Calirman Publicado em: 24 de agosto de 2023

Letícia Parente, Preparação I, 1975. Vídeo; 3’31”. Cortesia do espólio da artista e da Galeria Jaqueline Martins, São Paulo e Bruxelas.

No primeiro semestre de 2023, a pesquisadora Claudia Calirman, que também é curadora, professora associada de História da Arte e chair do departamento de Arte e Música do John Jay College of Criminal Justice em Nova York, lançou seu segundo livro, Dissident Practices: Brazilian Women Artists, 1960s-2020s/Práticas Dissidentes: Artistas Brasileiras, 1960-2020. Em Nova York, o lançamento do livro foi acompanhado por uma exposição homônima e por uma mesa-redonda com apresentações da pesquisadora e curadora do New Museum, Vivian Crockett e André Lepecki, pesquisador e  chair do departamento de Estudos de Performance na Univeridade de Nova York, bem como a participação das artistas Berna Reale, Gretta Sarfaty, Lyz Parayzo e Renata Felinto.

A curadora e pesquisadora Fabiana Lopes conversou com Claudia sobre o processo de elaboração e pesquisa do livro, bem como os trabalhos dessas artistas dissidentes nos últimos 60 anos.

Berna Reale, Palomo, 2012, performance. Cortesia da artista e da Galeria Nara Roesler, São Paulo, Rio de Janeiro e New York.

Claudia, parabéns pela publicação do seu segundo livro. Que trabalho incrível. Eu me lembro de um encontro para um café que tivemos anos atrás no East Village. Na ocasião, você comentava sobre seu interesse em pesquisar artistas mulheres e, também, de gerações mais jovens. É incrível pensar naquela conversa em retrospectiva enquanto folheio esse projeto, resultado da pesquisa que você anunciava naquele momento.

Quero começar essa conversa falando um pouco sobre o processo de germinação do projeto. Você fala, na introdução de seu livro, sobre a importância da exposição Mulheres radicais: arte latino-americana, 1960-1985 com curadoria da Andrea Giunta e da Cecília Fajardo-Hill. Você comenta também que essa exposição motivou, de alguma maneira, o seu projeto de pesquisa. Como foi a germinação desse projeto. Como ele começou?

Claudia Calirman: A ideia do livro já existia antes da exposição Mulheres Radicais com curadoria da Andrea Giunta e da Cecília Fajardo-Hill. Mas como elas também contam no catálogo de Mulheres Radicais, muitas artistas latino-americanas dos anos 60 e 70 tinham uma certa recusa em usar o termo feminismo para falar de seus trabalhos­­. Esse era um rótulo que elas não queriam. Então tinha uma certa saia justa em abordar o tema. A Andrea e a Cecília me convidaram para fazer parte do workshop inicial para pensar a exposição e depois disso me deu muita vontade de seguir com o projeto do meu livro. Elas depois me convidaram para participar da conferência no Hammer Museum, em Los Angeles, durante a primeira itinerância de Mulheres Radicais. Foi aí que o meu livro realmente começou a tomar forma. Então sou muito grata a elas.

Anna Maria Maiolino, De-Para, fotografia analógica, da série Fotopoemação, 1974. Foto: Max Nauenberg. Cortesia da artista.

E o que é o projeto Práticas Dissidentes? Como você o define?

CC: Dissident Practices: Brazilian Women Artists, 1960s–2020s/Práticas Dissidentes: Artistas Brasileiras, 1960-2020 examina 60 anos das artes visuais de mais de 18 artistas mulheres brasileiras proeminentes e emergentes desde a década de 1960 até o presente. Cada uma dessas artistas abordadas no livro trata de uma prática de resistência diferente e por isso elas foram selecionadas. De uma certa forma, pode-se dizer que cada artista representa uma resistência especifica. Por isso eu digo que o livro trata de “práticas de resistências.” Elas abordam uma multiplicidade de temas contra a censura, a violência do Estado, a desigualdade social, o racismo sistêmico, a brutalidade policial e a exclusão de grupos marginalizados. Por meio de uma perspectiva decolonial, elas respondem ao autoritarismo, questionam as normas sociais de gênero e lutam contra a objetificação das mulheres.

Por exemplo: o trabalho da Anna Bella Geiger remete aos anos de resistência à ditadura militar, Lenora de Barros lida com questões colocadas pela linguagem patriarcal, Renata Felinto fala do privilégio da branquitude, Lyz Parayso aborda corpos queer, Sallisa Rosa traz uma visão atual sobre a questão indígena, Aleta Valente se apresenta através da mídia social, Márcia X ironiza a sexualidade masculina tóxica, Rosangela Rennó problematiza arquivos prisionais, Berna Reale fala da violência policial, e por aí vai. O livro foi sendo costurado através dessas práticas diversas que eu chamo de práticas dissidentes.

Gretta Sarfaty, Transformações I, 1976. Cortesia da artista.

Em sua fala durante a abertura da mesa redonda no John Jay College você comentou que começou o livro pelo último capítulo. Achei essa declaração bastante curiosa. Como foi esse processo?

CC: É verdade. Seria muito difícil começar o livro cronologicamente pelos anos 60, já que as contradições sobre a questão feminista teriam que ser explicadas, o que levou um tempo para eu digerir e elaborar. Embora fossem aclamadas como figuras-chave da arte brasileira e usufruíssem de uma posição única em termos de visibilidade e destaque no país, essas artistas mulheres ainda enfrentavam adversidades e constrangimentos por causa de seu gênero. Embora muitas delas nas décadas de 1960 e 1970 repudiassem o termo feminismo, elas ainda empregavam estratégias feministas. Ao mesmo tempo que rejeitaram o rótulo feminista, elas abordavam em seus trabalhos a emancipação feminina. Essa rejeição foi influenciada por uma complexidade de questões: a visão da ditadura militar como o único inimigo; a estrutura patriarcal do país; as atitudes machistas dos agentes culturais; o desdém tanto da esquerda como da direita pela causa feminista. Além disso, o feminismo era visto por alguns setores da sociedade como um movimento vindo dos Estados Unidos, e rejeitar esse movimento era de certa forma um gesto anti-imperialista.

A energia para começar a escrever o livro veio mesmo durante a primeira conversa que eu tive em São Paulo com a artista Fabiana Faleiros. A Fabiana tem doutorado em história da arte e aborda de uma forma audaciosa a emancipação da sexualidade feminina no trabalho dela. Foi ela que me ajudou a traçar um panorama da nova geração de artistas que estava abraçando de forma aberta e sem receios a questão feminista. Foi a partir dessa conversa que eu entendi que eu realmente tinha uma história incrível para contar. 

Em seu projeto, você aborda tanto artistas dos anos 60 quanto artistas contemporâneas, com trabalhos produzidos até recentemente, nos anos 2020. Colocando essas artistas no mesmo espaço, e você faz isso literalmente, não apenas através do livro mas também da exposição, você nos convida a pensar nas artistas e nas produções do agora em diálogo com artistas sobre as quais já existe um arquivo de reflexões desenvolvido ao longo do tempo, um arquivo histórico. Em outras palavras, você nos convida a olhar para uma produção bastante recente com cuidado e acuidade. O que você acha disso?

CC: O livro começa nos anos 60 com a ditadura militar, passa pelo retorno à democracia em meados da década de 1980, pelas mudanças sociais da década de 2000, e a ascensão da direita no final da década de 2010, concomitante com o surgimento de uma geração mais jovem lutando pela igualdade de gênero e pelos direitos LGBTQI+. As produções artísticas são analisadas diante de perspectivas históricas, eventos temporais e especificidade cultural. Hoje, relendo o livro, eu vejo que há muitas rupturas e não apenas continuidades entre as gerações dos anos 60 e 70 com a produção artística de hoje. São momentos históricos muito diferentes. Nos anos 60 e 70 as artistas estavam focadas na luta contra a ditadura militar e qualquer desvio era visto como uma divisão e digressão desse inimigo principal. Hoje as causas são muito mais plurais. As minorias ganharam voz e falam por si mesmas. Não são mais apenas as artistas brancas das classes alta e média e do eixo Rio-São Paulo que dominam o discurso artístico.

Letícia Parente, Preparação I, 1975. Vídeo; 3’31”. Cortesia do espólio da artista e da Galeria Jaqueline Martins, São Paulo e Bruxelas.

Nas considerações finais de seu livro, que você indica terem sido escritas durante a pandemia, você comenta sobre as transformações do status de algumas das artistas citadas no livro. Durante esse período, você encontrou alguma transformação relevante na maneira como essas artistas localizam suas práticas em relação ao contexto social.

CC: Foi só quando eu já estava escrevendo a conclusão do livro durante a pandemia que eu percebi quanta coisa havia mudado durante todo o percurso. Muitas das artistas abordadas no livro ganharam visibilidade através do Prêmio Pipa, de representações em importantes galerias comerciais, acesso à bolsas de estudo no Brasil e no exterior, e convites para exposições em museus e galerias de renome internacional. Foi muito bonito ver como elas foram ocupando espaços muito maiores desde que comecei a elaborar o livro em 2012 até a sua conclusão em 2022. Mas a minha relação com as artistas não foi afetada por essas mudanças.

Aleta Valente, da série Material Girl, 2015. Fotografia. Cortesia da artista e da Galeria A Gentil Carioca, São Paulo e Rio de Janeiro.

Eu fiquei pensando como o termo “prática” parece ser crucial em sua pesquisa. Ele não apenas compõe o título do livro, Práticas Dissidentes, mas também organiza o conteúdo do projeto através da divisão dos capítulos: “Práticas políticas”, Práticas discursivas”, “Práticas transgressivas” e “Práticas de si”. O termo “práticas” parece oferecer certas pistas do caminho que o leitor está prestes a percorrer. E talvez eu esteja aqui ainda contaminada pelas observações do André Lepecki e tentando elaborar a sugestão que ele fez de que esse projeto, além de contemplar uma multitude de vozes, oferece um esboço de teoria em práticas de performance. Você poderia falar um pouco sobre a importância do termo “práticas” em seu projeto?

CC: O conceito “Práticas de Resistência” vem do Michel Foucault. Ele foi muito útil para a construção do livro. O capítulo 1, “Práticas Políticas”, discute como nas décadas de 1960 e 1970 um grupo de mulheres artistas, incluindo Lygia Pape e Anna Bella Geiger, ganhou prominência durante o regime militar. Essas artistas articularam respostas sociais e éticas ao autoritarismo.

O capítulo 2, “Práticas Discursivas”, explora como algumas artistas como Anna Maria Maiolino, Letícia Parente, Sonia Andrade, Gretta Sarfaty e Lenora de Barros exploraram a semiologia da boca como fonte de experiências sensoriais e um lugar para as complexidades da comunicação.

Elas brincaram com a dupla conotação da palavra língua, que em português tem o duplo sentido de “língua” e “linguagem”.  Elas agiram contra o determinismo biológico e teorias pseudocientíficas. A semiologia da língua foi usada como um instrumento de múltiplas significações: um aparelho de saber, discurso e poder.  Wanda Pimentel e Regina Vater, por exemplo, interrogaram construções estabelecidas sobre a subjetividade feminina, abordando a imobilidade e o aprisionamento dentro de prescrições sociais.

O capítulo 3, “Práticas Transgressivas”, enfoca artistas dos meados dos anos 80 até hoje cujas obras remetem à violência, ao trauma e o poder. No despertar da queda do regime militar em 1985, havia o desejo de deixar o regime autoritário para trás e esquecer questões relacionadas à política de repressão, então considerada tão antiquada quanto a própria ditadura. Novos agentes de repressão logo entraram em cena, incluindo milícias, grupos de extermínio e gangues de drogas, entre outros. Para combater esse aparato repressivo, novas estratégias de resistência surgiram para combater a desigualdade social, o racismo sistêmico, a discriminação de gênero, a corrupção, a brutalidade policial e as condições abismais do sistema prisional. Essas artistas desafiaram estruturas patriarcais e o mito da democracia racial no país. Esse capítulo discute trabalhos da Rosângela Rennó, Rosana Paulino, Márcia X, Renata Felinto e Berna Reale.

O capítulo 4, “Práticas de Si”, analisa os desenvolvimentos artísticos de um grupo de artistas que se tornou ativo nas duas primeiras décadas do século 21.  Ao abraçar abertamente o feminismo, elas defendem a potencialização da mulher por meio de estratégias agressivas, como a autoexposição em mídias sociais. Essas artistas trabalham na interseção de gênero, raça e classe. Elas empregam táticas como a paródia, a sátira e o humor. Agindo como agentes provocadoras, elas questionam a maternidade compulsória enquanto lutam pela liberdade reprodutiva das mulheres e direitos de acesso ao aborto. Suas plataformas, promovidas principalmente através da internet, tornaram-se ainda mais poderosas e marcantes diante do Movimento #MeToo que ganhou destaque mundial em 2017. Por meio de suas agendas sociopolíticas radicais, artistas como Aleta Valente, Lyz Parayzo, Sallisa Rosa e Fabiana Faleiros afirmam suas diferenças e produzem diversidade. Como um todo, o livro rejeita uma tendência recente de atenuação de diferenças, afirmando a pluralidade de subjetividades dissidentes. ///

Fabiana Lopes é curadora independente radicada em Nova York e São Paulo, e doutoranda em Estudos de Performance pela Universidade de Nova York.  Sua pesquisa está centrada na produção contemporânea no Brasil e nas Américas. Seus projetos curatoriais incluem a Bienal 12|Porto Alegre (2020) e artigos para catálogos da Pinacoteca de São Paulo, Museu de Arte de São Paulo, Prêmio Pipa, Bienal de Berlin, bem como para o Nka: Jounal of Contemporary African Art, Apotheke e Cadernos Pagu, entre outros.

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