Estrela da noite
Publicado em: 16 de julho de 2020
Uma loira, copo de uísque na mão, olha para a lente com os lábios paralisados num quase beijo. Ela é alta e usa uma roupa de tecido metalizado agarrada ao corpo. À direita, a explosão do flash surge refletida num espelho quadriculado. Logo abaixo do seio esquerdo, uma mancha vira o ponto fulcral da composição. O defeito é uma arma estética, como os corpos fragmentados que invadem as laterais do retrato, num misto de ruído e arquitetura espontânea. O cotovelo da mulher extraquadro parece mimetizar o ângulo das dobras da saia da modelo flagrada, num geometrismo exuberante e acidental.
Na pista de dança do Studio 54, em Manhattan, Vania Toledo não pensava em arquitetura ou geometria. Exímia dançarina nos tempos frenéticos da música disco, construiu um retrato despojado de uma noite em ebulição.
Nada, aliás, parece distante no olhar de Toledo. Seus flagras das festas de São Paulo, do Rio e de Nova York são um registro histórico do hedonismo daqueles tempos e um autorretrato às avessas, já que seu ponto de vista não é o do observador que passa ao largo da ação, à maneira de um antropólogo ou etnógrafo. Ela está na pista de dança com seus modelos, e as imagens não desmentem essa proximidade suada e calorosa, de manchas de álcool, marcas de cigarro, meias desfiadas.
Em conversa com a ZUM, Toledo lembra que tudo começou com sua formação de socióloga e a ideia de construir com imagens um estudo do comportamento das pessoas que “saíam para dançar e se libertar de seus fantasmas” nas décadas de 1970, 1980 e 1990. A frieza acadêmica logo cedeu à alegria, ao desbunde, ao prazer, à liberdade e afins, como se a noite deslizasse diante de suas lentes tal qual um caleidoscópio luminoso, calibrada por excessos etílicos, vestidos esvoaçantes, saltos agulha e o melhor dry martini num raio de mil quilômetros.
Esse tratado de Toledo sobre as boates mais quentes do Ocidente parece fotografia de guerra. Ela está infiltrada no combate, camuflada de salto alto e uma eventual clutch a tiracolo, grande o suficiente para guardar a pequena Yashica de flash embutido. Seu retrato da noite vibra com os reflexos pegajosos, os corpos à deriva, os sorrisos fritos e os estranhos carpetes, formando trincheiras em meio às pernas torneadas que ostentam o bronze dos Hamptons ou de Ipanema entre fendas indecorosas.
Uma dessas mulheres, de vestido branco, com a saia voando no meio de um rebolado, seria, na visão da fotógrafa, uma síntese desses tempos extáticos. Toledo encarna essa espontaneidade em suas fotografias sem disfarçar as imperfeições na composição. A protagonista da cena se esbalda na pista de dança, o assoalho está sujo, com o grude característico das boates mais fervidas, enquanto baladeiros menos afoitos fitam a dançarina com ar de fascínio, desdém e indiferença.
Luxo e lixo, sujeira e glamour convivem nas imagens de Toledo. Seu olhar descarnado, turbinado pelo flash corrosivo, faz uma apologia do despojamento, do desapego. É como se tentasse se livrar da raiz teatral de sua obra – ela começou a carreira como fotógrafa de peças de teatro – lançando mão de uma estratégia brechtiana: tudo está à mostra, nada é edulcorado, mesmo quando faz o papel de enviada especial da vida mundana aos templos impenetráveis dos VIPS.
Até as celebridades flagradas por ela acabam reduzidas à condição arquetípica de um homem ou uma mulher em busca do nirvana na pista de dança. Dudu, cantora das Frenéticas, olha com impaciência para a lente de Toledo, enquanto ajusta o salto numa noite no Pauliceia Desvairada. Ela surge emoldurada por outra mulher, que calça uma sandália, e pelo vulto de uma moça agachada, de bunda para cima. Ali, a fotógrafa combina os dois extremos de seu olhar: aquele de uma esteta dedicad0 a perseguir estrelas no palco e o que busca a intimidade instantânea do calor da noite, algo que só seria possível num mundo sem camarotes e paparazzi.
Toledo fez desde sempre uma espécie de jogo duplo, de construir e, ao mesmo tempo, implodir a ideia do que é cool e sedutor. Não parece haver em suas fotos qualquer espaço para a encenação, tanto que deixou de fotografar a noite quando notou uma mudança radical de atitude entre seus desbravadores. Quando modelos, artistas e estilistas deixaram de ir à balada por prazer, Toledo saiu de cena, dizendo que não quer fazer parte de uma cultura da noite mais propensa ao lobby e às aparências do que ao fervo.
Em 1990, o atropelamento na porta de uma balada na rua Augusta, que a deixou mancando para o resto da vida, talvez tenha sido o empurrão final para sair da noite. Mas Toledo não se rendeu às facilidades do classicismo, aos retratos apolíneos. Um grau de sujeira, de ressaca, de fuligem ronda sua arquitetura plástica até hoje. Como se os globos espelhados e os estrobos tivessem gravado em sua memória a queda por um olhar atravessado de luz. ///
Matéria publicada originalmente na ZUM #12 – abril de 2017
+
Veja também a entrevista em vídeo que Vania Toledo deu para Jorge Bodanzky em 2017
Vania Toledo (1945), fotógrafa, colaborou na década de 1980 com publicações como Vogue, Interview, Cláudia, Veja, IstoÉ, Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Time e Life. É autora dos livros Homens (1980), Personagens femininos (1992), pelo qual recebeu o prêmio da APCA em 1993, e Diário de bolsa (2008).
Silas Martí (1984), jornalista e crítico de arte, é colunista de artes visuais e arquitetura do jornal Folha de S. Paulo.
Tags: Baladas, Disco, Festas, Noite, Studio 54