A partir de Seydou Keïta: fotografia de estúdio e poéticas da modernidade no oeste da África
Publicado em: 17 de abril de 2018Em 1991, no texto introdutório da exposição Africa Explores: 20th Century African Art, Susan Vogel enunciava a ambição de apresentar a arte africana segundo seus usos e contextos originais de criação: “Optamos por tentar entender a experiência da África […] de um ponto de vista em que as ideias ocidentais são apenas partículas em uma matriz de estilos e filosofias preexistentes”. Sua proposta era conceber uma expografia distinta à que havia pautado as obras de arte africana na mostra Magiciens de la Terre, realizada dois anos antes em Paris.
Em meio a instalações, peças gráficas e pinturas da seção expositiva intitulada Urban Art, Susan Vogel exibiu um pequeno conjunto de retratos realizados por um fotógrafo de Bamako, aparentemente desconhecido. Coletadas por ela em uma viagem ao Mali nos anos 1970, as imagens mostravam poses, gestos e cenários que impactaram André Magnin, um dos curadores adjuntos de Magiciens de la Terre, presente na abertura de Africa Explores. Com o apoio do colecionador Jean Pigozzi, Magnin viajou ao Mali, em maio daquele mesmo ano, para identificar o autor das fotografias. Após interpelar diversos informantes em Bamako, chegou a Malick Sidibé – fotógrafo então desconhecido do público europeu -, que o apresentou a Seydou Keïta e seu surpreendente acervo composto por milhares de negativos.
Meses antes, um percurso similar havia levado a fotógrafa francesa Françoise Huguier ao encontro de Keïta. Longe de ser uma neófita no campo da fotografia africana, Huguier viajara diversas vezes ao Mali e havia organizado, nos anos 1980, uma exposição sobre o tema para o festival francês Les Rencontres d’Arles. Alguns anos depois, Huguier codirigiu a edição inaugural da Bienal de Fotografia, fundada em 1994 na cidade de Bamako, com o aval de Alpha Oumar Konaré – primeiro presidente eleito democraticamente no país.
A convergência entre os itinerários narrados aqui não reflete uma coincidência banal, tampouco anedótica. Oscilando entre especulações do mercado e releituras curatoriais, o interesse na produção de fotógrafos como Seydou Keïta acompanhava a necessidade crescente de se revisar a literatura acerca da criação visual que emergiu com as independências do continente, entre os anos 1950 e 1960. Opondo-se à visão da modernidade africana como uma manifestação derivativa e anacrônica, tais perspectivas reivindicam o papel da autoria na elaboração de um vocabulário visual local. Foi no contexto dessas revisões que o retrato fotográfico passou de documento histórico a manifestação artística, aos olhos do Ocidente.
A despeito do status que essas imagens alcançaram, a partir da década de 1990, é importante atentar para os hábitos que medeiam suas formas originais de consumo e difusão. Desde o início do século passado, muito antes de ocupar galerias e museus de arte, o retrato fotográfico já havia sido integrado às práticas populares de representação individual e coletiva no continente africano. Além de trâmites oficiais, seus usos estiveram associados a eventos sociais e festivos, como casamentos, batismos, além de celebrações do calendário islâmico, como o tabaski e o ramadã. Ao discorrer sobre essas experiências, Okwui Enwezor atenta para os equívocos que limitam a compreensão da fotografia em contextos tradicionais e suas formas de apreciação na própria África: “Quando discutimos a produção africana apenas no contexto do reconhecimento das audiências ocidentais, propagam-se falsas narrativas. Eu lembro […] quando visitei Seydou Keïta em Bamako. Perguntei a ele: ‘Por que você tirou todas essas fotografias?’. Havia dezenas de milhares delas, e ele disse: ‘Porque elas são boas’. Ele sabia que alguém eventualmente poderia fazer algo com elas, o que seria notável”.
A consciência que Keïta possuía do seu próprio trabalho demonstra a atribuição de um valor autoral anterior a qualquer reconhecimento externo. Além disso, aponta para os diferentes tempos e experiências que demarcam os espaços de circulação do retrato fotográfico na África. Tais processos devem ser compreendidos como parte de uma cultura de mobilidade e deslocamento que extrapola as fronteiras pré e pós-coloniais do continente.
Ora, muitos foram os fotógrafos que, de cidade em cidade, estabeleceram uma clientela a partir de práticas de estúdio itinerantes. Exemplo disso é o trabalho de Adama Kouyaté. Nascido em Buguni em 1928, no sul do então Sudão Francês, ele partiu para Bamako nos anos 1940. Na capital, Kouyaté foi apresentado à fotografia por Bakary Doumbia e passou a frequentar o Photo Hall Soudanais, tornando-se assistente do francês Pierre Garnier – um dos mentores de Keïta. Nos anos seguintes, Kouyaté viveu entre Burkina Faso e a Costa do Marfim, retornando ao Mali em 1969, após o golpe de Estado liderado por Moussa Traoré. Lá, instalou-se em Sgu, onde vive até hoje. Em seus retratos, identificamos características comumente atribuídas a Keïta, incluindo o uso de adereços associados à modernidade, a fim de reforçar a posição social almejada por seus clientes. Entre relógios, guitarras e motocicletas, estava também o aparelho de rádio.
Assim como a fotografia, o rádio foi introduzido na África para atender a interesses do regime colonial. Pouco a pouco, uma série de programas voltados a temas como agricultura, higiene, saúde e economia foram destinados às comunidades locais. No Mali, as difusões começaram a operar em 1957 e expandiram-se com a inauguração da Radio Nationale logo após a independência, em 1960. Lá, como em outros países do continente, as emissões de rádio ocuparam um papel central nas redes de comunicação rurais e urbanas. Nas fotografias realizadas por Kouyaté, Keïta e tantos outros retratistas, a presença do aparelho de rádio reforça a asserção de uma identidade moderna de si. Essa atitude é associada, por Candace Keller, ao ímpeto de fadenya – conceito que expõe as disputas no seio das fratrias mandês, em contextos de poligamia. Filhos do mesmo pai, mas de mães diferentes, reivindicam a sucessão do clã em um processo de emancipação que se projeta, metaforicamente, no cosmopolitismo atribuído à Bamako de meados do século XX. Embora associado à rivalidade e ao antagonismo, tal comportamento também pode ser visto como catalisador de mudanças sociais entre os mandês: “Keïta fotografou clientes vestidos com ternos europeus, com materiais de apoio ou adereços de estúdio, como câmeras, relógios, rádios e ciclomotores. Com o ímpeto de fadenya, esses indivíduos buscavam novas representações de si mesmos, que evocassem afluência, sucesso e instrução, sugerindo um acesso cobiçado a oportunidades socioeconômicas concedidas apenas a um grupo seleto nessa época”.
A cena de alfaiataria retratada por Hamidou Maïga, em seu estúdio de Bamako, alude ao princípio de fadenya que, por sua vez, perpassa a trajetória pessoal do próprio fotógrafo. Nascido em Burkina Faso em 1932, no seio de uma família de pedreiros, Maïga deixou o país natal para instalar-se no Mali no final dos anos 1950. Lá, iniciou sua carreira como fotógrafo profissional e percorreu diversas comunidades ao redor do rio Níger. Em 1973, fixou-se em Bamako. Foi nesse momento que fotografou em seu estúdio o grupo de rapazes teatralmente posicionado sobre o fundo de tecido pintado à mão. Caracterizados à maneira ocidental, com calças boca de sino e camisas de algodão, três deles ajustam o terno portado pelo personagem ao centro da cena. Sua postura e seu olhar intrépido manifestam o dinamismo social aspirado pelo homem urbano na sociedade maliana.
Embora a fotografia africana tenha sido majoritariamente descrita a partir dos seus usos nas cidades, o trabalho de fotógrafos como Adama Kouyaté e Hamidou Maïga lança luz sobre cartografias expandidas dessa modernidade. Em sua pesquisa pioneira sobre o retrato de estúdio no Senegal, Giulia Paoletti reforça essa tese ao dissociar “a modernidade fotográfica da vida urbana e considerar a possibilidade de outros gostos e estilos rurais”. Paoletti se debruça sobre o trabalho de fotógrafos como Oumar Ka, que percorreu pequenas comunidades senegalesas retratando seus clientes em enquadramentos abertos à paisagem circundante. Suas imagens oferecem ao espectador vestígios dessa cena rural, como o retrato das duas mulheres que posam diante de um fundo monocromático a recobrir modestamente uma casa de palha. Em vez de restringir o corte da imagem à neutralidade de um cenário fabricado, como fizeram muitos dos seus contemporâneos, Oumar Ka revelava propositalmente o entorno dos retratados: “Seus enquadramentos abertos permitem vislumbrar a arquitetura local, interiores privados e paisagens amplas. Na proporção espacial desigual entre o retratado e a paisagem, a fascinação de Ka com o ambiente, ou o que ele chama de ‘decoração’, vem à luz”.
Esse esquema visual se manifesta, inclusive, em muitos dos autorretratos realizados por Ka ao longo dos anos 1950 e 1960. Segundo Paoletti, vários deles foram ofertados aos seus clientes, em uma estratégia de autopromoção que revela o entendimento preciso do lugar social ocupado pelo fotógrafo. Tal compreensão tangencia os diversos matizes da autorrepresentação no continente. Consideremos, por exemplo, o trabalho de Samuel Fosso (Camarões, 1962). Radicado na República Centro-Africana, em decorrência da Guerra do Biafra (1967-1970), ele começou a se fotografar aos 13 anos, em seu próprio estúdio. À noite, após o expediente comercial, Fosso realizava autorretratos para enviar aos membros da sua família na Nigéria, acumulando um vasto acervo de imagens. Sua primeira exibição pública aconteceu na Bienal de Fotografia de Bamako, em 1994, quando Fosso afirma ter começado a se reconhecer como artista. Ao longo desse processo, ele passou a radicalizar o caráter performático de suas cenas, inaugurando uma espécie de versão emblemática do autorretrato africano, posteriormente refutada pelo próprio fotógrafo. “Não faço fotografia africana. Faço fotografia, e ponto final”, declarou Fosso em entrevista recente.
Malick Sidibé, por sua vez, recusou a noção de uma estética africana per se ao conceber imagens que negam ao Ocidente o exotismo que tanto havia cobiçado. Na série Vue de dos, realizada nos anos 2000, Sidibé fotografou amigos e familiares de costas para a câmera, de maneira a não revelar ao espectador a identidade dos seus personagens. Ao guardar para si as expressões, os gestos e as características faciais dos sujeitos, o fotógrafo questionou as versões institucionalizadas do retrato de estúdio. Embora essa proposta seja, de certa forma, transgressora, não podemos esquecer que o trabalho de Sidibé e de seus contemporâneos sustenta uma estética paradigmática, amplamente contestada pela nova geração de fotógrafos africanos. Muitos deles, lembra a curadora nigeriana Bisi Silva, encontram dificuldade em despertar o interesse das plataformas internacionais para seus trabalhos. “Parte de mim quer reinventar [esse] grande patrimônio da fotografia na África”, declara o fotógrafo senegalês Omar Victor Diop. Junto a nomes como Ibrahima Thiam, Fatoumata Diabaté e Oumou Diarra, Diop pertence à seara de jovens fotógrafos que – ao contrário dos que recusam a tradição do retrato de estúdio – revisitam o gênero em seus trabalhos mais recentes.
No ensaio Studio photo de la rue (em curso), Fatoumata Diabaté realiza intervenções nas quais convida passantes a posar diante de um estúdio itinerante composto por cenários de tecido instalados ao ar livre. A fim de “fazer reviver” a experiência do retrato fotográfico dos anos 1950, Diabaté sugere diversos adornos que, integrados à montagem do estúdio, compõem uma espécie de performance. Diabaté tira partido do enquadramento aberto, incluindo elementos externos à cena, assim como fazia Oumar Ka nos anos 1960. Em um de seus retratos, um homem recoberto por uma matéria branca, à direita da personagem em destaque, dá as costas ao espectador para mirar-se no espelho. Quem sabe esse mesmo espelho tenha sido utilizado, minutos antes da tomada, para produzir o visual da moça que segura um relógio ao centro da imagem?
Uma das poucas mulheres retratistas do Mali, Diabaté conviveu com esse gênero de retrato desde a infância. Seus pais foram fotografados por Seydou Keïta, que havia sido vizinho de sua família, em Bamako. “Tornei-me fotógrafa profissional e criei esse estúdio para homenagear os grandes mestres do gênero, além de manter viva a tradição que ocupa um lugar muito importante na minha cultura”, conta ela. No Senegal, o fotógrafo Ibrahima Thiam vivenciou uma história semelhante. Fascinado pelas imagens do seu acervo familiar, Thiam expandiu essa coleção pessoal com fotografias realizadas por autores como Mama Casset e Oumar Ka, entre outros. Na série Portraits-vintages, Thiam sobrepõe essas imagens aos rostos dos sujeitos retratados, conferindo-lhes uma segunda vida.
Em seu Studio des vanités, Omar Victor Diop faz referência a essa cultura visual e acrescenta cor ao estilo de retrato preconizado por seus antecessores. Aqui, a cor informa não só um distanciamento do cânone, mas também oferece uma alternativa ao lugar-comum nas representações e narrativas sobre a África. Os sujeitos retratados por Diop são, em grande parte, provenientes da cena urbana de Dacar, e partilham com ele a aspiração por um continente promissor, livre dos clichês da fome, do subdesenvolvimento e do atraso econômico que marcaram as narrativas midiáticas e humanitárias do último século. Entre essas personalidades, está a blogueira e produtora cultural Ken Aïcha Sy. Filha de El Hadji Sy – pintor e um dos atores fundamentais da cena artística senegalesa no contexto pós-independência—, Aïcha busca dissociar-se do paradigma da autenticidade (assim como seu pai o fizera), para a construção de um trabalho aberto às linguagens e aos temas contemporâneos. “O mundo espera que [um africano] faça um produto africano, quando isso não significa nada”, reitera.
Ao largo de um consenso, os debates sobre o papel da África nas geografias da globalização seguem em curso. Okwui Enwezor está entre os intelectuais que se contrapõem à negação absoluta da “africanidade” e argumenta a favor de uma especificidade epistemológica no campo das artes visuais e das ciências sociais. Para ele, os estudos africanos conformam um campo disciplinar em sua totalidade, sem o qual “nunca será possível integrar artistas ou o pensamento africano à cena global”. A noção de afropolitanismo, por sua vez, aponta uma via para a compreensão de uma África cosmopolita, multilíngue e multiétnica. Sob esse prisma, cidades como Dacar ou Bamako são emblemas de um continente cada vez mais urbano e diverso. Suas cenas culturais – caracterizadas pela confluência de patrimônios ancestrais e práticas criativas permeadas por migrações e diásporas – seguem sendo palco de partilhas de todas as ordens.
As poéticas visuais que pautam o trabalho de Seydou Keïta e seus pares inscrevem-se nessa paisagem política e social. É a partir dela que traçamos as possíveis rotas da fotografia de estúdio no oeste da África. Narradores de si, comentadores visuais de uma modernidade nascente ou arquitetos de um futuro incerto, os atores dessa história não se contentam em ilustrar agendas ou discursos de inclusão. Suas práticas nos mostram, ao contrário, a urgência de serem revisadas continuamente as versões cristalizadas do moderno, e seus desvios.///
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Mais informações sobre a exposição Seydou Keïta no IMS Paulista aqui.
Em maio, Sabrina Moura irá ministrar o curso Modernidade, retrato e fotografia de estúdio na África Ocidental no IMS Paulista. Mais informações aqui.
Sabrina Moura é curadora e pesquisadora. Doutoranda no Departamento de História da Unicamp, realiza pesquisa sobre a Bienal de Dacar (Senegal). Foi pesquisadora visitante no Instituto de Estudos Africanos da Universidade de Columbia, em Nova York.
Tags: catálogo, exposição, fotografia africana, fotografia contemporânea