O invejável René Burri
Publicado em: 22 de outubro de 2014A morte de René Burri aos 81 anos, no dia 20 de outubro, faz com que vá desaparecendo lenta e dolorosamente uma geração de fotógrafos que contribuiu para a afirmação da fotografia jornalística e documental como meio de expressão independente e de caráter autoral.
Burri foi um dos mais destacados membros da agência Magnum, ao lado de Henri Cartier-Bresson, Robert Capa, Sergio Larrain e de tantos outros. Viajou pelo mundo retratando inúmeras personalidades importantes da história do século XX; sem se esquecer, no entanto, de caminhar pelas ruas, essa fonte inesgotável de surpresas que revelam e iluminam a aparente desimportância da vida cotidiana.
Esteve no Brasil diversas vezes fotografando Brasília, Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro, mas jamais o encontrei. Entretanto, mesmo assim, somente ao apreciar suas fotografias desenvolvi meu sentimento mais forte em relação a este grande fotógrafo: a inveja. Mas rapidamente explico – como já expliquei certa vez ao blog OlhaVê quando me perguntou qual fotografia eu gostaria de ter feito: não se trata de um sentimento condenável, pelo contrário, trata-se de profunda admiração misturada à frustração de não ter sido eu o autor desta ou daquela imagem de René Burri.
Há as fotos que ele fez da inauguração de Brasília, mas eu ainda era muito jovem para tê-las feito. Assim como a da avenida São João, em São Paulo, e a do Ministério da Educação e Cultura, o MEC, hoje Palácio Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro, sendo esta a minha perdição. O MEC, uma belíssima construção projetada por Lucio Costa, Oscar Niemeyer e equipe, sustentada por enormes pilotis que o fazem levitar do solo, permitindo que a luz e a brisa resvalem entre eles, é, certamente, um dos marcos da arquitetura modernista mundial.
Pois foi nesse cenário único que René Burri soube intuir, adiantar-se no tempo para flagrar aquela cena luminosa em que um grupo de rapazes observa, interessado, algumas moças que por ali passavam como que seguindo os rastros de luz projetados sobre o chão (inevitável não lembrar o verso “tu pisavas nos astros, distraída” de Orestes Barbosa em “Chão de estrelas”). Tudo e todos estão no espaço e no tempo em seus devidos e mais perfeitos lugares, compondo uma cena incapaz de ser repetida no vai e vem dos pedestres e dos murmúrios da cidade. Pois bem, tive de me render à magia do olhar deste grande mestre e me conformar em não ter sido o autor dessa foto, exemplo muito bem acabado de que a fotografia é essencialmente a capacidade de saber ver, ou ainda, que é algo fundamentalmente construído com o olhar.
Nesta hora de grandes mudanças que ocorrem na forma de entender o que é criar em fotografia, cada vez mais admiro o trabalho de René Burri e de tantos outros fotógrafos de sua geração que souberam ver e documentar, de forma consciente, o mundo em transformação. Daqui em diante, quem estará fazendo isso? Desculpem-me a preocupação talvez indevida e o saudosismo, espero que sadio…
Cristiano Mascaro é fotógrafo.