A voz do corpo mudo
Publicado em: 4 de dezembro de 2017A menina está sentada num chão de terra batida, à sombra de uma árvore. Tem o cabelo trançado e veste uma blusa e uma saia coloridas. Está colocada de costas numa posição pouco espontânea. Parece ter-lhe sido explicado como deveria posar. Não vemos o seu rosto. A sombra de galhos floridos encontra a sua mão aberta no chão como uma outra flor.
O menino está de perfil. Veste uns calções ou umas calças velhos. Bebe leite com voracidade de uma garrafa de plástico. Vemos parte do seu rosto, concentrado no que está a fazer. Também não nos encara. O leite escorre sobre o seu pescoço e tinge-lhe a pele cor de chocolate, desenhando nas suas costas uma figura parecida com a raiz de uma árvore.
O menino e a menina existem aos nossos olhos como abstração. Não têm rosto, história ou nome. Eles nos são apresentados em imagens mudas, como todas, e escarnecem da nossa curiosidade. Nada nos dizem. Ainda agora estavam vivos, supomos, e depressa nos assaltam como dois fantasmas. A compositora dos retratos está mais presente do que eles. Vemos as suas directivas na posição do corpo da menina e no desenho do leite nas costas do menino. O olho da fotógrafa holandesa Viviane Sassen está por todo lado na postura dos seus corpos, no desenho da cor, na exuberância ou na pobreza pensada do guarda-roupa.
E, contudo, a ausência de espontaneidade, a mão da compositora, não escamoteia as perguntas: Quem são eles? O que têm a dizer-nos? Qual é a sua história? Não são espantalhos. Antes, irradiam perguntas, para lá da mudez da fotografia, que não chega a conseguir aquietar-nos.
Nas séries Flamboya (2008) e Parasomnia (2011), como em trabalhos posteriores, Sassen, que adquiriu notabilidade global por seu trabalho com grandes casas de moda, como Stella McCartney, Miu Miu e Louis Vuitton, parece jogar com as expectativas que temos a respeito do corpo dos seus sujeitos. Resultando de viagens à África e do retorno ao Quênia, onde Sassen passou a infância, os corpos negros dos protagonistas de ambas as séries são políticos, antes ainda de serem corpos humanos aos quais pertence uma história pessoal.
Frequentemente, os seus rostos estão mergulhados na sombra, envoltos em fumo branco, tapados, fora do campo de visão, obliterados, apenas sugeridos, dissimulados por luzes coloridas – e os corpos, envolvidos em composições anatómicas coreografadas, como na foto de dois homens suspensos num abraço, ou na outra, em que um rapaz de calças brancas lava um carro de caixa aberta.
Em 2012, o fotógrafo americano Aaron Schuman recordou as afirmações de Sassen numa palestra na Bienal de Fotografia de Brighton de 2010, na qual uma seleção da série Flamboya foi mostrada: “A sombra torna uma pessoa uma espécie de símbolo. Não é mais um indivíduo; ele ou ela representa uma ideia. Por isso tem muito mais que ver com o universal do que com o pessoal. É acerca daquilo que não vemos”.
Por mais objetável que seja tratar o corpo humano como a representação de uma ideia, a afirmação de Sassen não escamoteia o facto de que o alcance das suas imagens só está contido em parte nas suas intenções. O corpo humano é uma extraordinária armadilha contra os usos artísticos e políticos que dele se possam fazer, para não falar da forma como frequentemente as leituras de uma imagem ultrapassam, como qualquer leitura, o propósito do seu autor. O corpo humano fala mesmo quando o queríamos calado e ao nosso serviço. Ao contrário das fotografias de natureza (também praticadas por Sassen), as pessoas por ela retratadas apenas dizem o que querem dizer, falando numa língua que nem sempre entendemos, idioma que ao mesmo tempo supõe e dispensa a tradição.
Se muitas vezes lemos nas imagens o que quem as fez não pensou em dizer com elas, por outro lado – e precisamente porque uma pessoa não é um objecto –, a figura humana (patente no trabalho de Sassen sob a forma de modelos quenianos, ganenses, ugandenses, zambienses e tanzanianos) resiste à despersonalização e inicia uma torrente de perguntas e intimações. Mostrar pessoas como se fossem coisas ou como se fossem ideias é uma missão impossível, porque sua presença não se conforma a legendas, declarações ou prefácios. Ela repele a ingenuidade e as expectativas grandiosas tanto quanto o corpo humano trai o que o olho humano quer fazer dele. Se a menina à sombra de uma árvore nos afronta como uma natureza-morta, a sua existência incita-nos a ouvir essa natureza-morta falar, mesmo que ela escolha permanecer em silêncio. Não está completamente na mão do fotógrafo fazer o que quer de um sujeito fotográfico. Pelo contrário, ele opera contra sua resistência, deixando-se render, manobrar, manipular.
A história dos modelos de Sassen os ultrapassa, nos ultrapassa – nós que contemplamos a sua imagem –, diante da nostalgia de Sassen pela sua infância (por definição, intransmissível) e do vórtice de sujidade e candura com que escolhemos apaziguar o que seria a nossa responsabilidade por séculos de representações degradantes de sujeitos africanos pelo Ocidente.
Mais depressa perguntamo-nos qual é o nosso direito em relação à apropriação desses corpos e à sua representação do que nos perguntamos qual é a sua história, de onde vêm e que mundo carregam.
Não é apenas uma história privada – com os seus acidentes, a arena da sua intimidade, os seus falhanços, aventuras, deslizes e glórias modestas, paraísos perdidos – aquilo que negamos a uma pessoa quando lhe negamos a sua humanidade, mas também o acesso à beleza (ainda que não saibamos dizer onde ela reside nem apontar para ela). As nossas filiações reais ou fictícias influenciam tanto o nosso olhar como a história colectiva e a história das imagens.
O corpo humano é um corpo político porque nenhum corpo humano é o primeiro corpo humano que existiu, e todos supõem a história de um equilíbrio desigual de poderes. Nenhum corpo humano, porém, é um corpo apenas político, revela-nos Sassen, seja ou não essa a sua intenção.
Repelir a morte
Na história das imagens, poucas vezes o corpo negro goza o direito de falar apenas quando quer, de escolher o que quer dizer, ou – mais decisivamente – de nada dizer, se assim o entender. Nós o insuflamos com o nosso olhar manchado, com a simbologia tentadora dos nossos ajustes de contas com o passado, e não vemos nem ouvimos para além do nosso reflexo, tornando-o mercadoria visual, símbolo da nossa incapacidade de deixar que ele nada nos diga – e que exista independentemente da nossa curiosidade.
Por vezes, os sujeitos de Sassen adormeceram, como o rapaz caído sobre a rede de pesca verde, emaranhado nela como um peixe deixado para trás pelos pescadores, quem sabe se sonhando. Outras vezes, como as moças unidas pelas suas tranças, sentadas nos degraus de uma escada de betão, deparamos com eles dedicados ao género de languidez que apenas nos admitimos junto dos nossos amigos íntimos (das nossas amigas, mais precisamente).
Não há ninguém menos interessado em ser um símbolo ou uma ideia do que eles. Eles não são coisas. São pessoas. Elas e eles não querem saber do nosso barulho, nem do que temos a dizer sobre eles. Como qualquer sujeito fotográfico, repelem a fotografia como se repelissem a própria morte. Sassen não aparenta desejar fazê-los falar nem transmitir-nos uma mensagem clara. (Talvez tratá-los como ideias seja a forma de deixá-los subsistir como um contínuo de interrogações sem resposta.) Se são uma ideia, não chegam a ser uma linguagem. Se nada dizem, porém, não é porque isso seja determinado pela maneira como Sassen escolheu representá-los, abstraindo-os do seu contexto e da realidade das suas relações como puras entidades cromáticas e composicionais, mas em virtude da sua presença enigmática, como é toda presença humana.
Figuras inquisitivas
A câmara é um objecto que costuma ser traído pelo seu sujeito. O feitiço dele sobre ela é constante e duradouro. Ela mostra o que ele deixa que ela mostre, e no fim ninguém ganha, precisamente porque uma pessoa não é nem uma coisa, nem uma ideia. E também porque atrás da câmara está uma outra pessoa, de cuja história, corpo e drama tendemos a esquecer-nos.
Temos de nos calar para poder ouvir as moças e os rapazes de Sassen e precisamos nos esquecer de nós, se a nossa intenção for escutar a maneira como gozam o fresco sob a luz, na sombra, ou entregues a acções quotidianas, à intimidade ou ao abandonamento do corpo. A humanidade está tão contida na reclamação de um lugar para a nossa versão da história como no direito a dirigir o nosso silêncio. Mas tal direito, tão premente como o direito a uma voz, desafia o público porque não alimenta a sua tagarelice nem a sua loquacidade, e vive da sua capacidade de escuta. Os ouvidos são tão importantes como os olhos diante dessas fotografias. Temos de ouvir para conseguir ver, e estar prontos a não conseguir escutar nada, mesmo que nos calemos. Não basta que nos preparemos para perguntar “quem és tu?”. É preciso prepararmo-nos para que a resposta seja: “Sou teu irmão; tua irmã: ninguém”. Sassen consegue a contrario devolver aos seus modelos a possibilidade de se recusarem a falar conosco. É um feito traiçoeiro para uma artista, pois, nada dizendo, nada dizem também do que ela pretendia que dissessem. E uma das maiores conquistas do seu trabalho africano é tornar as suas declarações públicas sobre ele redundantes. As fotografias de Sassen a colocam em risco como não colocam nenhum dos seus observadores, porque tornam dispensáveis os seus pronunciamentos sobre elas. Subitamente a compositora emudece, dando lugar à sua composição, irmanada na mesma mudez, com a qual não sabemos bem o que fazer. Se as suas meninas, meninos, moças e rapazes são naturezas-mortas, estas são insurgentes, imprevisíveis, e nunca temos certeza de que não se virarão contra ela e contra nós.
Não têm história nem nome, mas no seu anonimato são figuras inquisitivas. A sua mudez é a de qualquer obra de arte: não entendemos a sua língua, é o mais que nos dizem. Ninguém nos preparou para entender os pensamentos que nos dão. A sombra que encobre os seus rostos não é uma maneira de desconversar ou de assobiar para o lado, mas um início de conversa. Ao impor-nos o seu mutismo, as suas fotografias revelam-nos que não ditaremos as regras dessa conversa e que estamos em xeque. Nunca ninguém foi capaz de ensinar uma estátua a decorar um guião, nem de ensinar ninguém a falar com uma estátua.
Corpo negro
Sassen reduz a política a uma realidade visual, consciente de que semelhante exercício a põe para lá de qualquer salvaguarda moral no mundo em que vivemos e no tempo em que as suas imagens foram realizadas. Às vezes, os corpos dos outros apenas nos dizem que não estão interessados no que temos a dizer sobre eles. Podemos falar, que não nos ouvem nem nos querem ouvir. As nossas interpretações são-lhes nada, à semelhança das nossas mesuras, que apenas encontram a sua indiferença. As nossas palavras pairam à volta da sua existência irradiante como insectos em redor da luz. Fotografar os outros é por vezes um sinal de que não os chegámos a ouvir, por vezes um modo de falarmos por eles, e outras vezes uma maneira de recusarmos tomar o lugar de seus ventríloquos.
Sassen põe diante de nós a maneira como não estamos habituados a encarar o corpo negro a não ser como abstração. As suas fotografias navegam em terrenos movediços, precisamente porque a história do nosso olhar não se distingue da lama da história colectiva das imagens. Revelando-nos os corpos de um conjunto de mulheres, homens e crianças como realidades composicionais, ela devolve ao observador o ónus da polémica. Se as suas imagens nos provocam, e eventualmente nos repugnam, é porque deixámos de ser capazes de admitir o corpo negro como um corpo humano muito antes de as termos visto. As suas fotos vão ao fundo da nossa percepção do corpo negro e expõem-na, tirando-nos o tapete: raramente nos perguntamos quando foi que recusámos ao corpo negro um olhar inocente.
O seu mérito não é o de trabalhar com uma paleta pré-política, como se as suas fossem as primeiras imagens registradas do mundo, mas a maneira como revelam, talvez involuntariamente, a negação de uma existência pessoal ao corpo negro, ostentando ao mesmo tempo que todas as paletas são políticas.
Todos os sujeitos fotografados por Sassen são alguém com alguma história. Ao fazer os seus rostos diluírem-se na sombra diante dos nossos olhos, as suas fotografias quase nos distraem disso. Quem é a rapariga esbelta com o cabelo exuberante, ou no que pensa o menino sentado sob uma luz verde? Não podemos saber. Sassen enfeitiça-nos, pedindo que nos esqueçamos de querer saber quem são as pessoas que nos mostra.
E, no entanto, a geometria magistral da sua composição deixa intacta a condição ambígua dos seus sujeitos, cujo sentido e horizonte a sua lente está, felizmente, longe de conseguir fixar. ///
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Na edição impressa da ZUM #13 você pode ver também fotos do ensaio Lama e lótus (2017) e mais imagens das séries Flamboya (2008) e Parasomnia (2011).
Viviane Sassen (1972), fotógrafa holandesa, publicou, entre outros, Flamboya (2008), Parasomnia (2011) e Umbra (2015).
Djaimilia Pereira de Almeida (1982) nasceu em Luanda e vive em Lisboa. É escritora e pesquisadora de teoria literária. Publicou o romance Esse cabelo (2015) e o ensaio Ajudar a cair (2017).
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