O espetáculo da vacina
Publicado em: 8 de fevereiro de 2021
A imagem não é apenas informação de primeira mão. Ela, ao mesmo tempo que informa, produz conteúdo que se expressa por meio dos artifícios de cena, das montagens, dos estilos, dos adereços e dos detalhes cuidadosamente arquitetados. Nesse sentido, e como mostra o autor argentino Alberto Manguel, as imagens são atos, “propostas narrativas”, que podem ser lidas de maneira vinculada ao contexto do qual fazem parte, mas também com relativa autonomia. Tanto que, segundo Ernst Gombrich, no livro Arte e ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica, elas em geral falam mais entre si do que com seu contexto propriamente dito, adicionando, assim, novos significados a partir de uma lógica e de um processo visual.
Esse é o caso das aqui chamadas imagens da vacina, que podem ser entendidas como séries fotográficas. Todas elas foram tiradas no espaço de dois dias – 17 e 18 de janeiro de 2021 –, em ocasiões em que se prepararam grandes encenações do poder: era hora dos governadores e do ministro da Saúde se apossarem delas, para que reforçassem suas próprias legitimidades, nesse contexto em litígio e desvantagem, graças à proeminência do governador de São Paulo, que assumiu o protagonismo. Por isso, valeu de tudo: vestir camiseta do SUS ou de seu estado, posar ao lado do ministro ou de aviões de carga, usar roupa militar ou terno… Tudo condizendo com o perfil do político e com a representação que se queria passar.
Como veremos, ao mesmo tempo que plasmam uma realidade, tais imagens criam valores e verdades buscando estabilizar situações muitas vezes instáveis, ainda mais nesse momento conturbado da pandemia e da vacinação pública no Brasil. A qualidade performativa e metafórica das fotografias fica evidente nesses documentos que pretendem dar posteridade a políticos que buscam, como veremos a seguir, a centralidade nessas representações visuais.
As imagens que apresentaremos a seguir podem trazer certas particularidades, mas seu conjunto guarda padrões de intenção, fazendo um paralelo com o famoso conceito utilizado pelo historiador da arte inglês Michael Baxandall, o de que nelas subjaz uma intenção comum visando à liderança numa cena que, de fato, não pertence a ninguém. Elas criam também um padrão, com certos elementos reiterados: enfermeiras, pacientes, ambiente em geral asséptico, e os políticos celebrando a ação. A vacinação pública precisa ser de fato pública, da comunidade, para que produza a imunização necessária. Tudo muito distante do que dizem e fazem esses documentos que pretendem jogar luz em indivíduos, não na coletividade: em geral, vemos políticos homens, de classe média e brancos. Ao lado deles, estão os pacientes: esses, sim, escolhidos em função da representatividade populacional brasileira, dentre mulheres negras e indígenas, homens pobres e profissionais da saúde que, momentaneamente, invertem seus papéis profissionais. No jogo de intenções entre eles é que podemos aferir a eficácia da fotografia no presente com endereçamentos ao futuro.
Tratam-se, na totalidade, de imagens publicadas nos jornais, mas sobretudo, nas redes sociais, nas contas pessoais de governadores dos estados brasileiros, em páginas abertas com, grande parte delas, centenas de milhares de seguidores. Certamente foram imagens produzidas por seus assessores, pessoas que naqueles eventos cumpriam objetivos previamente planejados, em alinhamento com as expectativas de seus chefes. Portanto, não há nada de inocente em nenhuma delas. Nosso objetivo neste artigo é justamente analisar tais fontes com vistas a desvendar estratégias comuns – que compõem verdadeiros estilos próprios – mas também iniciativas mais particulares e afeitas metaforicamente aos lugares sociais e geográficos que remetem. Propomos, assim, ler essas imagens na busca dos padrões de intenção que presidiram seus atos de produção e de divulgação. Toda foto guarda o seu segredo, mas nessas imagens do poder o truque é tornar um suposto silêncio em uma festa ruidosa e escancarada.
A política é ação simbólica e lugar do espetáculo onde a vacina virou personagem coadjuvante. Do conjunto de imagens, depreende-se uma certa teatralização do Estado e do poder. A capacidade de encenar permite vacinar os políticos contra a mortalidade fácil de seus destinos e garantir protagonismo numa agenda atrasada e falha. Nada como a fotografia para transformar o efêmero em derradeiro.
E assim começa o espetáculo
As primeiras imagens divulgadas da vacinação no Brasil revelam, logo de partida, um traço comum presente em todos esses eventos. Em São Paulo, em cerimônia realizada no Centro de Convenções do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, o governador do estado, João Doria, posa para a fotografia oficial com a primeira pessoa vacinada no Brasil. Fica evidente nos elementos cênicos arregimentados para que se chegue à “melhor imagem” que o governador busca reivindicar para si a vitória, a detenção do marco histórico da vacinação para a covid-19 no Brasil. Em claro antagonismo ao presidente Jair Bolsonaro, Doria, na composição visual, vai além dos limites simbólicos de seu estado. Na verdade, de olho nas eleições de 2022, ele se projeta nacionalmente. Usa uma camiseta azul com a bandeira do país e abusa do slogan “a vacina do Butantã é a vacina do Brasil”.
O governador de São Paulo também preparou com cuidado o fundo verde – em mais uma alusão à bandeira do Brasil –, para contracenar com as pessoas que aparecem na foto oficial. Também incluiu logos do estado de São Paulo sempre visíveis e há de ter selecionado a dedo suas “modelos”: duas mulheres, uma branca e uma negra. Se não foram muito divulgados dados da profissional de saúde que aplica a vacina, que inclusive aparece sempre meio de lado nas imagens, já o nome da pessoa que recebeu a vacina correu o Brasil. Ela é Mônica Calazans, tem 54 anos, é enfermeira de UTI, voluntária na testagem da vacina, moradora da periferia e negra. Tal fato não passou desapercebido e, ao contrário, gerou muita reação a favor e contra. Partidários de Bolsonaro voltaram ao surrado discurso de que a “cor” não importa e que só existe uma raça: a humana. Mas mostraram que estavam errados, pois, se o tema não fosse relevante – e sabemos que só existe uma raça biológica, mas muitas raças sociais devidamente hierarquizadas –, a foto não teria sido tão vitoriosa. Como mostra Baxandall, a qualidade de uma imagem é aferida pela maneira como ela cumpre com seus objetivos, expressos ou não. E essa cumpre plenamente. Negra, mais velha, com seus óculos, calça e jaleco branco, para deixar clara a profissão, Mônica viralizou nas redes (bem como o governador, que não deixou de estar perto da ação em um momento sequer, e assim ganhou pontos com ela).
A estratégia publicitária não foi exclusiva de João Doria. No dia seguinte, uma série de imagens foram produzidas e largamente divulgadas nas redes sociais dos governadores de todos os estados brasileiros a partir de uma reunião realizada pelo Ministério da Saúde com o objetivo de formalizar a entrega das vacinas aos políticos das mais variadas regiões do país. O evento em questão parece ter sido pensado para as lentes das câmeras que lá estiveram e procuraram imortalizar a situação. E as lentes efetivamente pensaram e produziram sentidos. Ao redor de uma longa mesa de reuniões montada, de forma improvisada, no Centro de Distribuição Logística do Ministério da Saúde, em Guarulhos, um grupo muito homogêneo em termos de marcadores sociais de sexo/gênero e classe social, composto pelos governadores e o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, posou orgulhoso para as fotografias, com as quais compuseram cenas com grande intensidade ritual. O ato, devidamente eternizado pela fotografia oficial, pretendeu oficializar e divulgar a entrega das vacinas a cada um dos estados da federação, pessoalizados e simbolizados nas figuras de seus governadores e das pequenas bandeiras estrategicamente dispostas para evidenciar a abrangência e a legitimidade nacional do evento. Cada ação retratada parece construir, com o cenário composto por altas colunas de caixas em um galpão logístico, as representações pretendidas com essas imagens. Trata-se de impor aos olhos de quem vê uma narrativa que projeta técnica e eficiência governamental, como peças publicitárias, em meio a um contexto político que vem nos revelando o contrário.
A cena, de maneira voluntária ou não, lembra visualmente a Santa ceia de Leonardo da Vinci, com o general no lugar de Cristo e os governadores como apóstolos. Há, porém, um quê de “em cima da hora” na imagem, com as garrafas de plástico se sobressaindo e uma mesa extra para dar conta do conjunto numeroso de políticos. Ao fundo, caixas que evocam a provisão de vacinas conformam o espetáculo num galpão de Guarulhos. Em pé, quem sabe, os seguranças. Se muitos deles devem ter seguido o pedido do fotógrafo e posam como se estivessem conversando, já Pazuello e os dois governadores que o ladeiam denunciam o artifício da cena e observam diretamente as lentes. O mesmo faz uma mulher ao fundo; aliás, junto com ela, apenas outra colega anônima pode ser vista na cena eminentemente masculina.
As imagens interpretadas, em contexto, falam entre si. Os governadores, um a um, cerimonialmente, posam, junto do ministro Eduardo Pazuello, que, evidentemente agenciando a situação, inclui no seu casaco o emblema do SUS – instituição que ele mesmo alegou querer privatizar. Mas agora a batalha é outra: desvincular o governo de Jair Bolsonaro do perfil antivacina e da campanha do “kit preventivo”, que eles até pouco tempo advogavam.
A montagem, repetida em série, como um cartão-postal de um monumento, parece fazer parte de uma liturgia própria a ser seguida na cerimônia por todos os participantes. Pensaríamos ser as caixas de vacina a expressão maior nessas imagens. No entanto, o que vemos são os governadores e o ministro, organizados com emblemas de seus estados, como os reais protagonistas, fazendo das imagens um artifício no qual o poder pessoal se sobrepõe à vacina.
Além do mais, todos juntos, os governadores devem performar a união em contraposição ao governador de São Paulo, que, no dia anterior, havia roubado a cena ao apresentar-se sozinho, inclusive sem seus assessores. As luzes, agora, deveriam ser apenas para os demais governadores e, claro, para o ministro da Saúde. Enquanto o ambiente criado por João Dória tem tudo para parecer humano, previdente, corajoso, e assim emocionar, a foto dos governadores mostra mais um pelotão higienizado. São frios a mesa, o fundo, o chão marcado provisoriamente com faixas amarelas. As caixas que estão atrás poderiam lembrar uma biblioteca com livros, caixas de qualquer produto acumuladas num galpão. Mas o clima, devidamente especificado pelas legendas explicativas, é outro: nesse caso, precisa parecer tão urgente como asséptico. E é certo que essas imagens em particular não causaram comoção.
No conjunto, as fotografias manuseadas pelos governadores, no seu ato próprio de congelamento no tempo, parecem buscar a estabilização de mensagens, procurando revestir de aparente coesão um processo que, em si, vem se apresentando repleto de tensões, disputas e contradições. Sendo assim, pensando com Pierre Bourdieu, essas imagens podem ser confrontadas como provas, documentos oficiais, verdadeiros “certificados de realismo” que guardariam o poder do dizer oficial e legítimo. Não se menciona o ato do dia anterior, até porque o governador de São Paulo fez questão de não comparecer ao evento em Guarulhos – alegou estar com a agenda cheia e enviou o vice. No entanto, é evidente a batalha de imagens empreendida nessa ocasião. Afinal, estava em questão estabelecer a primazia no comando da vacina e, assim, o direcionamento político.
A composição cênica, intensificada pelo enquadramento sempre seletivo das fotografias, forçaria, ainda, a presença de um sentimento de integração nacional, algo tão fragilizado recentemente pelas disputas em curso entre o governo federal e os estados, entre o presidente da República e os governadores. Nada espontâneas, essas imagens, muito mais do que ilustrativas, atuam como importantes instrumentos disponíveis às intenções de poder daquelas pessoas que para elas posam. Nesse caso, os modelos são majoritariamente homens de meia-idade, com seus ternos cinzas, mais parecendo uniformes que representam a imagem e semelhança do misógino governo Bolsonaro. Isoladas, as poucas mulheres estão claramente subordinadas e permanecem de pé. Aliás, diferente da obra de Da Vinci, nesse caso, o traidor não se sentou à mesa: faltou, fragorosamente.
E o espetáculo continua…
No ato seguinte, o palco passa a ser o dos aeroportos dos estados. Mas os atores que protagonizam as cenas continuam sendo os governadores. Com as imagens, divulgam e celebram simbolicamente a chegada das primeiras vacinas em seus estados e buscam dar um jeito de esconder o atraso da operação. As cenas de embarque e de desembarque compõem um repertório de significados que adiantam, sob a coordenação pessoal e corpórea dos governadores, a vacinação em si. Mas também estão, com certeza, adiantando as suas possíveis campanhas eleitorais num futuro próximo.
Na composição das cenas retratadas, vemos aviões robustos da Força Aérea Brasileira, soldados, policiais militares, policiais federais, alguns armados, todos eles posicionados próximos e, em certos casos, até em relação direta com os governadores. O fazer logístico, nesses casos, é representado não somente pela literalidade dos atos de transporte da carga mas também, e decisivamente, por toda uma organização nas entrelinhas que encena e enfatiza os sentidos do controle e do poder, convertendo as atividades de transporte em um espetáculo em que a força do Estado predomina. Uma atividade bélica e coerente com o linguajar do governo que, com frequência, usa esse tipo de metáfora.
Na falta de aviões da Força Aérea Brasileira, destacam-se também as aeronaves da empresa Azul, linha aérea cujo dono tem aberta relação com o governo de Jair Bolsonaro. Veículos oficiais, objetos, indumentárias, emblemas e, mais uma vez, as bandeiras dos estados reforçam a mensagem de ordem, controle e segurança, valores aparentemente elencados para representar, sob o ponto de vista militar, o que pretende ser o processo da vacinação no Brasil: tudo pacífico e controlado, como se fosse uma parada militar. Para isso, as imagens precisam remontar os padrões reconhecidos de enfrentamento de obstáculos na forma de uma guerra organizada a partir de missões e batalhas. Sabemos que tais categorias compõem a retórica do atual governo, formado, em partes generosas, por militares da reserva e da ativa que não acreditam em democracia e na participação; preferem a ordem.
As imagens se fazem também presentes nas contradições que enfrentam e propositadamente ocultam. Nada nessas séries fotográficas denota o que a situação de fato representa: um país que demorou a agir, que tem um governo declaradamente antivacina, que acredita em tratamento precoce com produtos não autorizados pelos especialistas da saúde e que desdenhou dos esforços alheios. Nesse momento, o que vale é capturar as imagens e tentar reverter o que os documentos escritos atestam. A aposta é no visual e no seu poder sintético e midiático, que coaduna com o populismo do presente.
Os governadores fazem de tudo um pouco. Uma imagem mostra o governador do Acre, Gladson Cameli, posando para a foto em uma das portas do avião da Força Aérea Brasileira. Em outra, o governador interino do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, toca com as mãos as caixas de vacinas, como se as inspecionasse. Renan Filho, governador de Alagoas, posa, aparentemente para várias câmeras, segurando uma ampola da vacina. As montagens que percebemos, no seu todo, expressam um sentido de vitória, como se houvesse uma espécie de corrida interna pela publicação das imagens. Resta-nos perguntar a essas imagens: quais vitórias estão realmente em jogo?
Por meio de acenos ou da mera observação dessa que mais se parece uma operação militar estratégica, os governadores fazem das fotografias um locus de projeção de si próprios, encenando momentos que denotam, simultaneamente, o comando sobre o processo, o trabalho duro e o orgulho pelo marco histórico em questão. Fazendo o V da vitória, levantando as mãos em sinal de júbilo, mostrando a preciosa vacina, batendo palmas e olhando de soslaio para as câmeras fotográficas, cumprimentando os modelos e mostrando intimidade e afeto, os políticos parecem assim querer esquecer do passado e viver do presente.
Não por acaso, o general Pazuello, entrevistado no dia da foto em Guarulhos, declarou: “Ontem é passado, coisa de historiador”. Não é, pois o nosso presente está cheio do passado. Dele vieram o autoritarismo, a misoginia, o racismo, o machismo e o bolsonarismo, todos fenômenos e estruturas presentes nas fotos. Por isso elas funcionam como sintomas do projeto de Estado visionado por esse governo.
Palcos, palanques e altares
Ainda no dia 18 de janeiro, as vacinas começaram a ser aplicadas – era preciso correr com as imagens para tirar o protagonismo do governador de São Paulo. Em todos os estados, os locais da primeira aplicação, bem como os primeiros pacientes, foram cuidadosamente escolhidos, planejados e pensados para um fim especial: a realização das primeiras fotografias da vacinação, que não deveriam deixar margem para qualquer dúvida ou contestação. O tom precisava ser de euforia, júbilo e patriotismo, buscando reverter a queda na popularidade do governo e de seu chefe do executivo, que cotidianamente conspirara contra a vacina: falar de contraindicações sem se referir às vantagens; minimizar a letalidade da doença e os seus efeitos.
No dia anterior, o evento orquestrado pelo governador João Doria já provara a força dessas primeiras imagens: documentos, verdadeiros atos e artefatos simbólicos cuja eficácia potencialmente visara converter uma cena local em espetáculo nacional, fazer de um fato isolado um marco emblemático. Era preciso, portanto, correr atrás do atraso, e os demais governadores do país parecem ter seguido à risca o roteiro protagonizado em São Paulo na produção de suas próprias imagens, alguns procurando demonstrar não se tratar de um feito exclusivo daquele governador. Afinal, todos queriam um lugar especial na fotografia da vacina que, sim, salvaria vidas mas também garantiria a popularidade desejada por qualquer político no poder.
As cerimônias, vistosas e animadas, que marcaram as primeiras aplicações da vacina em cada estado foram, em sua maior parte, realizadas em hospitais, dando confirmação ao programa nacional de imunização do governo federal, que define como prioritária a vacinação de profissionais da saúde. Já nas primeiras imagens da vacinação, percebemos padrões estéticos e, claro, de intenções. Pequenos palcos ou palanques foram erguidos, biombos instalados de maneira a impedir que ficassem claros os artifícios criados para esse contexto sugeriam a existência de uma plateia e de um foco de expectativas e atenções. Em sua maior parte, painéis de fundo bastante iluminados e coloridos compunham o cenário, exibindo as logomarcas oficiais dos governos estaduais, do governo federal e, em alguns, do Sistema Único de Saúde (SUS). Frases foram estampadas. No Pará, propagandeou-se que a vacina seria para todo o estado. No evento do Paraná, lemos: “População protegida”. Em Goiás, a mesma frase presente no painel estampou a camiseta do governador: “Vacinar salva vidas”, seguida pela hashtag “Vacina Goiás”. No Maranhão, o governador Flávio Dino, posando ao lado da primeira indígena vacinada no estado, Fabiana Guajajara, vestiu também um colete com a marca do SUS. No Espírito Santo, uma dedicada agente de saúde capricha na vacinação de uma enfermeira negra, enquanto o governador, de terno, se esmera na salva de palmas. Em todos os casos, o cenário parece peça indissociável dos atores, em especial dos protagonistas do espetáculo em curso. A euforia muitas vezes toma o lugar dos hospitais, que somem nas imagens, uma vez que ficam evidentes os palcos artificiais montados para compor o clima necessário.
Esses arranjos e suas encenações remetem ao universo dos antigos “salões de poses”, estúdios comerciais em parte responsáveis pela penetração popular dos retratos fotográficos no Brasil a partir da segunda metade do século 19. As imagens produzidas, sobretudo aquelas conhecidas como cartes de visite, obedeciam a padrões estéticos e intencionais mais ou menos fixos e previamente ensaiados. Nelas, os cenários artificiais pintados, as indumentárias elegantes, os adereços e o mobiliário luxuosos marcavam a produção de retratos teatralmente construídos a partir de padrões e modismos estéticos um tanto quanto europeizados sob o ponto de vista da burguesia local, que tinha, no limite, o privilégio de bem escolher a paisagem de fundo da foto: das montanhas alpinas, passando por cenários tropicais ou sisudas colunas gregas. De forma bastante semelhante às imagens que analisamos aqui, a carte de visite figurava verdadeiros acontecimentos, com o intuito marcante de, além de autoapreciar o retratado, pretender a posterioridade, ou seja, um legado visual profundamente marcado por valores contextuais. Cada cliente tinha o privilégio de escolher como queria ser representado, onde morava seu desejo.
Nas imagens que aqui lemos, com as ressalvas do salto no tempo, notamos algumas semelhanças relevantes. Os cenários pensados e construídos exclusivamente para os fins das primeiras fotografias da vacinação servem ao controle e enquadramento estético e moral das imagens. Assim, em poucos casos podemos enxergar o espaço atrás e ao redor da cena pretendida. Na verdade, essas são imagens “sem tempo” e, portanto, servem para “qualquer ocasião”. O segundo plano é pretensamente neutro, pois pretende destacar as figuras, e não tanto o fundo, que deve apenas trazer informações úteis e necessárias para a rápida decodificação das imagens por parte da população.
Uma diferença importante, em relação ao daguerreótipo do século 19, é o tempo de exposição das lentes. Enquanto nos oitocentos as lentes se abriam e fechavam muito lentamente, permitindo por vezes que os “modelos” agenciassem as fotos, performando gestos não esperados pelo profissional da foto e pelo comitente, no caso das imagens do século 21 quase não há espaço para esse tipo de manipulação. Isto é, o espetáculo será da maneira que seus clientes assim desejarem.
Os figurantes – entre governadores, secretários de saúde, médicos, enfermeiros e, claro, as pessoas vacinadas – posam sorridentes para as fotos. Os governadores, em geral, são retratados aplaudindo a vacinação. Alguns, como o governador do Paraná, Ratinho Junior, eleva os braços em sinal de vitória, como se estivesse em alguma espécie de competição premiada. A primeira pessoa vacinada no estado, a enfermeira Lucimar Josiane de Oliveira, de 44 anos, quase não se destaca na imagem. O governador de Santa Catarina, Carlos Moisés, e o governador de Sergipe, Belivaldo Chagas, fazem um cumprimento de punhos com os primeiros vacinados, aceno típico dos novos padrões de distanciamento físico impostos pela pandemia. O gesto, sabemos, também pode expressar o compartilhar de uma vitória alcançada. E, claro, todos portando máscaras, o que não seria o caso, em outros momentos, se lembrarmos do papel de alguns desses políticos, que fizeram campanha aberta contra o uso desse tipo de acessório, necessário ao combate da covid-19.
As pessoas vacinadas também foram devidamente instruídas e vestidas nessa arte de fazer passar uma mensagem subliminar. Se as roupas dos políticos parecem bastante neutras e monótonas – ternos bem-cortados, camisas ajustadas ou coletes do SUS –, as camisetas vestidas pelos pacientes também ganham espaço importante para a leitura da imagem: verde como o Brasil, penas para destacar a etnia, branco para deixar clara a profissão.
Em alguns casos, esses verdadeiros rituais fotográficos alcançaram encenações especiais. As imagens do Rio de Janeiro, por exemplo, tiveram repercussão internacional. Nelas, Dulcinéia da Silva Lopes, mulher negra, técnica de enfermagem de 54 anos, e Terezinha da Conceição, de 80 anos, beneficiária de um programa social para idosos da prefeitura, foram as primeiras a serem vacinadas. Mas logo desapareceram, vencidas pela grandiosidade do espetáculo. O palco, dessa vez, foi o Cristo Redentor, no morro do Corcovado, um dos cartões-postais mais conhecidos do mundo. Não por acaso, em épocas de crise do estado carioca, muitas vezes o Cristo foi utilizado para propaganda contrária: chorando, de braços para baixo, ou com máscara. Dessa vez o espetáculo era outro. Sob o foco de muitas câmeras, inclusive posicionadas em drones, o governador interino do estado, Cláudio Castro, e o prefeito da capital, Eduardo Paes, posaram para as fotografias.
Assim como nas outras ocasiões, o cenário onde o palco é montado possui atuação decisiva no planejamento e na qualidade performativa, literal e metafórica, pretendida com as imagens. No caso do Rio, além da dimensão monumental, o Cristo Redentor é um objeto da prática devocional, símbolo contundente que expressa valores de matriz cristã. Trata-se de um Cristo que olha para a cidade e, de braços abertos, de baixo para cima, é visto por acolher, receber e proteger a população. Na cena, o palco da vacinação pode ser percebido igualmente como um altar, e a cerimônia, pelo menos em parte, como religiosa. Além dos políticos, das pessoas vacinadas e dos profissionais da saúde presentes, o arcebispo do Rio de Janeiro, dom Orani Tempesta, também posou para as fotos. A montagem da cena fica ainda mais evidente quando acompanhamos o olhar das pessoas que ganham o centro da cena e uma certa confusão que ocorre do lado esquerdo da foto. Nesse caso, as luzes estão direcionadas para os políticos, e não se vislumbra tanto as pessoas que recebem a vacina. O elevado potencial espetacular dessas representações poderá incrementar a divulgação dos indivíduos retratados, inclusive, internacionalmente. A disputa pelo foco torna-se mais intensa.
O endosso religioso-cristão também foi visto no Pará, onde o governador Helder Barbalho rezou o pai-nosso com as mãos postas sobre as caixas de vacina, que por ele passavam como uma procissão. Mesmo sabendo que o Brasil é um estado laico, e seguindo a orientação do próprio presidente, o ritual virou evangélico, com as cargas de vacina funcionado como ícones a orientar a compreensão da foto. Por algum “milagre”, o Pará seria vacinado e se veria livre da pandemia. Não há sinais da ciência, representada em outros estados pelos profissionais da saúde, pelos ambientes higienizados dos hospitais e dos pacientes com seus braços prontos para tomar a picada. Nesse caso, o responsável é Deus, e nada lembra uma campanha sanitária de emergência, um programa científico e que segue a orientação da Organização Mundial da Saúde. Há, pois, em muitos casos, uma recusa da ciência e um pé no milagre.
Fica evidente como as imagens, ainda mais em contextos e ocasiões específicas, produzem, ativamente, por meio de suas representações, realidades. Nesses casos, elas falam e exercem poder. Observamos, novamente, que os governadores, posicionados quase sempre ao centro das fotografias, junto às pessoas vacinadas, e por vezes sozinhos, reivindicam, performativamente, o protagonismo dos eventos; um lugar determinante no marco histórico das vacinas. Essas imagens podem ser pensadas, portanto, como verdadeiras mensagens, “recados”, no sentido de Guimarães Rosa, endereçadas ao futuro, tal como faziam as teatrais cartes de visite no passado. No caso da vacinação, podemos refletir sobre os proveitos imediatos – com os políticos disfarçando a crise e, ao contrário, acharem nela uma vantagem em termos de popularidade – e futuros, com todos de olho no pleito de 2022.
Num caso especial de pretensão de protagonismo, Ronaldo Caiado, governador de Goiás, aplicou ele mesmo a vacina em Maria Conceição da Silva, de 73 anos e moradora de um abrigo para idosos. Interessante pensar que Caiado vinha se identificando ao bolsonarismo e, portanto, busca com o ato se desvencilhar dessa que virou uma pecha em tempos de pandemia. Busca mais passar a imagem de técnico e cientista vinculado aos ganhos dela. Pode-se ver como ele tirou apenas o paletó do terno, mas continua com as calças do mesmo, bem como a camisa, apenas disfarçada pela camiseta que unifica a todos: políticos e pacientes. A artificialidade e montagem da foto é flagrada pelo sujeito mais à esquerda. Enquanto o governador – com sua máscara e proteção extra – parece apenas concentrado em sua função médica, seus dois colegas de atuação lançam seus olhares compungidos para a cena, todos atentos ao ato do governador médico. Já a pessoa à esquerda há de ser o produtor da cena e flagrantemente olha para outro lado. Destaca-se também o teto do que seria uma barraca provisória montada para a circunstância. A voluntária negra olha para frente, provavelmente seguindo as indicações do fotógrafo profissional.
Mas há ocasiões em que nem tudo nessas imagens obedece, à risca, os padrões e as formalidades pretendidas. Existem nelas espaços disponíveis às manobras e aos acidentes do instante, ao contingente e às contradições. Isso acontece, por exemplo, quando, tanto no Rio de Janeiro quanto em Santa Catarina, aglomerações são fotografadas, ainda que usando máscaras. A atitude, sabemos, vai contra os protocolos de segurança definidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS), amplamente conhecidos na pandemia da covid-19, mas que foram solenemente ignorados e até mesmo questionados pelo governo federal sem qualquer respaldo científico. Isso sem considerar as possíveis ocorrências nos bastidores das cenas que as imagens não são capazes ou não querem nos revelar.
No caso acima, vê-se um biombo marcando, mais uma vez, a artificialidade da cena. Todos na imagem aplaudem. São muitos, e não precisariam ser tantos. A quem aplaudem? A nós que consumismo as fotos, às vezes sem atentar para seus artifícios.
Só faltou o presidente
Susan Sontag certa vez afirmou que as fotos nascem para mentir. É fato que toda fotografia traz um desejo, manifesto pelo comitente e contemplado pelo profissional. Mas, ao mentirem, as fotografias acabam por dizer verdades que elas mesmo ajudam a produzir e criar com suas lentes.
Nos casos aqui narrados, as omissões também dizem muito sobre os objetivos das imagens. Isso implica assumir que as fotografias da vacinação são igualmente compostas por aquilo que excluem ou que não retratam. Podemos dizer, por exemplo, que elas são o olhar do fotógrafo que não vemos. São também o que imaginamos estar atrás dos fundos artificiais e das poses planejadas, as intenções e os sentidos presentes além de suas literalidades e visibilidades. Elas podem marcar, de forma deliberada ou não, a presença de ausências.
Nesse processo, algumas ausências e silêncios se tornam muito eloquentes. Esse é o caso do presidente da República, que não saiu em nenhuma das fotografias dessa série que poderia ser chamada “comemorando a vacina”. Aliás, Bolsonaro foi o único presidente a não celebrar a chegada da vacina a seu país. Sobretudo aqueles que se atrasaram nas profilaxias e viram na chegada da vacina uma oportunidade de zerar a conta. As fotografias de pessoas sendo vacinadas têm efeito imediato também naqueles que observam tais eventos: permitem sonhar com uma vida normal, sem o vírus.
Assim sendo, a ausência ruidosa do presidente brasileiro faz soar a campainha oposta. Se o governador de São Paulo pôde comprar vacinas, essa seria a prova de que o governo federal poderia ter feito o mesmo, muito antes e em maiores quantidades? O fato de o presidente, seu chanceler e seu filho terem com frequência se referido à China e aos chineses de maneira nada respeitosa seria uma explicação suficiente para o país asiático demorar tanto a se pronunciar e prover o Brasil com os insumos necessários à produção nacional da vacina? A cena que o Brasil criou com a Índia, sendo o único país em desenvolvimento a se opor ao país numa discussão sobre patentes, nos tornou os últimos da fila?
Antes disso, Jair Bolsonaro, que, no início da pandemia, sentenciou ser a doença uma mera “gripezinha”, fez de tudo para desencorajar a população a se vacinar, afirmando, por exemplo, que “o povo brasileiro não seria cobaia”. Evocou erroneamente conceitos como “livre-arbítrio” para fazer campanha contra a obrigatoriedade da vacina, sem explicar à população do que se tratava e muito menos avisando a seus seguidores que eles tampouco estariam autorizados a entrar em outros países sem um comprovante de vacinação. Em evidente torcida contra o interesse público e a comunidade científica de seu próprio país, ele associou as vacinas à ocorrência de efeitos colaterais graves. Vale lembrar que os imunizantes usados nesses primeiros eventos de vacinação são aqueles que foram tratados por Bolsonaro, de forma jocosa, como a “vacina do Doria” ou a “vacina chinesa”, demonstrando que a corrida pelo palanque eleitoral é mais importante do que a luta contra as mortes decorrentes do coronavírus – além de deixar clara sua xenofobia. Sua e de seu pretenso ministro das Relações Exteriores.
Antes disso, Jair Bolsonaro, que, no início da pandemia, sentenciou ser a doença uma mera “gripezinha”, fez de tudo para desencorajar a população a se vacinar afirmando, por exemplo, que “o povo brasileiro não seria cobaia”. Evocou erroneamente conceitos como “livre arbítrio” para fazer campanha contra a obrigatoriedade da vacina, sem explicar à população do que se tratava e muito menos avisando a seus seguidores que eles tampouco estariam autorizados a entrar em outros países sem um comprovante de vacinação. Em clara evidente torcida contra o interesse público e a comunidade científica de seu próprio país, ele associou as vacinas à ocorrência de efeitos colaterais graves. Vale lembrar que os imunizantes usados nesses primeiros eventos de vacinação são aqueles que foram tratados por Bolsonaro, de forma jocosa, como a “vacina do Doria”, ou a “vacina chinesa” demonstrando que a corrida pelo palanque eleitoral é mais importante do que a luta contra as mortes decorrentes do novo coronavírus – e também deixandoalém de deixar clara sua xenofobia. Sua e de seu pretenso ministro das relações exteriores.
Mas o presidente Bolsonaro também buscou se apossar das fotografias em que está ausente. Se por um lado enfatiza ainda mais essa ausência para o seu eleitorado fanático, fazendo dela uma atitude beligerante, por outro busca preencher politicamente os espaços nas imagens com a presença de seu ministro general, que, como ele mesmo disse, o “obedece”. O ministro, por sua vez, com a ajuda de parte dos governadores, como vimos, tratou de preencher as fotografias com poses oficiais, cumprimentos que acenam e encenam acordos e integração, bandeiras, aviões, soldados, policiais e emblemas do governo federal: um teatro, como vimos, da força e do poder. Além do mais, se tudo correr mal, e coerente com seu estilo de parasitar as conquistas alheias e se ausentar daquelas que deram errado, o presidente já preparou seu bode expiatório da vez e jogará, sem escrúpulo, se necessário, a culpa no colo do general que ocupa indevidamente o ministério da Saúde.
No entanto, para um chefe do executivo que procura o tempo todo estar na mídia, que, seguindo o estilo do defenestrado Donald Trump, acredita que é melhor aparecer – seja por qual motivo for – do que ficar de lado, causa espécie quando “some das lentes”. Ao que tudo indica, Bolsonaro pretendia, com sua ausência, coroar uma política de oposição à ciência, ao governo paulista, ao coronavírus, aos jornalistas e, sobretudo, à vacina.
Mas dessa vez sua estratégia parece ter dado errado, com as pesquisas mostrando uma queda significativa em sua popularidade e multiplicando-se os pedidos de impeachment. Bem que o governo tentou contra-atacar com seu kit de prevenção, ao fazer propaganda fácil afirmando que, a despeito de todas as negativas das autoridades sanitárias, o “tratamento precoce” baseado nos medicamentos Cloroquina e Ivermectina evitaria a pandemia. Chegou inclusive a gastar verba federal para mandar carregamentos com os produtos estocados nos porões de Brasília para Manaus. Não contente, e também com verba federal, chamou um grupo de médicos à capital para que fossem fotografados testemunhando a qualidade do tratamento propagandeado pelo governo.
Médicos e médicas apareceram, então, sem nome, altivos ou sorridentes, tentando mostrar sua expertise e, sobretudo, certeza no tema. Não sabemos seus nomes e, sendo assim, o pretenso anonimato pretendia dar conta de tudo: não seriam opiniões particulares, mas a própria “medicina” falando. Não aquela que vive para se opor ao presidente – como ele sempre alega, procurando acionar a chave da vitimização e assim recuperar seu eleitorado. Mais uma vez, porém, eram os profissionais que apareciam, e não o presidente.
Peter Burke mostrou como marketing político era uma destreza usada pelos chefes de estado desde os tempos da monarquia absoluta. Luiz XIV, segundo o historiador, teria inventado tal arte, sendo imitado por outros regimes. Mas se os monarcas usaram sobretudo a pintura a óleo, e só no final do século 19 se fizeram fotografar – até porque consideravam a fotografia muito passageira quando comparada à pintura –, já os líderes populistas dos anos 1930, 40 e 50 fizeram largo uso da fotografia para expor suas imagens nas mais diversas situações, mas, sobretudo, em ação quando performavam o seu poder. Atualizadas pelos novos populismos autoritários e tecnológicos do tempo presente, esses dirigentes passaram a usar com frequência esse tipo de expediente. São eles à frente dos seus parlamentos ou palácios, são eles que surgem no meio do povo, que inauguram obras, que dirigem, através das imagens, a nação. Abusando do carisma e da fotografia, eles (pois, repetimos, são todos homens e brancos) precisam estar cotidianamente e isoladamente vivendo das imagens para que seu poder continue presente e fazendo diferença. Ao produzirem tais imagens, esses líderes e seus comunicadores profissionais criam também a audiência ou os consumidores que pretendem.
Na Idade Média, os soberanos apareciam em grandes eventos públicos para curar as escrófulas (feridas pustulentas) com seus toques reais. Como mostrou Marc Bloch, o que estava em jogo era a eficácia política do poder simbólico e o resultado pretendia sempre o milagre. Milagre esse confirmado pela presença dos súditos – mesmo se sabendo que aqueles que morriam não voltavam mais a essas encenações. No Brasil, d. Pedro II usou e abusou da eficácia simbólica, valendo-se de artistas, fotógrafos, músicos, e exercendo um mecenato público e privado por sobre eles. Se o monarca não podia estar presente em todas as suas províncias, lá estava o seu retrato. Getúlio Vargas foi outro governante brasileiro que abusou das imagens, sempre ao lado do “povo”, com seu chapéu branco, charuto na boca e expressão confidente. O mesmo fez Juscelino Kubitschek, sempre com ternos bem-cortados e sorriso largo.
De lá para cá, muitos líderes fizeram usos da fotografia, mas nunca como Jair Bolsonaro, que cria sua própria história paralela através das redes que controla e que fazem uso largo das representações visuais. Nelas, ele se porta como “atleta”, se faz fotografar à frente do Planalto, comendo pastel, nadando na praia, andando de jet-ski, cavalgando, batendo continência e posando como imortal. No entanto, sua “eficácia” depende da presença. Ou seja, ele precisa ser o centro das atenções para que o “milagre” não se desfaça e, ao contrário, persevere.
Claude Lévi-Strauss escreveu dois famosos ensaios, chamados “A eficácia simbólica” e “O feiticeiro e sua magia”. Num deles, conta a história de um xamã que não acreditava em seus milagres. Mas quanto mais desacreditava, mais os realizava. Isso porque sua mágica não dependia de poções ou de comprovações. Ele era um grande feiticeiro porque o povo queria que assim o fosse.
Convenhamos que os brasileiros estão cansados e à cata de um bom milagre. Mas, para tanto, precisam do presidente milagreiro sempre à vista. Pandemias são famosas por criarem muito pensamento mágico. Numa sociedade pronta para a vida, momentos como esses causam trauma, insegurança e insensatez também. Nessas horas, não são poucos que procuram por um “mito”, mas que precisa estar disponível em tempo integral. Se não ele, sua imagem: forte, decidida e impoluta.
O presidente se ausentou da crise de Manaus. Se ausentou da crise da vacina, e assim o fazendo perdeu na sua popularidade. Não há como apostar no que vai acontecer. Mas grandes monarcas, presidentes e dirigentes perderam suas coroas ou faixas ao “sumirem de cena”.
A fotografia é, ela mesma, uma grande mágica. Foi dessa maneira que foi apresentada quando, pela primeira vez, em segundos, imobilizou num documento uma cidade inteira. A fotografia combina com líderes carismáticos que a usam para criar as “suas mágicas” e aportar sua magia, concebendo e alimentando imaginários. Nesse caso, porém, Bolsonaro, perdeu na eficácia simbólica. Devia ter roubado a cena e aparecido em todos os lugares e ao mesmo tempo. A técnica assim permite. Não o fazendo, ausentou-se do “espetáculo da vacina”, e assim permitiu que outros ocupassem seu lugar. Como no conto de Christian Anderson – “A roupa nova do Imperador” –, dessa vez parece que o mito está nu. E talvez não tenha ainda percebido. ///
Lilia Moritz Schwarcz é professora do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo e global scholar na Universidade de Princeton. Atua também como curadora adjunta do Masp para histórias.
Paulo Augusto Franco de Alcântara é pesquisador pós-doutorando do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo com projeto financiado pela Fapesp.
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Lendo imagens: uma história de amor e ódio, de Alberto Manguel, São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
Arte e ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica, de Ernst H. Gombrich, São Paulo: Martins Fontes, 2007.
Padrões de intenção, de Michael Baxandall, São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
Sobre fotografia, de Susan Sontag, São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
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