Revista ZUM 21

A visão do manto

Glicéria Tupinambá Publicado em: 7 de dezembro de 2021

Glicéria (Célia) Tupinambá veste um dos mantos tecidos por ela, ainda inacabado, no território indígena de Olivença, em Serra do Padeiro, no sul da Bahia. Foto: Fernanda Liberti

A história do manto tupinambá é marcada pelas imagens. Vejo a nossa cultura como um pote jogado num lajedo, os pedaços espalhados em tudo o que é lugar. Agora temos de montar feito um quebra-cabeça.

Nós temos o manto na memória dos nossos cantos. Através deles, conseguimos reconstruir nossa identidade, entender um pouco a nossa história e projetar o futuro. Tem um canto assim:

O índio subiu a serra todo coberto de pena

O índio subiu a serra todo coberto de pena

Ele foi, mas ele é

É o rei da jurema.

Então o pessoal canta bem forte:

O tupinambá subiu a serra todo coberto de pena

O tupinambá subiu a serra todo coberto de pena

Ele foi, mas ele é

É o rei da jurema.

Nesse canto, entendemos que o índio tupinambá está todo coberto de penas. Mas como? Só se for com o manto. Comecei a entender que o manto está vivo em nossa memória. Sempre ouvimos falar dele. O manto nunca deixou de existir em nós.

Em 2000, houve uma mobilização do povo tupinambá pelo reconhecimento do território de Olivença, e isso coincide com a vinda de um manto da Dinamarca para a Mostra do redescobrimento, em São Paulo. Dona Nivalda (seu nome indígena é Amotara, mãe da cacica Valdelice), que tinha 67 anos, caminhou pela exposição, sem guia, até parar diante de um artefato: “Esse é o manto tupinambá”. Logo depois, dona Nivalda pediu o repatriamento do manto à aldeia. Isso teve uma repercussão muito grande, deu visibilidade ao povo e desencadeou o processo de demarcação do território. Estamos nessa luta até hoje.

Nivalda Amaral de Jesus observa o manto tupinambá na Mostra do redescobrimento, realizada em São Paulo, em 2000. Foto: Flavio Florido/Folhapress

Todo ano fazemos a Festa de Rei São Sebastião, nossa virada de ano religiosa, em que o encantado vem e diz como serão as estações, os plantios, nossa vivência sobre a terra naquele ano. Em 2006, resolvi fazer o manto para presentear os encantados tupinambás. Mas como? Ainda não tinha visto a imagem, mas a imaginava, e tinha conversado com meu pai, que dominava a arte da tecelagem do jererê, a rede tarrafa, a linha, o fuso, a agulha e tudo o mais. Ele sabia produzir, e contei minha ideia. Ele então fez a agulha, depois o cordão.

Nesse período, a professora Patrícia Navarro, da Universidade Estadual da Bahia, veio dar aulas de história e antropologia na aldeia e trouxe um retro- projetor bem antigo. Ela tinha umas fotografias do manto e as projetou na parede. Fiquei namorando aquela imagem, curtindo o belo e bonito, e procurei olhar as tramas. A imagem era muito ruim, mas eu entendia a trama. Então peguei uma malha, tiramos as medidas e batemos o prego. Descemos a malha, só que não fizemos o ponto crescente, por isso ele não ficou espalhado como devia.

Ory veste uma carapuça feita pela mãe, Célia, a partir da fotografia de um artefato encontrado no Museu Nacional da Dinamarca. Foto: Célia Tupinambá

Fomos ao terreiro, perseguimos os patos e os gansos, e retiramos as penas que estavam maduras. E fomos montar esse primeiro manto. A professora explicou que um manto tinha cerca de 10 mil penas de guará, e as nossas não chegavam nem a mil. Como não tínhamos penas o bastante, fizemos o manto na forma de cocar. Na foto, tinha umas coisas penduradas. Contei sete balangodangos e apliquei-os no manto. Nós o finalizamos para a Festa de Rei São Sebastião.

O encantado recebeu o presente, e a festa foi muito bonita. Então, recebemos um convite de João Pacheco, do Museu Nacional da UFRJ, que ia realizar a exposição Os primeiros brasileiros, em Fortaleza (CE), em 2007. Estavam coletando peças nas comunidades indígenas e acharam interessante a questão do manto. O encantado os autorizou a levarem o manto, na condição de que eu fizesse mais três para a aldeia. Fiquei preocupada, mas ele falou que tudo tem seu tempo, que eu não tivesse pressa.

O manto foi então para a exposição, e o encantado me deixou a missão de confeccionar mais três. Eu não sabia como, pois precisaria de muitas penas. Houve a exposição, mas não consegui desenvolver nenhum manto. Vontade eu tinha, estava viva dentro de mim, mas não tinha os meios. Então, parei.

Em 2019, a pesquisadora Nathalie Le Bouler, da Universidade Federal da Bahia, fez um convite para darmos uma palestra na França sobre os não humanos, os encantados. Jéssica, minha sobrinha, apresentaria um trabalho de fotografias. Eu ainda não sabia que na Europa tinha um manto tupinambá, não passava pela minha cabeça, aqui internet é difícil. Enfim, Nathalie me contou que o manto estava numa reserva no Museu do Quai Branly e que, além dele, havia uma borduna, então pediu autorização para uma visita nossa. Duas tupinambás na Europa, elas tinham que ver o manto!

Chegando ao museu, na porta, fomos revistadas e passamos por um detector de metal. Descemos de elevador, passamos por outra porta, outro elevador, aí uma pessoa olhou os documentos, conferiu no sistema, passamos por mais um segurança e outra porta até chegar ao objeto. Finalmente, chegamos.

Manto tupinambá na reserva técnica do Museu do Quai Branly, em Paris, na França. Foto: Lívia Melzi

Entrei numa dimensão em que eu estava no presente e no passado, estava em ebulição. Sabe quando as mãos adormecem e sentimos um formigamento? Meu corpo inteiro ficou assim. Eu estava com o corpo presente e a alma ausente. Nathalie me registrava com a câmera. Se eu fechasse os olhos naquele momento, via as mulheres sentadas, as pessoas com penas ao redor. Vi alguém fazendo a malha do manto. O que mais me chamou a atenção é que eram mulheres. Eu estava naquele lugar, mas, ao mesmo tempo, em outro, uma confusão. Eu estava numa cosmoagonia. Meu corpo sentia cócegas, e, quando fechava os olhos, eu voltava para aquele tempo. Me vinham três imagens: uma da mulher na aldeia, sentada, confeccionando o manto; outra do manto no navio; e uma terceira do manto saindo da embarcação, passando pelo cais e caminhando em direção a uma viela, e, nessa rua escura, ele sumia, desaparecia. Tinha essas três imagens na minha cosmoagonia.

Só que eu estava ali para ver o manto, como se colocavam as penas, as cores e as variedades – de lobos-guarás, de araras, de periquitos. A malha é complexa, não tem como ver a base principal, ela é apagada. Mas, no capuz, era possível visualizá-la, porque ele tinha perdido mais penas. Dava para ver que era de algodão artesanal, e, em cima, tinha outra malha que lembrava muito a da linha do tucum, que é feita da palha, com linha vegetal diretamente da folha, e não do algodão do fruto, que gera aquela lã. Vieram todas essas informações e fui percebendo que esses materiais se achavam na minha comunidade, que essa linha tinha essa durabilidade porque fora encerada com a cera das abelhas jataí, tiúba, uruçu.

Foi muito bom estar com o manto. Fiquei com ele por quase uma hora, e decidi que quando chegasse em casa iria reproduzi-lo. Vim embora e fiquei tentando amadurecer isso.

Quando anunciaram que o cacique Babau ia receber o título de doutor honoris causa da Universidade Estadual da Bahia por seu conhecimento indígena, em 2019, o pessoal começou a discutir como ele iria vestido para a cerimônia. Nada mais justo do que ir trajado como diz a cultura. Mas havia o protocolo da universidade, ele tinha que se formar de capelo e beca, então pediram as medidas para mandar confeccioná-los. O pessoal ficou negociando para ele usar nem que fosse o cocar, mas só queriam da forma deles, e nada dos nossos trajes, da nossa identidade. Aí eu disse para o Agnaldo Pataxó: “Deixamos eles fazerem o protocolo deles, e ao sair da colação fazemos um corredor com nossos parentes indígenas e colocamos o manto nele, e vamos ver se o mais interessante para os jornais será a fotografia do cacique de capelo e beca ou a do cacique com o manto tupinambá”. Ele pediu autorização ao cacique, que a concedeu, e meti bronca.

Encerei o cordão, estiquei a linha e a armei no gaba- rito, mas já era tarde da noite, e eu tinha que dar aula. Procurei a tesoura para cortar e não achei, aí quebrei tudo na mão, estiquei metade e fui dar aula. Ficou em casa meu menino, Ory, que tinha de dois para três anos de idade. Ele nunca foi de traquinar e nem de mexer nas coisas. Quando cheguei, fui logo para o gabarito e vi que alguma coisa estava estranha no cordão, estava tudo cortado. Quando Ory acordou, perguntei quem tinha cortado o cordão. “Você achou a tesoura, Ory?” “Eu não, mamãe, a tesoura falou comigo, aí ela que cortou o manto, não fui eu, não, a tesoura cortou sozinha.” Não briguei com ele, só tivemos essa conversa.

Eu me deitei no sofá e fiquei pensando nisso, de a tesoura ter falado com ele. Fui lá e estiquei o cordão todinho, e conforme fui tramando, vi que estava erra- da, porque não estava dando o nó, estava tudo liso, parecendo uma peneira. Parei, fiquei no vácuo, sem saber para onde ir. Queria fazer na mesma proporção da imagem que eu tinha visto lá no museu, não queria fazer do jeito que tinha feito antes.

Em março de 2020, o professor Augustin de Tugny me convidou para falar dos artefatos indígenas num seminário na Universidade Federal do Sul da Bahia, pois eu tinha feito o manto que estava na exposição Os primeiros brasileiros. Já tinha recuperado, por meio das imagens de Hans Staden, o enduape, aquela rosa de pena de ema que seria a araçoia, e também tinha conseguido fazer a tiara. Peguei esse material e fui para a universidade dar a aula.

Quando o professor começou a mostrar as imagens do manto – eu não sabia que na Europa existiam 11 mantos tupinambás; o único que eu conhecia era o da reserva do Museu do Quai Branly –, uma das que mais me chamaram a atenção foi a do manto que está em Basileia. É uma foto em preto e branco que mostra mais detalhadamente a trama, porque  não tem mais as penas. Dá para ver perfeitamente que o ponto é um losango. Ele estava bem desfeito, e o pessoal sofre pelo desfeito, mas era a solução do meu problema! Augustin me falou que a pesquisadora Lívia Melzi estava tirando fotos dos mantos em todas essas exposições e nos museus. Ele me mostrou um que está na Alemanha, um na Dinamarca – parece que são cinco em Copenhague. Foi me mostrando esses belos mantos. Diferentemente de 2006, quando a gente viu a imagem pelo retroprojetor, agora as imagens eram digitais: dava para ampliar e ver perfeitamente os pontos!

Quando voltei para a aldeia, levei um rolo de cordão bem grande para minha madrinha me ensinar a fazer o ponto do jererê, porque não sei nem fazer crochê. Ela tem cerca de 90 anos e ainda faz muito bem o ponto. Mostrei as imagens que o professor Augustin deixou no computador de uma princesa que usava o manto forrado – minha madrinha achou até que era uma santa. Ela olhou para mim e perguntou se eu já tinha sonhado. “Você já visualizou?” Então me disse: “Não vou lhe ensinar porque você já sabe, pode ir fazer!”. E agora? A pessoa que iria me ensinar, pegar na minha mão, explicar todo o processo, só me disse: “Volte para casa e faça”. Já que ela disse, acreditei.

A luta pelo território aqui é pesada, a criminalização das lideranças é grande. Existia um plano para matar o cacique. E nós conseguimos, nessa quarentena, fechar as estradas BA-668 e BA-669, colocamos barreiras sanitárias. Isso deu uma calmaria na comunidade. Além disso, as aulas foram suspensas, e voltei a trabalhar na roça com minha família. Absorver isso de estar dentro da comunidade, com o ambiente tranquilo, foi muito importante para fazer o manto, porque o ambiente teve como se comunicar comigo. Aí eu fiz a malha, consegui passar dessa fase. O mais difícil ia ser colocar as penas. As meninas estavam com um projeto de criação de galinhas e foram me dando as penas. Mãinha colhia e elas me davam. Como minha madrinha disse que eu já sabia como fazer, resolvi não controlar, segui o fluxo. Mãinha trouxe um saco com umas 600 penas, disse que dava para fazer o manto. Comecei a limpar, ajeitar e aplicar, mas deu apenas para algumas linhas, porque cada uma pegava 110 penas. Fiz uma estimativa de que faltavam 3.500 penas.

Aí vieram os sonhos. Uma noite, o manto me disse que o mais difícil não era conseguir as penas, e sim o acabamento do capuz. Acordei achando que isso era coisa da minha cabeça. Mas as penas foram surgindo. Os pássaros vieram e conversaram comigo em sonho, e meu irmão viu as penas que o gavião tinha deixado para mim no lajedo, lá ao pé da serra. Sem falar que os gatos daqui de casa traziam vários pássaros: o canário-do-mato, o sabiá-bico-de-osso. Eu colhia as penas, e eles comiam os passarinhos. Meu filho pequeno se sentava perto de mim e pedia para eu contar a história do manto, pegava o maracá e ficava cantando para nós. Quando saía para o terrei- ro e via uma pena, trazia. Foi tudo feito assim nessa cosmologia, com o envolvimento da comunidade.

Então, tive outro sonho: o manto apareceu e me perguntou como eu o estava fazendo. Falei que estava aplicando as penas de galinha, de galo, de peru, de pavão, de araponga, de aracuã, fui falando das variedades de penas que eu tinha. E estou deixando as penas de gavião para colocar no capuz. Falei da virtude do gavião, que o gavião voa, plana no ar, foca a presa, mergulha e a pega – o gavião é uma maravilha, ele me atrai por isso. Ele falou assim: “Você já parou para pensar que uma hora o gavião tem que pousar? E quando ele pousar e estiver cercado, como ele vai se livrar? Então, você precisa colocar umas penas de pássaros terrestres.” Não falou quais seriam os pássaros, mas disse que eram terrestres, pois, no momento que você os perde de vista, eles se camuflam e somem, ninguém consegue capturá-los. Era necessário também ter essa virtude, saber se tornar um ambiente, desaparecer e não se tornar presa.

Célia Tupinambá durante a confecção do segundo manto, que viria a ser usado pelo cacique Babau. Foto: Fernanda Liberti

Acordei desse sonho e fui contar para mãinha, porque, toda vez que alguém sonha, tem que ir até a cozinha da velha Maria fazer o relato, e o sonho não fazia sentido para mim. Mãinha disse que o manto tinha razão, e começou a falar dos pássaros tururim, lambu, perdiz, saracura, foi citando diversas aves que têm essa destreza. O cacique Babau falou que ia arrumar um passarinho para mim. Fizeram uma arapuca e pegaram o pássaro, tiraram as penas e o soltaram, era para ser feito assim. Para fazer o manto, não é preciso destruir ou matar, a gente colhe as penas no período de troca. Se não estiverem maduras, não servem.

Agora eu já tinha as penas, mas não tinha nenhuma pista de como aplicá-las, pois no capuz o ponto é um pouco maior. Fico pensando nisso deitada na rede, olhando para os pés. Tem que estar na tranquilidade. E não é que o meu dedão dá a medida? Prendi no pé e comecei o mesmo processo que tinha usado para fazer a malha da gola. Deu certo.

Faltava a parte de cima, que chamo de peteca, feita com a pena do rabo do pássaro. Mais uma vez, as fotografias… Tem uma imagem da realeza no Carnaval que mostra uma peteca bem aberta em cima. Teria que ter esse efeito, não poderia ser tão justa. E agora? “Quem lhe ensinou a fazer o manto também vai ensinar a fazer o acabamento”, mãinha disse. Voltei a dormir.

Sonhei que estava deitada na rede, chegou uma pessoa e jogou um monte de sementes de jequitibá na minha cara: “Olhe aí o que você está precisando”. E me ensinaram como se fazia, como cada semente deveria ser colocada na linha, e as penas, amarradas.

Quando acordei, fui procurar mãinha novamente ao pé do fogão de lenha, e ela me disse que fazia sentido: “Vá lá, mande ver”. E eu vim.

Um tempo atrás, eu e um ancião chamado Felisberto salvamos dos madeireiros um pé de jequitibá que tem na serra lá em cima. Ele tinha catado as sementes e me dado, mas eu nem sabia mais onde estavam guardadas. Nesse sonho, lembrei. Não é que couberam direitinho? As penas ficaram com o efeito que eu tinha visto na fotografia de Lívia. Finalizei o capuz, prendi na outra malha, e o manto já estava pronto para ser usado pelo cacique na formatura.

Até agora, pelas imagens que conheço, só vemos homens usando os mantos, mas trago essa intuição de que eles têm uma energia feminina, que foram feitos pelas mulheres e que elas também podem usá-los. Quando faço a visão do retorno do manto, compreendendo todo esse processo, vejo que quem vai identificar o manto no Brasil é dona Nivalda, uma mulher. Quem vai tentar reproduzi-lo, sou eu. As imagens que uso são capturadas por outra mulher, Lívia. Com toda essa energia feminina, essas intrigas e conversas que tenho com o manto, estava certa de que as mulheres também o usavam.

Estava com esse problema na cabeça quando a Fernanda Liberti entrou em contato comigo e matou a charada: ela me deu o livro O Rio antes do Rio, que tem na capa uma mulher tupinambá usando o manto! Eram três gravuras datadas de 1572, feitas por Hans Weigel e Jost Amman: uma de um homem usando o manto; outra de uma mulher vestindo o manto completo; e a última de um homem com ele só no pescoço, com o cocar e a arupema. Eu não disse que o manto fala comigo? O pessoal fala muito do inimigo capturado para o ritual antropofágico. Não sei, pois só existe a imagem que os jesuítas descreveram. Eu via o manto na roda do fogo, imagino seis mulheres saindo cobertas com ele da oca para dançar em torno da fogueira, não do inimigo. Mas eles tinham outra intenção.

Tem uma cena de Hans Staden com várias pessoas vestindo mantos no entorno da oca, enquanto as mulheres servem o cauim. Essa imagem é muito bonita, não estão dançando em torno do inimigo. Então, existem outras formas, e o vermelho e o amarelo eram para se confundir com o fogo, para ser o pássaro do fogo, flamejado pelo fogo. Uma festa, uma alegria.

Quando abro um livro, minha leitura é diferente da de outras pessoas, parece que ressalta algumas palavras. Tipo “majé”. Vou ler um livro e aparece essa palavra, que segundo os jesuítas era usada, mas desapareceu. Aí vou ecoando “majé”, e todo mundo toma um choque, porque nunca se ouviu falar disso. Insisto em dizer que existe e que são as mulheres que dominam esse conhecimento.

Imagem de gravura feita por Hans Weigel e Jost Amman em 1572, que representa um homem e uma mulher indígenas usando o manto tupinambá. Reprodução do livro O Rio antes do Rio, de Rafael Freitas da Silva (Relicário, 2019)

Pelos relatos dos viajantes, eles só tiveram contato com homens. Eles tinham uma intenção, um olhar. Não vieram ver e descrever como as mulheres se comportavam, só as viam na mão de obra, na cozinha, trabalhando, ou com aquele olhar de sexualidade. Eu sabia que tinha algo a mais, não era apenas isso. Então, descobri que existe a majé, que é uma espécie de divindade que vai fazer a separação dos casais de pássaros para poder manter sua existência, segundo a cosmovisão tupinambá.

Quando leio essa palavra, sinto que preciso ecoar o nome de nossos deuses, que nossos pajés e majés são semideuses e que o manto é uma personalidade, um presente do céu para a terra, e aqueles que os vestem têm contato entre esses dois mundos. A essas pessoas, responsáveis pela cura e por guiar, era permitido usar o manto.

É uma coisa que está ligada ao território, à nossa espiritualidade e aos saberes de toda a comunidade. Tenho várias angústias, várias perguntas que surgem e que vou tentando responder. Essa palavra “majé” tem que existir. As mulheres tupinambá usavam o manto, sim. As crianças podiam ser enroladas neles porque eram quentes, e no inverno é muito frio, e nós não andávamos pelados, isso é do imaginário do outro. Nós tínhamos muitas penas, éramos um povo muito diverso e colorido, e, ao fazer o manto, percebi que os tupinambás reproduziam a pele do pássaro. Só vai saber quem faz. Vamos sanando nossas dúvidas com as imagens, o pessoal manda fotografias, vídeos, que são de grande valia para mim, porque cada uma traz uma referência, uma linguagem.

Vamos trazer outra visão para o manto, as cores da terra, da natureza, das folhas, e ele vai estar no meio ambiente. Vamos trazer o manto em movimento, não o manto na cor do guará que está lá adormecido. Vamos trazer um manto vivo, com essa nova roupagem, investido desse olhar político, vestígio de algo que não acabou. É como o açúcar, que você coloca na água, mexe e ele desaparece, mas ainda está presente quando se prova. O manto veio para ter esse impacto, precisa ressoar alguma coisa a mais que ainda não desvendei, mas sei que precisa existir e ecoar o nome dos nossos deuses.

Chamo todo esse processo de feitura do manto através das fotografias e dos sonhos de uma cosmotécnica. Não foi alguém que me pegou pela mão para me ensinar. Uso uma linha contínua, não quebro a linha; não uso a agulha, e sim as mãos e a paleta para ter a medida do ponto da malha e saber a quantidade de penas. As pessoas perguntam se sou a artista, e respondo que foi uma coisa coletiva, cosmológica, da comunidade. Fui o instrumento, as mãos necessárias para que o manto voltasse a existir.

As pessoas vão para o museu para ver o belo e imaginam seu valor inestimável. O manto lá é algo intocável, apenas para se visualizar naquele espaço frio, onde está sem vida, não tem memória, é uma peça usada. Para nós, tupinambás, o manto tem que estar em movimento, tem uma personalidade, uma vontade, uma forma de ser e de estar no ambiente.

Queria ver o manto em movimento, então fiz fotos dele com o drone, fomos para o rio, para a mata, entramos na roça de milho. Fui experimentar o manto, girei com ele, fiz aquele corrupio. Foi lindo ver meu filho vindo em minha direção e me abraçando enquanto eu usava o manto. Deu aquele sentido de proteção. Gostei de aprender que a foto tem um papel, uma intenção, uma linguagem – eu nunca tinha pensado por esse lado. Pensava no registro daquele tempo e daquele momento, nunca tinha pensado na intenção. E o manto me diz que é possível ser diferente daquele lá parado, estagnado, congelado no tempo, como uma visão do passado que não é mais possível recuperar.

Sempre perguntam se desejo repatriar o manto. O pessoal da Dinamarca morre de medo dos tupinambás por conta de dona Nivalda ter feito aquela ação política de pedir o repatriamento. Nós, de Serra do Padeiro, temos outra visão, entendemos que os encantados não querem. Se quisessem, tudo fica- ria fácil. Os encantados me pediram para fazer o manto e criaram meios e formas para que ele voltasse a viver. Tupinambá julgou e condenou os europeus à pena máxima, que é manter um material tão frágil por séculos e séculos – e são felizes por cumprir essa pena! O manto mostra as pegadas dos lugares por onde os tupinambás passaram, e os europeus estão condenados a preservar nossa cultura. O que acho que eles devem fazer é flexibilizar, facilitar nossa ida até lá.

Célia e seu filho Eruthawã sob o manto tupinambá na aldeia Serra do Padeiro, Bahia. Foto: Fernanda Liberti

Quero ver o manto porque acho que ele tem algo a me dizer, tem algo que absorveu, guardou e está nele, e talvez chegando lá – não é certeza, não é exato –, ele me conte, desperte em mim a mesma dimensão que tive com o primeiro. Pois o manto veio comigo. Ele está lá, mas veio comigo. Consegui trazê-lo de volta, e não apenas acessar o belo, mas restabelecer essa linha que tinha sido quebrada há tanto tempo. Poderia haver outras pessoas fazendo isso.

Estava lendo alguns livros e entendi que o nosso povo foi escravizado, fomos tirados de nossas terras, como os negros, e levados para outro continente, sem poder voltar para o Brasil nunca mais. Nosso povo se perdeu na imensidão, mas o manto não, é um registro, está lá parado, e eles são obrigados a cuidar dele, a preservá-lo, gastando bilhões. Se a gente fosse pedir o manto de volta, seria para fazê-lo retornar à natureza, para não mais existir, porque a função dele é voltar para a natureza. Estando lá, é a pena, e, se o trouxermos de volta, a gente perdoou – não temos a intenção de perdoar. É só o tempo, o tempo que foi estabelecido pela lei tupinambá. Então, eles vão continuar carregando essa pena para o resto da vida, se depender dos tupinambás da Serra do Padeiro. Nós não queremos dar esse perdão. ///

Glicéria Tupinambá (Terra Indígena Tupinambá de Olivença, BA, 1982) é professora e pesquisadora, graduanda em licenciatura intercultural indígena no IFBA. Foi presidenta da Associação dos Índios Tupinambá da Serra do Padeiro (AITSP), membra da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI) e representante de seu povo junto à Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres (ONU Mulheres).

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