Canal Motoboy
Publicado em: 26 de agosto de 2016Há mais de uma década, o artista espanhol ANTONI ABAD criou o Megafone.net, um canal de internet que dava voz a grupos discriminados socialmente, como taxistas na Cidade do México, imigrantes em Nova York e prostitutas em Madri. Na versão brasileira, Abad entregou celulares com câmera a motoboys de São Paulo para que registrassem sua rotina. Fotos e vídeos expunham em tempo real o cotidiano da rua e momentos de lazer. O projeto ajudou a dar visibilidade ao grupo e atenuar a imagem de rebeldia, além de contribuir para identificar problemas da cidade. Encerrado em 2015, o canal permanece como uma experiência pioneira e visionária baseada no uso da imagem e das ferramentas digitais.
PRÓXIMO À AVENIDA RUDGE, na região central de São Paulo, o motoboy Ronaldo Simão da Costa publica a foto de um cachorro que encara a câmera de seu telefone celular. Ele anexa à imagem um arquivo de áudio de apenas seis segundos. “Alô, alô, teste?”, ensaia, verificando o funcionamento do sistema do canal*Motoboy, um publicador on-line de áudio, foto e vídeo que faz parte do projeto Megafone.
A pergunta, feita em 1 de agosto de 2015, fecha o ciclo iniciado por Ronaldo quase nove anos antes, quando inaugurou sua participação na iniciativa do artista catalão Antoni Abad com a foto de um bebê de óculos escuros e com a língua de fora. Na legenda, uma frase mais imponente do que a da fotografia do cão: “Essa é a minha vida”.
Daquele momento em diante, imagens de sua família intercalaram-se com milhares de registros da cidade, de cenas que se repetem diariamente – engarrafamentos e acidentes envolvendo colegas de profissão – a eventos singulares, como uma tentativa de suicídio numa ponte da zona oeste de São Paulo, de onde um homem, “cansado dessa vida louca”, ameaçava se atirar abraçado a uma garrafa de pinga.
Assim como Ronaldo, outros 16 motoboys se tornaram cronistas da metrópole a partir do final de 2006, quando Abad deu a eles telefones celulares com câmera, algo que começava a se popularizar na época, e os incentivou a documentar em tempo real o cotidiano de uma classe detestada no imaginário comum da cidade.
O paulistano ama odiar os motoboys. Ao mesmo tempo imprescindíveis, graças à agilidade nas entregas que realizam em meio ao truculento trânsito de São Paulo, esses profissionais se tornaram sinônimo do comportamento agressivo que se disseminou entre parte significativa da classe.
A “vida loka” dos cachorros loucos tem números impressionantes. Segundo a Companhia de Engenharia de Tráfego do município, dos 28.618 acidentes de trânsito com vítimas em 2014, 49% envolveram motociclistas. Na média de vítimas fatais desse mesmo ano, 1,2 das 3,4 mortes diárias foram de pessoas que dirigiam motos. Embora o estudo use a palavra “motociclista”, e não “motoboy”, no dia a dia não faz muita diferença: a ligação entre a imagem da categoria e os acidentes com motocicletas está cristalizada há anos.
Ao olhar para grupos como esse, Abad vislumbrou a criação do projeto Megafone.net, no qual um conjunto de ferramentas de comunicação era oferecido a categorias marginalizadas para que pudessem se expressar. Além do trabalho com os motoboys, ele distribuiu celulares e montou um publicador de áudio, foto e vídeo para prostitutas em Madri; imigrantes nicaraguenses em San José, na Costa Rica; ciganos em León e Lérida, na Espanha; e cadeirantes em Barcelona, Genebra e Montreal. Mas foi em 2004, com 17 taxistas, na Cidade do México, que Abad colocou o projeto em prática pela primeira vez. A experiência serviu de ensaio para a ação em São Paulo, cidade na qual o Megafone havia sido idealizado um ano antes.
No México, Abad introduziu os conceitos gerais do projeto e organizou reuniões semanais para promover o debate de pautas entre os membros do canal recém-criado. O modelo de encontros, no qual o artista não opina nem indica direções, deixando que as comunidades discriminadas decidam o que querem documentar, também foi adotado fora do distrito federal mexicano. “Eu gostava de tirar foto de buraco, água, vazamento, então as reuniões serviam para dizer: ‘Qual vai ser a pauta da semana? Cidade limpa? Onde tem lixo na cidade?’. Às vezes, a gente fotografava de manhã, e à tarde alguém ia lá e limpava”, relembra Ronaldo.
As maneiras de reunir ativistas variavam de acordo com a localidade. Com os taxistas, Abad recorreu a anúncios em um jornal local e a um programa de rádio de sucesso entre a categoria, enquanto no Brasil a convocatória se deu de modo mais direto. Assim que soube das ideias de Abad com os motoboys, a artista gaúcha Regina Silveira indicou ao catalão o contato de Ronaldo, a quem recorria para fazer entregas. Ele se tornaria o porta-voz e o fotógrafo mais prolífico de todo o projeto Megafone. Em pouco mais de nove anos, inicialmente por torpedos e depois pela internet, ele enviou 3.832 arquivos ao sistema. Também foi o responsável pela indicação dos outros participantes – Viralata, Beiço, Cleyton, Neka, Renato, Adriana, Bahiano, Crispim, Deton, Djalma, Edison, Andrea, Mirtão, Luiz, Tadeu e Alexandro. Entre os 17 membros do canal, duas mulheres. A proporção faz sentido: em São Paulo, segundo o Detran, apenas 9,49% das de 1.111.998 carteiras habilitadas para dirigir motos pertencem a motoristas do sexo feminino.
Se há disparidade quanto ao gênero, os temas abordados pelo coletivo pouco diferem. Em uma linguagem em que o conteúdo está à frente da forma, acidentes, engarrafamentos, túneis, motopeças, infrações de trânsito e murais grafitados dividem o protagonismo com entrevistas feitas com colegas de profissão, nas quais o roteiro começa sempre da mesma maneira: “Você tem quantos anos de rua?”. Sucedem-se, então, reclamações de classe – contra a proibição do uso dos corredores, contra as empresas terceirizadas, contra a polícia, contra o preconceito sofrido e contra as leis em geral. Entre capacetes e jaquetas da marca California Racing, porém, há muitos retratos de familiares e amigos. Em 11 de julho de 2007, Adriana mesclou os dois mundos, o da profissão e o da intimidade, ao registrar os quatro pontos que levou no joelho esquerdo após sofrer um acidente. Três dias mais tarde, numa publicação premonitória do uso da internet hoje, ela avisa aos amigos do coletivo por meio da legenda de um autorretrato: “Oi, galera, eu estou zonza. A labirintite voltou, não irei à reunião”.
Selfies como o de Adriana pipocam em menor número. Com a palavra-chave #vidareligiosa, Crispim aproveitou sua última postagem no projeto, no dia 23 de janeiro de 2015, para contar que está em uma “nova fase da vida”, embora o “coração continue sendo o de um motoboy”. Já Andrea é um ponto fora da curva. Muitas vezes publica apenas textos, sem recorrer a material audiovisual. Quando o faz, às vezes repete a mesma imagem, utilizando a legenda para montar diálogos inteiros. Em uma combinação de redes sociais pré-históricas e reality show feito apenas por motoboys ou taxistas, o canal revela, ao mesmo tempo, personalidades e senso coletivo.
O Megafone não foi a primeira experiência envolvendo arte e internet produzida pelo catalão nascido na cidadezinha de Lérida, a 150 quilômetros de Barcelona, em 1956. Em 2001, dois anos depois de participar da Bienal de Veneza dirigida pelo suíço Harald Szeemann, o curador das “atitudes que ganham forma”, Abad criou Z, obra baseada em um software em formato de mosca. “A mosca era um agente infiltrado na interface do usuário e que aparecia somente quando ele estivesse conectado à internet. Como tal, dificultava a função tecnológica e questionava a relação das pessoas com computadores e redes. Mas a mosca de Abad era mais do que um elemento visual criado para subverter a interatividade digital. Quem instalava o programa dispunha de um canal de comunicação com outros usuários e passava a fazer parte de uma comunidade”, escreve o pesquisador mexicano Roc Parés em Megafone.net (Macba, 2014), publicação que celebra os dez anos do projeto.
A partir de 2009, Abad levou o Megafone para imigrantes em Nova York, refugiados em Tindouf, na Argélia, camponeses em Manizales, na Colômbia, e outra vez a Barcelona, agora para deficientes visuais. Além dos registros oriundos de seus celulares, os membros dos canais também enviam palavras-chave que formam uma espécie de mural de catalogação, identificando cada participante e a plataforma local da qual fazem parte. Enquanto em São Paulo se destacam os termos “família”, “corredores” e “acidentes”, o grupo madrilenho, por exemplo, oferece os vocábulos “adulto”, “feminino”, “casa” e “ócio”.
Na Colômbia, a coincidência no uso de palavras-chave ajudou a mostrar que grupos antagônicos tinham interesses em comum. Manizales, localizada no centro do país sul-americano, foi o único lugar onde duas comunidades separadas atuaram em um mesmo projeto. De um lado, pessoas que foram obrigadas a se mudar da zona rural para os subúrbios da cidade por causa do conflito armado. De outro, combatentes das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) que deixaram a guerrilha para se reintegrar à sociedade. “Diziam que eu estava louco, que não poderia reuni-los no mesmo lugar porque iriam se matar”, lembra o artista. Os encontros, de fato, não puderam ser realizados nos mesmos dias, mas a condição de Abad para que a ideia fosse realizada ali era que a plataforma de publicação teria de ser a mesma para os dois lados. Após cinco reuniões realizadas separadamente, os participantes se deram conta de que as palavras-chave utilizadas por todos eram praticamente as mesmas. “Eles falavam de ‘reconciliação’, ‘diálogo’, ‘conflito’. Eram as mesmas preocupações.” No fim, o catalão conseguiu convencê-los a se reunir em um mesmo dia, e o Megafone desfilou sua faceta pacificadora, que, segundo ele, terminou em um bar, com todos bebendo e papeando sobre a vida.
O conceito de mídia tática, discutido no texto “O ABC da mídia tática” assinado pelos professores Geert Lovink e David Garcia, em 1997, está diretamente ligado ao Megafone, uma vez que os processos de comunicação tradicionais são transformados através da apropriação de repertórios tecnológicos capazes de criar novos canais, seja para expressar indignação, crítica ou oposição. “O conhecimento dessa dicotomia tática/estratégica nos ajudou a nomear uma classe de produtores que parece singularmente consciente do valor dessas inversões temporárias no fluxo do poder. E, mais que resistir a essas rebeliões, faz tudo o que pode para amplificá- las. Na verdade, faz com que a criação de espaços, canais e plataformas para essas inversões seja fundamental para sua prática”, defende o manifesto.
Segundo o historiador André Mesquita, autor de Esperar não é saber: arte entre o silêncio e a evidência (2015), aspectos como a efemeridade das filmagens, a ação no “campo do inimigo” e o desvio de função de certos produtos de consumo, como um telefone celular, são elementos essenciais para entender o uso tático da mídia, estratégia utilizada, por exemplo, pelo artista americano Ricardo Dominguez, que fez parte do cultuado coletivo Critical Art Ensemble. Além de projetos em colaboração com os zapatistas, ele criou o aplicativo Transborder Immigrant Tool, uma ferramenta via telefone celular que ajuda imigrantes ilegais a atravessar a fronteira entre o México e os Estados Unidos e indica locais para se esconder da polícia ou caminhos mais seguros. No Brasil, um exemplo do uso da estratégia é o surgimento, nas manifestações de junho de 2013, da Mídia Ninja, que transmitia em tempo real a onda de protestos contra o aumento da tarifa de ônibus e a violência policial que se seguiu a cada ato.
Para o catalão, mais que viabilizar um canal de comunicação para grupos marginalizados, a ideia do Megafone era superar as dificuldades que essas categorias têm para se expressar por meio da grande mídia, “a mesma que ajuda a estigmatizá-los”. Essa resistência, no entanto, parece ter sido deixada de lado por esses mesmos meios de comunicação, que rapidamente se apaixonaram pela proposta de Abad. “É, boa tarde a todos, eu estou aqui no centro do Rio de Janeiro. E é aquele velho probleminha: quebra um carro e para tudo, não tem jeito. Eu estou próximo do aeroporto, tirando umas fotos enquanto não é a hora do nosso voo, e queria agradecer o pessoal da Ana Maria Braga, que nos recebeu superbem. Espero que a matéria tenha ficado boa e que vá ao ar”, narrou Ronaldo em relato publicado no dia 28 de abril de 2010.
Cinco dias depois, a reportagem realizada pelo programa Mais Você, da apresentadora global, foi exibida em rede nacional. Trata-se de uma entre muitas produzidas com os integrantes do canal*Motoboy. Mesmo que embalado no verniz da inclusão digital, a imprensa amplificou o alcance do projeto e o expandiu em jornais e atrações de tv. O projeto ainda fez parte de eventos de tecnologia, como a Campus Party, e, devido à natureza da criação dos coletivos, de exposições montadas em grandes instituições da cidade, como o Centro Cultural São Paulo – numa mostra dedicada apenas ao coletivo –, o Masp – na FotoBienal de 2013 – e, mais recentemente, a Pinacoteca, que realizou uma retrospectiva do trabalho de Abad.
Foi em uma entrevista para a revista Veja que Marcelo Veronez, de 43 anos, ganhou a alcunha de “poeta dos motoboys”. Socorrista do Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) desde 2004, Marcelo já não era motoboy quando começou a participar do Megafone. Sua atuação no projeto também é distinta da dos colegas de coletivo. Em vez de produzir arquivos audiovisuais, o músico, que não figura entre os participantes no site do canal, era, na verdade, uma espécie de animador dos eventos organizados para difundir a cultura motoboy. “Em 2007, quantos motoboys tinham celular com câmera? Você estava falando para um monte de gente que não tinha uma razão para se interessar por isso.” A oferta era tão pequena que, no começo do canal, um único aparelho era compartilhado entre os membros do coletivo, que se revezavam durante períodos de até duas semanas com o telefone.
Articulado, o poeta era escolhido para discursar e cantar nas festas de aniversário do canal, que reuniam também ações culturais, como exposições de grafite e de artesanato. Nos anos 1990, quando era motoboy, dizia se sentir “imortal”, assim como muitos garotos que hoje sobem em uma moto e saem rasgando avenidas da capital paulista. Aliada a essa sensação, havia a péssima qualidade dos equipamentos de segurança comercializados na época – os “capacetes de papel” –, sem contar as condições precárias de trabalho oferecidas pelas empresas de entrega. Decidiu se tornar um paladino da conscientização dos motoboys.
Além do cantor, outro participante também já havia deixado a profissão quando passou a integrar o projeto. Eliezer Muniz, o Neka, de 49 anos, terceiro membro mais ativo do canal, deixou a moto em 2004 para estudar filosofia na USP. Hoje ele trabalha como professor do ensino médio em escolas públicas da periferia de São Paulo. “O canal serviu como um interlocutor. Havia um hiato entre o que era a categoria e o que a sociedade pensava. Não havia um diálogo direto. A partir do momento em que os motoboys ganharam voz, isso permitiu ao poder público e à sociedade civil olhar para as necessidades e a realidade dos motoqueiros, além de mudar a visão dos próprios motoboys sobre a classe.”
O “WhatsApp pré-histórico”, como Marcelo Veronez define o Megafone hoje, foi suplantado pelas redes sociais. Ainda que sem a mesma finalidade nem os mesmos resultados, Facebook, Instagram e Twitter, entre outros, foram rapidamente absorvidos no cotidiano do grupo, que migrou suas discussões para essas plataformas.
Para Giselle Beiguelman, artista visual e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, o trabalho de Abad foi premonitório de práticas muito comuns hoje. Ela argumenta que, embora a ideia do catalão esteja ancorada na mesma metodologia de publicações instantâneas, o Megafone funciona de um ponto de vista diferente dos aplicativos de interação social. “Antoni não opera pela lógica de rebanho, em que a denominação ‘seguidores’ indica essa imagem. Tampouco opera pela lógica do darwinismo social, na qual vence quem já é mais forte – quem tem mais likes vai angariar mais e mais likes. É uma dinâmica difícil de romper. O trabalho de Abad é o contrário, é a interlocução e o agenciamento de atores privilegiados e envolvidos numa questão particular.”
Abad vai na mesma linha de raciocínio ao fazer a distinção entre usuários e participantes. “O principal êxito do projeto é que aquelas pessoas fiquem articuladas como um grupo. Quando elas ficam diante da situação de representar o seu dia a dia, têm de pensar quem são, tanto como pessoa quanto como comunidade”, defende.
Esse acesso à mídia permitiu que os motoboys dialogassem com núcleos da cidade que não os enxergavam como uma comunidade que tem princípios, práticas, atividades e, mais importante, sensibilidade estética, argumenta Lucas Bambozzi, criador do festival Arte.Mov. “Mídias sociais e câmeras nos bolsos das pessoas são ferramentas para se expressar. Em algum momento, elas podem se tocar de que este é um exercício de sensibilidade que não é tão corriqueiro. Quando a pessoa se sente capaz de exercitar essa sensibilidade, isso é algo transformador. A política precisa ser mais sensibilizada pelas questões poéticas e estéticas.” Certa vez, um dos taxistas mexicanos disse para Abad: “Depois de muitos anos ao volante no trânsito infernal desta cidade, este projeto me fez recordar que a imaginação existe”. ///
Imagens gentilmente cedidas por Antoni Abad. Megafone.net/São Paulo. Creative Commons.
Antoni Abad (1956) nasceu em Lérida, Espanha. Seus projetos Megafone.net e Blind.wiki têm sido desenvolvidos na Austrália, Brasil, Canadá, Colômbia, Costa Rica, Espanha, Itália, México, Saara argelino, Suíça e EUA. Participou das bienais de Veneza, Lima, Sevilla, Porto Alegre, FotoMasp São Paulo, Curitiba e Berlim.
Daigo Oliva (1985), jornalista, é editor-adjunto do caderno Ilustrada, da Folha de S.Paulo. Edita o Entretempos, blog sobre fotografia hospedado na versão on-line do jornal.
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