Busca o meu rosto: os retratos de transexuais de Paz Errázuriz no Chile dos anos 1980
Publicado em: 12 de março de 2018Coral se veste peça a peça no corredor do prostíbulo La Carlina, em Santiago, no Chile, aparentemente desinteressada de quem a observa. A sequência de imagens revela uma diva meticulosa e certeira. Basta apoiar a mão esquerda no quadril, à porta do bordel, para revelar a sensualidade de seu corpo, o mesmo que, coberto por malha de padronagem alpina e boina, pode sugerir, na direção contrária, a presença de um homem do povo. Diante da câmera fotográfica, Coral se transforma no que deseja. E dificilmente os olhos do observador se arredarão de suas feições desafiadoras, retratadas com delicada maestria pela chilena Paz Errázuriz.
Entre 1983 e 1987, acompanhada da escritora Claudia Donoso, a fotógrafa registrou a rotina de travestis como Coral em bordéis de Santiago e Talca. Capturou o deslumbramento em cada transfiguração, o desafio das identidades submersas em uma ordem política brutal, as pequenas “celas” em lugar de quartos, onde tudo cabia, do calendário erótico à maquiagem intensa, os objetos de sonho sobre a cama. Para um estranho, estar ali representava muitos riscos, entre eles, o de morte, uma vez que aquele modo de existir permanecia sob completa interdição do olhar dos outros. Errázuriz, contudo, jamais esperou ter autorização para trabalhar. Foi uma revolução o que fez ao registrar, sob risco, as extraordinárias figuras restritas aos bordéis, fixando assim um aspecto da humanidade que parecia morrer no Chile de então.
A intolerância ao homossexual, especialmente ao travesti em prostíbulos, se expressara no país durante a vigência de um regime autoritário que, entre 1973 e 1989, matava e torturava opositores. O autoritarismo permeava tudo, mas Errázuriz resolveu resistir a esse estado de coisas. Viver no Chile durante o período repressivo implicava comprometer-se consigo mesma e com a sociedade. Tomar uma decisão política, como diz. “Fico feliz por ter permanecido no Chile durante a ditadura. Não foi fácil, mas, por outro lado, estava em minhas mãos organizar meu trabalho, minha maneira de viver. Isso me ajudou a clarear o pensamento e me deu coragem para fazer o que fiz como cidadã e artista.”
Inicialmente, fotografou mulheres do prostíbulo La Palmera, em Santiago. Contudo, elas não deixaram que publicasse os retratos, temerosas de represálias a suas famílias. Nesse bordel, em 1981, conheceu Evelyn, que pertencia a um grupo de travestis autorizado a atuar no mesmo espaço, ao lado das mulheres. Paz decidiu procurá-los, como quem se solidariza com o extremo da opressão. Coral, assim como Evelyn, Pilar, Deborah, Mirabel, Andrea ou Macarena, abriu-lhe suas dores e seus sorrisos, que se tornaram os da própria artista.
Errázuriz fez da fotografia um exercício de empatia. “Compartilhar momentos da existência dessas pessoas foi um privilégio, acompanhá-las tão de perto me permitiu fazer parte de sua vida.” Professora infantil, formada em 1966, com apenas 22 anos, no Instituto Cambridge, na Inglaterra, e, em 1972, na Universidade Católica do Chile, Errázuriz viu-se privada de seu ofício. “Depois do golpe militar, fui obrigada a deixar as escolas onde dava aulas. Esse momento, paradoxalmente, me trouxe liberdade, uma vez que pude me dedicar à fotografia. Aprendi com amigos a usar o laboratório de revelação e me dediquei a ganhar a vida retratando crianças e famílias.” Nessa época, teve o segundo filho. E, em 1974, publicou o livro Amalia, com textos e fotos para crianças, hoje considerado um dos primeiros fotolivros latino-americanos.
Fotografar era sua maneira de encarar a escuridão. “Os toques de recolher faziam parte da vida, e eu tinha de passar muito tempo em casa com meus filhos. O golpe militar significava, para nós, medo e horror constantes. Muitos amigos tiveram de deixar o país ou foram perseguidos. Por essa época, tínhamos uma galinha de estimação que circulava pela casa, então construí uma história em torno dela. A escritora Isabel Allende, que dirigia uma editora infantil, pediu que eu também fizesse o texto. Eis como Amalia surgiu, um pequeno conto infantil centrado em nossa galinha, uma narrativa com começo e fim.”
Enquanto trabalhava no livro, Errázuriz mostrou suas imagens a Bob Borowicz, amigo da família e um dos poucos fotógrafos atuantes no Chile naquele momento. “Ele me disse que uma dona de casa jamais seria uma fotógrafa. Esse foi o meu começo.” Ela então se pôs a fotografar nas ruas de Santiago, entre os intervalos dos toques de recolher. Em 1981, fundou a Associação de Fotógrafos Independentes (AFI), uma importante organização de profissionais, especialmente fotojornalistas, que cobriam protestos e eventos políticos durante a ditadura. “Decidi, a partir disso, que seria fotógrafa profissional. Minha primeira exposição aconteceu naquele ano, parte dela intitulada Adormecidos, sobre pessoas que dormiam nas ruas por toda a cidade. Eu via Santiago como uma cidade adormecida, que não reagia aos militares. O restante da exposição era de retratos de pacientes de um hospital psiquiátrico.”
Contra a repressão
Estar sob o abrigo das travestis prostituídas parecia ser outro passo na direção de um compromisso profissional. Os bordéis eram lugares vetados e combatidos pelos golpistas. Mas Errázuriz decidira ignorar a proibição. O que os repressores chamavam de minorias era, a seu ver, a maioria plena. Ela iria até as travestis, naquela espécie de claustro, para ouvir suas histórias, mas não as relataria por escrito. A escritora Claudia Donoso se encarregaria das palavras. Errázuriz não era livre para registrar o movimento das noites. Os clientes dificilmente permitiriam. De todo modo, o interesse da artista residia bem mais na transformação das travestis, ocorrida ainda à luz do dia, do que na relação com aqueles que pagavam por seus serviços sexuais.
As fotos, contudo, não foram feitas imediatamente. A fotógrafa substituiu-as, no início, por conversas de aproximação e conhecimento para conquistar a confiança das futuras retratadas. Papeou, comeu e fumou com elas. Só no período final, entre 1986 e 1987, quando ganhou uma bolsa da Fundação Guggenheim, pôde organizar o material que produzira, demoradamente, durante anos. “Nunca acho que meus projetos serão finalizados. Talvez porque sejam só meus, nenhum deles financiado com antecedência. Concentro-me em resolver sozinha as dificuldades da fase inicial. Assim aconteceu com O infarto da alma (1992), que se tornou um belo livro sobre o amor num hospital psiquiátrico, com texto de Diamela Eltit, já na quarta edição. Nunca expus esse trabalho, mas uma vez exibi as fotos no interior do hospital de Putaendo, onde trabalhei.”
Errázuriz é a mais célebre fotógrafa chilena da atualidade, vencedora de prêmios importantes, como o Ansel Adams, outorgado pelo Instituto Chileno Norte-Americano de Cultura em 1995, ou o de trajetória artística, concedido pelo Círculo de Críticos de Arte do Chile em 2005. Em 2015, seu trabalho foi selecionado para a 56a edição da Bienal Internacional de Arte de Veneza. Suas obras sempre nascem do respeito que ela tem por seus personagens. “A pessoa fotografada é quem me permite ser fotógrafa”, explica Paz. “E às vezes ela me concede roubar um pouco sua alma, como se diz.”
A fotógrafa se deixa entrever nas imagens que produz. Seu silêncio, às vezes seu alarme, a bondade natural, os gestos contidos e a elegância que toca a serenidade pertencem igualmente a seus retratados. Ela fala baixo e pouco, mas uma agitação se expressa nos olhos vívidos e no menear de cabeça quando um interlocutor apresenta um novo assunto.
Errázuriz vive o que vê. “A fotografia possibilita que eu me aproxime dos outros. É uma chave-mestra para estabelecer uma determinada relação que terá um efeito determinado. Uma relação cuidadosa e respeitosa, uma vez que, de alguma forma, me aproprio daquilo que descubro no outro.” Se é assim hoje, aos 73 anos, não devia ser diferente quando iniciou O pomo de Adão (La manzana de Adán, em espanhol, é uma referência tanto ao pomo de adão que as travestis não conseguiam esconder, mesmo sob intensa maquiagem, quanto à região dos bordéis, já que manzana pode ser traduzido por “maçã” ou por “quarteirão”). O livro com as fotos do projeto inaugurou e fechou a editora Zona, em 1990. E o espetacular retrato da vida à margem foi boicotado por todas as livrarias chilenas. Lançado um ano após o fim do regime militar, vendeu, na verdade, uma única cópia. Só em 2014 ganhou sua primeira reedição, bilíngue, pela Fundação AMA, no Chile, com o acréscimo de textos e de fotos inéditas, coloridas.
Errázuriz entende que O pomo de Adão é seu autorretrato. “Fotografar o outro produz um diálogo silencioso. É nesse momento que me sinto retratada.” O livro foi calorosamente elogiado pela escritora norte-americana Susan Sontag durante uma visita que a fotógrafa lhe fez em Nova York, antes do lançamento. “Esse encontro foi incrivelmente importante para mim. Imagine isto! Mostrei-lhe as fotos e parte do texto. Ela achava que o livro não devia conter textos, apenas imagens… Não concordei com essa opinião. Estava trabalhando com Claudia Donoso, que ficou responsável pelos relatos, dos quais eu não poderia cuidar pessoalmente. Susan também se interessou pelo projeto em que fotografei boxeadores.”
A convivência e o retrato
Errázuriz não crê que o retrato seja uma busca artística essencial, embora sejam profundas e até eletrizantes suas descrições de personagens, como Coral, única sobrevivente do grupo, com quem conversa até hoje e que está atualmente em tratamento contra a aids, após ter abandonado a prostituição. “Não me sinto uma retratista, apesar de a maioria de minhas fotos resultar em retratos”, diz. “Defino-me como uma fotógrafa documental, pois, da minha maneira, me atenho à realidade. Não sigo modelos nem estruturas. Tenho uma liberdade intuitiva para abordar certas temáticas. Interessa-me, sobretudo, o ser humano.” E completa: “Coral me disse que O pomo de Adão era como seu tesouro, mas não sabia se deveria mostrá-lo aos pais. Algumas das amigas das personagens que retratei chegaram a me pedir que contasse a história delas também”.
Em O pomo de Adão, que não evita tocar nos momentos difíceis, nas prisões, nas humilhações por que passaram as travestis nas mãos da polícia, sobressaem as figuras da costureira Mercedes Paredes Sierra e de suas filhas, Pilar e Evelyn. Pilar relata todas as dificuldades de trabalhar no Chile naquela época: “A polícia chega e não pergunta o nome de ninguém. Eles veem você na rua e jogam na viatura. Batem em nós se somos bonitas, se somos feias, porque usamos maquiagem ou porque não usamos. Sempre me perguntam: por que você se veste como mulher, idiota, se tem esse vozeirão? Pegaram a Nirka porque tinha peitos. Queriam tirar seus mamilos fora. Cortaram seus cílios postiços com tesoura. Jogaram jatos de água em Susuki às três da manhã no pátio de uma delegacia. Nos obrigaram a dar um show para eles, tiraram a roupa da Susuki e a fizeram abrir e fechar as pernas.”
Pilar também narra os ataques dos policiais militares aos prostíbulos de travestis. Começavam descendo dos ônibus às dúzias. “Nesse momento, esquecemos nossas rivalidades: é quando somos realmente amigas. Damos as mãos, trememos de medo. Rezamos, imploramos que não nos aconteça nada.” Os pacos (policiais militares) batiam na porta trancada do bordel até arrombá-la. Pilar conta de uma ocasião em que foi violentamente agredida, mesmo com a garantia policial de que nada lhe aconteceria. “Não dá para ganhar deles. Ou você foge, é pega e punida, ou eles capturam você, dizendo: ‘Por que não fugiu, bicha filha da puta?’. Eles arrebentam você. Destroem portas, móveis, perucas, roubam seu dinheiro, fuçam tudo. Por isso vivemos doentes dos nervos.”
Nessas circunstâncias, morar com Pilar e Evelyn no bordel demonstrava coragem e amor sem precedentes. A mãe delas, Mercedes, decidira morar no prostíbulo depois de ter sofrido todo tipo de perseguição nos bairros de classe média em que trabalhava, por causa da rejeição à identidade e ao trabalho das filhas. Evelyn, extraordinariamente bela, e Pilar, a mais alegre, devolviam assim a ordem familiar ao bordel. Como Mercedes, Errázuriz também se separara do marido, o escritor Cristián Huneeus. Vivia a maternidade sozinha quando fez o livro. “Mercedes se tornou muito importante para mim”, conta a fotógrafa. “Eu a considerava uma mãe excepcional por viver e lidar com uma situação de extrema dificuldade durante todo o tempo da ditadura, quando seus filhos e amigos eram perseguidos pelos militares e pela polícia. Os amigos e companheiros de trabalho de Pilar e Evelyn também frequentavam a casa de Mercedes, e eram recebidos como filhos.”
A família Paredes Sierra lhe falava de perto. Evelyn, contudo, encarava a permanência da mãe no bordel à sua maneira. “Mamãe ficou comigo e Pilar porque se deu conta de que éramos travestis e nunca iríamos nos casar. Ela concluiu, assim, que jamais a deixaríamos.” Evelyn frequentemente era apontada como alguém que tinha um distanciamento em relação às outras travestis, mas se abriu à câmera de Errázuriz e às conversas com Donoso. “Antes, recebíamos aqui outro tipo de gente, alguns homens muito bonitos”, conta Evelyn. “Eu me perguntava: por que vêm aqui se são tão bonitos? A verdade é que todos têm suas fantasias; ninguém é totalmente macho. Perguntei por que nos procuravam aqui, e eles disseram que faziam isso para enganar a vida. Olham um rosto que é de uma mulher, mas sabem que, por trás dele, há um homem. Não querem aceitar que, na verdade, gostam de homens.”
A relação entre os clientes e as travestis daqueles bordéis também foi explicitada por Andrea Polpaico: “Não é bom trabalhar com prostitutas. Elas riem de nós, e isso inibe os clientes”, disse Andrea. “Naturalmente, mulheres não são páreo para travestis, porque temos mais ideias sobre o que fazer na cama. Alguns homens já me disseram que as mulheres não têm brilho nenhum. Eles nos procuram porque temos mais imaginação. Quando faço amor, sou totalmente pervertida.”
As fotos de Polpaico, assim como as fotos internas feitas por Errázuriz no bordel La Jaula, em Talca, não entraram na edição inicial. Teria sido muito caro imprimir em cores aquelas imagens alegres nas quais as personagens se preparavam para a noite, dançavam, posavam e entretinham os clientes em meio a sorrisos, bebidas ou jogos de cartas. “A razão pela qual fiz fotos coloridas é simples”, conta Paz. “Eu não tinha filme preto e branco suficiente. Na época, era difícil conseguir material fotográfico. Aquele filme fora dado a nós, fotógrafos da AFI, por profissionais estrangeiros que vinham ao Chile cobrir os protestos políticos. Tive de usar flash por causa das circunstâncias: os recintos, pequenos, tinham pouca iluminação. O bordel era um lugar humilde. Na segunda edição, adicionei o material em cores e outras fotos em preto e branco, porque tive a liberdade de fazer um livro mais completo, com textos como o do ensaísta Juan Pablo Sutherland e uma crônica especial de Pedro Lemebel.”
Paz investiga crianças transgêneros para um projeto futuro. “Não sei ainda como vou abordar o assunto, porque necessariamente tenho de me adaptar a condições que não conheço nem manejo bem. É uma etapa de estudo e aproximação.” Novamente, as crianças dizem algo a sua alma inquieta. A primeira câmera de Errázuriz, uma Exakta, veio da Alemanha para que ela pudesse fotografar sua experiência em Cambridge, especialmente a prática com as crianças. Depois do nascimento da primeira filha, ela também quis fotografá-la, como a outros bebês do hospital Saint Mary. Contudo, naquele tempo, seu mundo era o do marido, que se especializava na universidade e na política, e ela desistiu do projeto.
Sua intuição quanto ao futuro sempre caminhou pela arte, que desejou ardentemente estudar na juventude, mas o pai a impediu de seguir nessa área. Começou os estudos de filosofia porque os de psicologia não possibilitariam, ela pensava, uma colocação profissional na sociedade daquele período, no Chile retrógrado que não aceitava mulheres psicólogas. Paz viveu sob vetos que, pouco a pouco, transpôs, como uma espécie de meta contínua.
A importante observadora contemporânea da figura humana guarda apenas uma fotografia da infância. Seu pai tinha uma câmera, mas ampliava apenas parte das fotografias. “A única foto minha que ele guardou foi a da primeira comunhão. A imagem, contudo, não aparecia inteira. Foi tirada de tal modo que minha cabeça estava cortada acima da boca.” Uma razão, talvez, para procurar nos outros um rosto que era o seu. ///
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