Revista ZUM 22

Força negra

Zumví Arquivo Afro Fotográfico & Denise Camargo Publicado em: 7 de junho de 2022
Modelo na Semana da Consciência Negra do Colégio Estadual Odorico Tavares, Salvador, 1998*

Um homem negro que registra seus iguais com uma máquina fotográfica é uma conquista. A sub-representação da arte preta brasileira em coleções, museus, galerias, festivais, exposições, publicações e curadorias evidencia que o domínio da produção branco-brasileira persiste.

Se esse preto é o filho de uma lavadeira e de um estivador, origem que ele faz questão de ressaltar, e nasceu na Fazenda Grande do Retiro, na periferia de Salvador, na baía de Todos os Santos, adentrar o mundo das artes traz tantos desafios quanto organizar seu projeto artístico e político.

Lázaro Roberto dos Santos assentou seu trabalho no Zumví Arquivo Afro Fotográfico a partir dos anos 1990. Constituído ao longo do tempo com a doação de personalidades como Jônatas Conceição, ativista do Movimento Negro Unificado, Luiz Orlando, pesquisador do cinema negro, e o fotógrafo Rogério Santos, o Zumví hoje abriga os acervos de oito fotógrafos e conta com cerca de 30 mil fotografias.* Dois terços das fotos são de Lázaro. Elas abordam o trabalho, o cotidiano, as manifestações políticas e sociais de luta no movimento negro, as festas populares e religiosas, as comunidades remanescentes de quilombos e a estética negra.

O projeto do arquivo é resultado do incentivo dos militantes Raimundo Monteiro e Aldemar Marques, que pretendiam dar visibilidade à memória e à história negras da Bahia e encontraram em Lázaro o parceiro ideal. Quando os dois companheiros deixaram o projeto, coube a Lázaro tocar a empreitada. Ciente da relevância do material, que se encontrava em condições precárias, Lázaro procurou a ajuda do sobrinho, o historiador José Carlos Ferreira, que se tornou produtor-executivo do arquivo. Para ativar o Zumví, escreveram um manifesto e saíram em busca de ajuda institucional, mas, de início, foram recebidos com desdém e uma série de barreiras burocráticas e promessas não atendidas.

Hoje o projeto sobrevive com a ajuda de algumas pessoas próximas, com recursos de editais públicos e a esperança de manter viva a memória do povo preto visto por lentes também pretas.

Nos anos 1970, Lázaro integrou o grupo de teatro criado pelo padre progressista Paulo Maria Tonucci, que buscava denunciar as misérias sociais, enfrentar a ditadura militar e oferecer formação artística e cultural à comunidade da paróquia local. Ali, num festival de artes anual, Lázaro teve contato com fotografias que o arrebataram. Começou a fotografar com a câmera emprestada por Geremias Mendes, responsável pelos registros do grupo dirigido por Antonio Jorge Godi. Sem saber ainda qual seria o destino dessas fotografias do bairro, das pessoas, das festas, das manifestações, guardou olhares daquele tempo para que pudessem ser revistos no futuro.

Suas imagens expõem o racismo estrutural quando trazem para o quadro a população negra em situação de rua ou quando respondem à crescente intolerância contra as religiões de matriz africana no Brasil – como na foto da jovem com o cartaz “Exu não é diabo. Respeite o meu sagrado.” As fotografias de Lázaro contrastam a dureza da vida com os sorrisos escancarados em plena afirmação do éthos festivo do povo negro. Ele evita registros estereotipados, que vendem corpos sinuosos e músculos trabalhados, para trazer a força subjetiva dos penteados e dos cabelos afro.

Lázaro é um homem doce, atencioso e firme. Seus traços de humildade não escondem as marcas dos sofrimentos passados, que ele reverteu em energia para absorver o mundo preto e apresentá-lo em fotografias. Nesta conversa, Lázaro partilha suas referências e o processo de criação de um olhar que se reflete no encontro com o outro, seu povo negro, que ele quer valorizar. Com um olho no passado e outro no futuro, Lázaro ressalta o propósito educacional que deseja atingir com seu trabalho no Zumví. Sua voz reafirma com entusiasmo a militância que lhe corre no sangue, nas imagens que produz, no seu corpo e no olhar em diáspora.

Foto no estúdio para a série Black Cards: cartões-postais com negros, Salvador, 1993

Quando percebeu que a fotografia poderia ser sua linguagem artística?

Eu tinha 20 anos e participava do teatro no Grupo Experimental de Artes da Fazenda Grande do Retiro. Anualmente, organizava-se um festival para que os artistas mostrassem sua produção. Naquele ano, houve uma exposição do cineasta Antonio Olavo, que só vim conhecer em pessoa recentemente. Eram imagens do cangaço, do sertão. Nunca mais vi aquelas poucas imagens em preto e branco, mas elas me impactaram tanto que fiquei tentando descobrir como ele as tinha feito, e comecei a querer ser fotógrafo.

Foi assim que saltou do teatro para a fotografia?

Sim. Imediatamente, comecei a acompanhar o trabalho de Geremias Mendes, meu colega no grupo. Ele registrava os espetáculos, as nossas atividades, e foi me emprestando sua câmera de vez em quando. Comecei a fotografar as pessoas do bairro, as festas da cidade, nosso cotidiano.*

E como se transformou em um documentarista da história e do povo preto?

Nesse tempo, eu trabalhava numa gráfica com o padre Paulo Maria Tonucci e tomei contato com o material de divulgação das ações do Movimento Negro, que nós imprimíamos. A forma como eu via o mundo foi mudando, e passei a perceber que nós, pretos, só nos víamos em fotografia nos documentos de identidade. Deu vontade de fazer algo com a fotografia para transformar essa perspectiva. Eu não via pretos com máquina fotográfica. Além disso, estava interessado pelas questões políticas do momento e pela situação do país, e isso incluía a invisibilidade do povo negro.

Como sua história influenciou sua produção fotográfica?

Minha mãe só sabia assinar o próprio nome, mas isso não a impediu de fazer tudo para que os 11 filhos estudassem. Alguns só chegaram até o ensino médio, como eu, porque nossa vida era difícil. Minhas irmãs ajudavam a cuidar dos irmãos menores para minha mãe poder trabalhar. Na escola, eu me empolgava com a história do Brasil contada pelos professores. À noite, a gente se sentava para ouvir as histórias que os mais velhos contavam. Acredito que as histórias e os estudos me influenciaram a ser um arte-educador e a me tornar fotógrafo. Na fotografia, a gente acumula lembranças e conta histórias. Todas as situações familiares e escolares contribuíram muito para que eu fizesse a fotografia que faço. Quando peguei a máquina fotográfica, tudo o que eu vivia, de alguma forma, se convertia em imagens.

Em que circunstâncias você se deu conta de que era um menino negro?

Eu sempre soube. Diante da realidade que eu vivia, sempre percebi a diferença entre ser um menino negro e ser um menino branco nos anos 1960, 1970, o que nem é muito diferente dos dias atuais, mesmo que as coisas tenham mudado um pouco. Até meus 15 anos, carreguei na cabeça muitas trouxas de roupa suja de gente branca que minha mãe lavava. A gente vai ganhando consciência.

A consciência de ser negro formou em você qual autoimagem?

Muitas questões afro foram surgindo até eu começar a perceber que havia uma transformação em mim, e, por isso, havia em mim uma afirmação negra. Olhando para trás, sei de onde vim, sei que meus pais eram negros, que estávamos em um bairro negro. Esses elementos auxiliaram a formação de valores afirmativos e, posteriormente, influenciaram a minha adesão ao Movimento Negro. Mas acho que não formei uma autoimagem até a adolescência. Só a partir de então me tornei um garoto inquieto, comecei a assumir minha negritude e a entender quem eram aqueles black powers que eu via na televisão, aquela força do Ilê Ayê, que surgiu aqui perto de onde nasci, e o que representavam esses blocos afro para a cultura negra, influenciando até na lida com meu próprio cabelo.

Sabemos que os cabelos e a elaboração dos penteados resultam de heranças étnicas, e que os desenhos das tranças, por exemplo, já funcionaram também como estratégia de comunicação. Como a estética das suas fotografias de cabelos assumem formas de se comunicar com o povo preto?

As imagens sobre a estética negra começaram a ser produzidas dentro de minha própria casa, quando vi os ferros de espichar que minhas irmãs utilizavam para alisar os cabelos. As crianças negras convivem, especialmente nas escolas e nos lugares onde brincam, com frases preconceituosas sobre seu cabelo.

Fotografei todo tipo de penteado em retratos e detalhes: black power, alisamento, rastafári e toda essa modificação que os jovens fazem na cabeça nos dias de hoje. Todos os dias digo que o que faço poderia estar nas escolas.

É também uma fotografia pedagógica, então?

Apesar de ter feito a exposição Qual é o pente que te penteia? (2017), com curadoria de Alex Baradel, na Fundação Pierre Verger, nunca consegui fazer uma inserção didática, pedagógica mesmo, sobre o tema das estéticas negras em Salvador. Essas imagens poderiam estar em todas as escolas públicas para trazer a discussão sobre representatividade.

As exposições que têm curadoria são bastante importantes, mas não conseguimos exibi-las por um longo tempo e em outros espaços. A fotografia que faço tem base num arquivo que pode contribuir muito com a Lei no 10.639/2003 [que versa sobre o ensino da história e da cultura afro-brasileira e africana]. O caráter pedagógico do meu trabalho é uma escolha para que o povo negro possa se ver nas imagens.

Série Estética negra: penteando seu cabelo estilo black power em um salão no bairro do Retiro, Salvador, 1994

Nesse sentido, como o autorretrato constrói sua imagem?

Nunca fiz muitos autorretratos. O rastafári com a máquina fotográfica é um dos únicos. Gosto dessa foto como símbolo da minha história: um homem negro olhando para o espelho, para um fotógrafo negro. Sinto que faço parte da cultura afro-brasileira. Mas antes a gente não se via, e também não havia fotos dos parentes, dos ancestrais. A fotografia era apenas para as pessoas brancas.

Sua história de vida é uma referência para a sua fotografia?

Minha mãe, Valdelice Ferreira dos Santos, era uma negra banto de lábios muito grossos. Falava pouco. Como muitas mulheres negras das periferias do Brasil, vivia ocupada com a casa e o trabalho. Meu pai saía de manhã e chegava à noite. Por causa do alcoolismo dele, minha mãe não deixava que nossos problemas cotidianos chegassem até meu pai, um homem rude, que cresceu praticamente sem os pais, largado pelo Recôncavo. Ele era muito fechado se não estivesse bebendo; mas gostava de fazer festas. Eram festas alegres, com muitos amigos.

Quando vou fotografar aqueles trabalhadores, aqueles arrumadores na feira de São Joaquim, me lembro muito do meu pai, José dos Santos, e da condição de sobrevivência do povo escravizado, esperando ainda por uma abolição que não houve. São todos homens negros em um trabalho muito pesado, muito penoso. Isso está na minha fotografia. Quando fotografo a cabeça das pessoas, estou me referindo à minha mãe e às trouxas de roupas que carregávamos juntos. Tenho quase uma fixação por isso. É a cabeça que leva balaio, que leva panela, que leva cabelos e toda uma estética. Tudo isso está na série Cabeça identidade.

Adepta do candomblé pede esmola para São Roque na feira de São Joaquim, Salvador, 2013*

A cabeça é um elemento sagrado na cultura dos terreiros de candomblé. Como as relações mitológicas de matriz africana aparecem em seu trabalho?

Aprendi muito com a experiência que tive durante dez anos em um terreiro de candomblé. Aprendi tanto que prefiro fotografar essa religiosidade, que está também nas ruas, nas festas populares e no Carnaval. A rua é espaço público. É claro que tive a oportunidade de fotografar no terreiro, mas não quis registrar as divindades incorporadas, por exemplo.

Você teve contato com Pierre Verger, que foi responsável por uma importante documentação de rituais no Brasil e na África. Você vê valorização da cultura afro-brasileira no trabalho dele?

Pierre Verger era um senhor muito educado. Fui apresentado a ele no terreiro de Balbino Daniel de Paula, Obaràyí de Xangô, pela etnomusicóloga alemã Angela Lühning. Ela veio pesquisar a música no Brasil, acabou enveredando pelos estudos da música do candomblé e ficou muito amiga de Verger.

Quando trabalhei com Jorge Batista na pesquisa sobre a hereditariedade profissional da feira de Água de Meninos – que migrou para a feira de São Joaquim em 1964, por causa de um incêndio –, Verger cedeu fotos para compor a exposição. Ele gostava do meu trabalho. Chegamos a trocar fotografias.

O trabalho dele tem um caráter didático. Ele pesquisou muito, levava correspondências do povo de candomblé daqui para a África. É um trabalho muito presente no campo acadêmico, para antropólogos, sociólogos, historiadores, mas que não chega cá embaixo, sabe? Porque apresenta também algumas contradições. Ele veio de uma família rica e, durante tanto tempo fotografando, não via racismo no Brasil, não mostrava as pessoas nas ruas, morando mal. Mas ele fez um trabalho muito importante para uma cultura negra que precisava ser reconhecida, e contribuiu muito para entendermos as nossas raízes.

Pierre Verger, Mario Cravo Neto e José Medeiros adentraram o universo das religiões afro-brasileiras de maneiras distintas e com resultados fotográficos muito significativos, cada um a seu modo. Eram todos homens brancos. Como é, para um fotógrafo negro, estar presente nesses territórios de resistência cultural e simbólica? É muito raro ver um fotógrafo negro documentar o candomblé. Mesmo tendo acesso aos espaços, os trabalhos mais famosos são os dos fotógrafos brancos. Está surgindo uma nova geração de fotógrafos e fotógrafas negros mais conscientes e preocupados, que não se aproveitam de uma manifestação cultural tão importante como trampolim nem buscam retratar essa temática por perspectivas que não aquelas do povo negro, mesmo respeitando o espaço sagrado. Por exemplo, Charles Bahia, que, como eu, era percussionista, nascido e criado dentro do candomblé, sempre fez ali uma fotografia social, de documentação das cerimônias, sem pretensão de transformar seu trabalho em livros ou exposições. Não gosto dessas fotografias que a gente vê nos livros sobre o povo de santo. Eu acho que elas caem no exótico. E nós não queremos mais ser tratados como objetos exóticos.

Cesteiro do Quilombo Praia Grande da ilha de Maré vendendo cestos na feira de São Joaquim, Salvador, 1992
Arrumadores na feira de São Joaquim, Salvador, 1992. Os chapéus eram usados para proteger a cabeça da carga.

Qual é sua relação com as tradições religiosas? De que maneira o conhecimento da religião propicia um aprofundamento da fotografia sobre esse tema?

Fui suspenso no terreiro Ilê Axé Opô Aganju, cujo pai de santo é Balbino Daniel de Paula, conhecido como Obaràyí, filho de santo de mãe senhora do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá. Frequentei por uma década esse terreiro em Salvador, mas não cheguei aos rituais de iniciação para me confirmar como ogã.* Na minha família, sempre estivemos na igreja católica e no candomblé. Minha mãe era filha de Oxóssi e Omulu, e minha irmã foi uma das fundadoras da igreja do bairro. Ao mesmo tempo, íamos todos ver as saídas de iaô e as festas dos orixás no terreiro. Mas, hoje em dia, os candomblés foram para lugares mais distantes em busca de condições mais apropriadas.

Você apresenta o corpo negro como um fenômeno ancestral. Como o corpo e a ancestralidade se expressam na imagem fotográfica?

A ancestralidade se expressa no corpo por meio de gestos, no modo de amarrar um troço colorido na cabeça, de dançar, de andar, de comer, de carregar algo, de falar. É um conhecimento que vai sendo transmitido ao longo do tempo. Algo tão natural que o negro nem percebe isso. Nesse momento, a fotografia torna tudo evidente. Entretanto, as pessoas me perguntam se as fotos foram feitas aqui ou na África, porque há uma visão geral de que o corpo negro é subalternizado, jogado nas ruas, que é o corpo de trabalhadores que continuam sofrendo com toda essa carga dos corpos que nos antecederam, que foram traficados, violentados pela escravidão. Quando congelo o momento, percebo que nossa ancestralidade transcende a África, mas ainda permanece aqui. Esse é o corpo da diáspora negra.

Como o corpo negro é abordado na fotografia brasileira, de modo geral, e no seu trabalho, em particular? De forma geral, vejo um trabalho muito respeitoso dos fotógrafos negros que fazem esse tipo de documentação. Eu tenho essa preocupação de fazer um trabalho que traga informação, que seja afirmativo, que possa ser apresentado nas salas de aula para gerar uma discussão sobre a história do povo negro. É minha obrigação ter um olhar mais criterioso do que os fotógrafos que abordam a moda, a publicidade, porque minha preocupação é com a questão da memória, da história. Eu luto contra o extermínio dos corpos negros, a partir da consciência da identidade. Quando eu fotografo um rapaz cheio de anéis, vejo que toda a riqueza e nobreza dele estão representadas ali. É nesse campo que eu trabalho.

Vendedor de temperos da feira de São Joaquim, Salvador, 1992

Você classificaria sua fotografia como ativista?

Não. Prefiro chamar de fotografia afirmativa. Acho que isso começou a surtir efeito, especialmente entre os novos fotógrafos. Nós nos tornamos referência para outros arquivos, como o Arquivo Atlântico, uma experiência inspirada no Zumví.

Uma das finalidades do seu trabalho é dar visibilidade ao povo preto, mas há uma linguagem própria para que as imagens cumpram esse objetivo?

Meu trabalho é um arquivo, mas não fotografo para que ele fique guardado. Preciso trazer à luz a grande luta de homens e mulheres, em imagens alusivas às pautas que valorizam os negros. É minha função erguer personagens como Zumbi dos Palmares e as guerreiras Dandara e Zeferina, que ficaram esquecidos pela historiografia oficial. É trazer as manifestações em favor das cotas raciais em 2005, pois nessa época não havia nem 1% de estudantes negros na Universidade Federal da Bahia. É mostrar Chico Tomé, no município de Rio das Rãs, o primeiro quilombo a ser reconhecido na Bahia. São as bandeiras que a minha fotografia levanta. Fotografo os blocos afro e afoxé no Carnaval desde os anos 1980. Eles têm mudado a cara de Salvador ao longo desses 40 anos. O mesmo acontece com a feira de São Joaquim. Procuro criar uma memória do pós-Abolição, fotografando esse tema nas ruas. É nesses trabalhos que me sinto representado.

Você acompanha a fotografia preta, ou seja, feita por pretos e pretas ou que tenham o Brasil preto como tema?

Não tenho acompanhado muito o movimento de fotógrafos negros. Quando comecei, não se viam pretos com câmera fotográfica, mas hoje está surgindo uma geração de fotógrafos negros e negras muito jovens, uma safra boa, que vai nos surpreender. Gostaria de citar três nomes aqui da Bahia: Alberto Lima, que já tem um tempo de carreira e faz um trabalho ligado aos blocos afro e com personalidades negras; Helen Salomão, que tem um trabalho de muita visibilidade com mulheres negras gordas; e Juh Almeida*, que trabalha com estética negra e está dirigindo documentários. Existem muitos outros, que atuam principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Você observa um olhar negro nas imagens desses fotógrafos? Vou repetir o que dizia o fotógrafo Januário Garcia: não existe uma fotografia negra, existe um olhar negro. Eu acuso o racismo de tudo o que vi, enquanto um olhar branco talvez não saiba o que eu sei. Constato isso nas imagens. Agora, com certa projeção, com galeristas ligando e interessando-se pelo meu trabalho, percebo que essas visões que consigo colocar nas imagens já estavam formadas na minha cabeça e no meu olhar.

Jovem Baiana na Festa da lavagem do Bonfim, Salvador, 2008*
Desfile de Carnaval do bloco Afro Olodum, com o tema “Os tesouros de Tutancâmon”, no largo do Pelourinho, Salvador, 1993
Protesto da irmandade da igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, no largo do Pelourinho, 2 de julho, dia da Independência da Bahia, Salvador, 2012

Há curadores interessados na perspectiva decolonial de seu trabalho?

Desde 2018, tenho sido convidado para apresentar meu trabalho em projetos realizados por curadores negros. Diane Lima me levou para o Festival do Valongo, em Santos (sp). Foi a primeira vez que saí da Bahia. Ela também me levou para a Trienal de Artes no Sesc Sorocaba, em 2021. Tina Melo fez a curadoria da exposição Memórias de resistências negras, sobre os 40 anos do Movimento Negro, no Museu Afro da Universidade Federal da Bahia, baseada no Arquivo Zumví. Ela também editou nosso catálogo, que foi lançado com recursos da lei Aldir Blanc. Recentemente, Hélio Menezes me convidou para integrar trabalhos à exposição Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros, no Instituto Moreira Salles, em São Paulo. Isso é muito importante, porque os curadores negros também estão interessados por nossas memórias.

Percebo uma quebra na hegemonia a partir do momento em que o trabalho de pessoas pretas é mostrado. Só de dez anos para cá eu consegui expor mais. Isso mudou minhas expectativas, porque eu achava que fotografia de preto não se vendia para galerias de arte. Até então, só usavam a minha fotografia para ilustração de livros e coisas simples.

É inegável a importância histórica do seu acervo fotográfico. Se você pudesse fazer uma curadoria, que recortes gostaria de propor?

Eu escolheria os blocos afro na Bahia e a estética negra, pela história desses temas que já tenho desenhada na minha cabeça. Como já se passaram quase 40 anos, essa exposição mostraria as mudanças nos eventos e nas pessoas na cidade de Salvador. Temos o sonho de criar um museu de memórias da resistência negra, onde poderíamos desenvolver projetos curatoriais próprios.

Rapaz trabalhando de “cordeiro”, vaga temporária criada durante o Carnaval para os negros segurarem as cordas dos blocos para os brancos brincarem, Salvador, 1992

Quais as necessidades e os desafios para a manutenção do Zumví?

As necessidades são muitas, e os desafios, também. Especialistas em acervos estão nos ajudando a entender como profissionalizar o acesso ao arquivo. Recentemente recebemos recursos provenientes de um edital da Secretaria de Cultura da Bahia que permitirão a digitalização de 15 mil fotogramas. Com isso, vamos contratar estagiários para uma rotina de higienização, catalogação, armazenamento e tratamento das imagens. Ainda precisamos de um espaço adequado, pois tudo continua armazenado na minha residência, um lugar pequeno e sem as condições apropriadas. Um financiamento coletivo permitiu a locação de um espaço no bairro soteropolitano do Santo Antônio para a comercialização de produtos, prestação de serviços, recepção do público e montagem de exposições. Fotografias, cartões-postais, camisetas, adesivos também podem ser comprados na loja virtual, disponível no site. Também gostaríamos de criar o Chá de Memória e convidar as pessoas que foram fotografadas para contar suas histórias. Mas tudo depende de recursos financeiros. Esperamos que isso venha a acontecer. ///

*A versão agora publicada no site da revista ZUM retifica trechos publicados originalmente na edição impressa da ZUM #22

Denise Camargo (São Paulo, SP) é curadora, professora e pesquisadora da cultura brasileira voltada às práticas e saberes afro-brasileiros. É doutora em artes (IA/Unicamp) e pós-graduada pela Universidade de Navarra, na Espanha.

Zumví Arquivo Afro Fotográfico é uma instituição idealizada pelos fotógrafos Lázaro Roberto, Aldemar Marques e Raimundo Monteiro, e mantida por Roberto desde 1990. O arquivo reúne vasto acervo de imagens de fotógrafos afrodescendentes comprometidos com o registro dos movimentos políticos e artísticos negros, especialmente na Bahia, nos últimos 30 anos.

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O Zumví fica na Ladeira do Carmo, 28. Santo Antônio, Salvador – BA. Site: zumvi.com.br

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