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Retorne sua atenção para a posição vertical: Nathan Lyons e suas narrativas visuais

Inês Bonduki Publicado em: 20 de setembro de 2019

Há narrativas fotográficas que nascem num piscar de olhos e nos atravessam como um golpe incisivo e profundo. São poucas. Drum (1996), do fotógrafo dinamarquês Krass Clement, produzido em uma única noite no interior de um bar na Irlanda, me golpeou já no início. Desde então devo tê-lo percorrido umas 20 vezes, e volto sempre que preciso relembrar algo de essencial que há ali para mim.

Mas, guardadas as exceções, em geral vemos que importantes narrativas nascem de um aprofundamento do fazer fotográfico e do desenvolvimento de questões sobre o mundo e sobre a própria fotografia. E muitas vezes tais trabalhos não nos golpeiam num primeiro momento, mas nos explicam pouco a pouco quando estamos abertos a escutá-los.

Um dos grandes exemplos deste fazer é a obra do americano Nathan Lyons (1930-2016). Profundo pensador da fotografia e da sociedade, produziu apenas quatro livros fotográficos: Notations in Passing (Anotações de passagem – 1974), levou 12 anos para ser realizado; Riding 1st Class on the Titanic! (Viajando de 1ª classe no Titanic! – 1999), dez anos; Return your mind to its upright position (Retorne sua atenção para a posição vertical – 2014), é um livro com imagens de arquivo de 15 anos e demorou seis para ser editado. O quarto livro é a exceção de Lyons (a resposta imediata e com poder de síntese): After 9/11th (Após 11/9 – 2003) foi produzido em um ano, em consequência do atentado de 2001.

Obviamente, Lyons não se dedicou integralmente à produção dos livros ao longo de todos esses anos. Curou exposições, apresentou palestras, organizou e produziu livros teóricos, formou pessoas. Fundou e foi diretor do Visual Studies Workshop, um dos mais importantes centros de produção e discussão de fotografia, vídeo e livros visuais das décadas de 1970-80 nos Estados Unidos. Nesse sentido, esteve aberto a dialogar, incentivar e abrir espaço para jovens produtores, reconhecendo a potência de trabalhos ainda em construção, sem nunca se colocar numa postura docente ou curatorial autoritária. Assim, seus livros fotográficos nasceram e amadureceram intermediados por todas essas outras vivências e formas de atuação que certamente os alimentaram, sem urgência de conclusão precoce.

Nathan Lyons e estudantes em frente a Visual Studies Workshop, 1978.
Crédito: Ed. Reed. Reproduzido do livro: McDonald, Jessica. Nathan Lyons – selected essays, lectures and interviews, Texas Press, 2012.

Mas também podemos olhar para estes longos períodos de produção dos livros a partir das intenções discursivas de Lyons. Para muitos autores, uma narrativa fotográfica organizada através do fluxo visual das imagens, ou seja, da harmônica (ou desarmônica) articulação de seus elementos plásticos, é considerada em si resolvida. Acrescente-se um título que mantenha o sentido devidamente aberto – ou fechado – e está terminado o trabalho. Para Lyons, o fluxo visual é apenas uma das camadas que pode ser construída na narrativa visual. Talvez aquela percebida mais imediatamente, mas que é insuficiente quando há intenção de se desenvolver uma ideia ou argumento com complexidade e profundidade.

Nesse sentido, é possível entender seus livros como “ensaios fotográficos”, não no sentido já banalizado e cotidiano do termo – um ensaio fotográfico de moda, por exemplo – mas da tradição do ensaio fílmico, literário ou filosófico. Esses ensaios são construídos principalmente por meio de estruturas sequenciais. E, apesar de partir de uma lógica de série durante a captação, Lyons as articula no interior das sequências, às vezes como motivos centrais para o argumento, como é o caso das imagens de outdoors em Anotações de passagem; às vezes como assuntos secundários, mas permanentes, que se entrelaçam uns aos outros, evitando desta forma uma abordagem eventualmente monótona que uma estrutura serial poderia gerar. Lyons constrói discursos visuais editados minuciosamente, nos quais camadas de sentido vão se revelando pouco a pouco, à medida que o observador mergulha no livro uma e outra vez.

Introdução do livro Notations in Passing, de Nathan Lyons, 1974. Reprodução.

Assim, são importantes para ele as construções de significados abstratos, algo mais difícil de se estruturar através de imagens isoladas, mas que nascem facilmente quando duas ou mais são aproximadas. Lyons constrói metáforas pela justaposição de imagens, mas trabalha também com simbologias, seja utilizando operações de repetição (séries) que constroem o vocabulário simbólico de seu próprio trabalho, seja reincorporando símbolos que já fazem parte da cultura visual (norte-americana ou globalizada) e transformando-os/comentando-os, seja trazendo referências de fotógrafos com os quais dialoga.

Série de imagens de instalações, artísticas ou não, que pontuam as sequências de Lyons, reproduzidas de Notations in Passing (duas imagens superiores) e Return your mind to its upright position (quatro inferiores).

Mas todas essas manobras de edição, ditas assim abstratamente, só fariam de Lyons um grande editor. Afinal quais são suas questões? Qual é sua intenção? O que ele quer dizer?

As questões de Lyons nasceram de sua prática fotográfica, e não ao contrário. Seu procedimento fotográfico foi o mesmo ao longo de toda sua vida: caminhar e coletar imagens que o chamavam – por razão desconhecida num primeiro momento. “Simplesmente coleciono imagens às quais respondo, não há um script para o que estou fazendo, é realmente baseado na minha interação com as coisas que vejo e que me intrigam, me interessam ou me questionam.” Esse gesto de coletar era simples e direto, com o desejo de espontaneidade de um snapshot.

Em seguida, olhar para as imagens, tentar entender as razões por trás delas – que o mobilizaram inicialmente – e começar a articular as questões e visualidades em um discurso estritamente fotográfico. Então, voltar para a rua – ou alguma estrada rumo a cidades da região leste americana – com as imagens pré-editadas na memória. Um movimento de idas e vindas entre a ação de fotografar e a ação de editar. Assim foi construído Anotações de passagem, obra que formula os métodos e questões fundamentais de toda sua produção fotográfica.

Lyons observa o homem moderno através de seu ambiente natural, as cidades. Observa as marcas, anotações, objetos e arquiteturas que a constituem, palimpsestos em incansáveis camadas, imagens e palavras-imagens que se misturam umas às outras no ambiente urbano. De um lado ele reconhece estas manifestações efêmeras como frutíferas fontes de compreensão da sociedade; de outro, se identifica com elas, na medida em que a fotografia é, para ele, fundamentalmente também uma anotação. Nas expressões públicas escritas na parede em todo o país atualmente, há um ódio, uma ansiedade, um cinismo. Hoje em dia, prefiro ler mensagens nas paredes do que ir a galerias de arte.”

Ainda como estudante de literatura americana, Lyons costumava caminhar com um caderninho anotando as palavras e frases que via pela rua. Um dia percebeu que poderia trocar o caderno pela câmera fotográfica, e as palavras passaram a fazer parte de suas imagens. Lyons fala através das palavras que encontra na rua. Mas não apenas, pois para ele o mundo moderno é um universo de signos, que ele apenas capta e interpreta, dando-os significado. “Minha ideia básica seria que a fotografia funciona em termos visuais muito no mesmo sentido que o estudo da linguagem funciona em termos verbais.”

Reconhecendo essa forte relação de Lyons com signos e com um pensamento abstrato, poderíamos tender a mergulhar em seus livros com uma postura imediatamente racional, tentando decifrar tudo que há para ser dito e entendido. Mas não se trata disso. Lyons constrói suas sequências de forma a criar caminhos mais tortuosos e sensíveis, em que os significados emerjam paulatina e pacientemente. E apenas se necessário.

No posfácio de Retorne sua atenção, Alex Sweetman descreve ter descoberto grande entusiasmo e familiaridade por parte de skatistas para quem mostrou o livro, que se identificaram com o universo representado e muitas vezes reconheceram os grafites que aparecem nas imagens. Os artistas que se deparam com o livro, por outro lado, encontram frases como “a vida é curta, faça arte”. Outros talvez apenas sintam os ângulos oblíquos e as sombras cortantes e duras desses ambientes urbanos, apesar de uma certa contenção emocional nas imagens. Não importa a que camada de sentido cada leitor se apegue, a intenção é que o trabalho funcione em todas elas numa mesma direção. Nos trabalhos de Lyons tudo se conversa e entrecruza, inclusive entre os livros, que não à toa têm   – praticamente – o mesmo formato, dimensão e diagramação das imagens, e podem ser pensados como uma grande sequência em quatro partes.

Último livro de Nathan Lyons, Return your head to its upright position, 2014.

“Não acredite no que seus olhos veem” é a frase que encontramos ao abrir o último livro desta grande sequência. A frase é entregue a nós leitores por uma grande mão, sobreposta a um ambiente urbano. A imagem nos faz lembrar a fotomontagem Lonely Metropolitan (Metropolitano solitário – 1932), de Herbert Bayer, ou o Autorretrato com mão (1926-9), de László Moholy-Nagy, ambos artistas da Bauhaus. A simbologia das mãos com olhos é bastante frequente em trabalhos de artistas da escola, e sugere a crença utópica nas novas formas modernas de ver (a Nova Visão), associadas às relações entre a prática do fazer manual e as novas tecnologias.

Na montagem de Bayer vemos a cidade ao fundo, à frente duas mãos erguidas frontalmente e dentro dela dois olhos. Na imagem de abertura de Retorne sua atenção(2014) há a cidade, há a mão, mas não os olhos. Nem na palma da mão nem no rosto que aparece ao fundo, cortado. A mão também não está espalmada e frontal, como em geral aparece nas imagens relacionadas à Nova Visão, mas em movimento de abertura para revelar algo que antes escondia. Lyons, que teve o pensamento e a obra de Moholy-Nagy como uma das bases de sua formação, atualiza a condição de ver às questões do nosso século, colocando em cheque a crença na imagem e propondo ao observador que lance um olhar critico, e não passivo, às imagens que virão à seguir.

Fotomontagem Lonely Metropolitan (1932) de Herbert Bayer (reproduzido de https://www.metmuseum.org); Self portrait with hand, de Lazlo Moholy-Nagy (1925-9) (reproduzido de https://www.hauserwirth.com) e a primeira imagem do livro Return your head to its upright position (2014) de Nathan Lyons.

Não podemos olhar para esta imagem de abertura da sequência, no entanto, sem considerar a imagem da capa do livro que veio logo antes. Nela, vemos um outdoor num contexto urbano, que está mostrando um homem de óculos que olha para cima e vê – novamente – uma imagem invertida de uma cidade. Abaixo lemos a frase/título: “retorne sua atenção para a posição vertical”. Aqui, mais uma vez, Lyons parece se referir à ilusão criada pela câmera escura e sugerir a necessidade de um retorno à realidade, ou ainda, à consciência crítica ao lidarmos com imagens. O título é repetido na primeira página, e imagem e título novamente na página de rosto do livro. Sendo o trabalho de um editor tão criterioso, não podemos ignorar ou entender como arbitrária essa redundante insistência inicial.

Em todos os seus livros Nathan Lyons discute, testa, provoca nossas relações com a imagem. Mas esta é apenas uma das questões com as quais trabalha. Ao editar as anotações visuais que vai coletando pelas ruas, ele reconhece universos temáticos que reaparecem constantemente, talvez por realmente serem muito presentes nas ruas, talvez apenas pelo recorte espontâneo de seu olhar. A guerra ou a opressão da população negra são alguns dos assuntos já presentes nos livros anteriores, mas que ganham grande ênfase neste último, aparecendo como temas centrais em três das sete partes que compõem a sequência.

Através das páginas de seus livros, tais assuntos se atualizam e se transformam, como se a temporalidade da passagem das páginas (e de um livro ao outro) se relacionasse com o tempo real. Assim, se no discurso de 1974 de Anotações de passagem vemos um enforcamento como imagem que se refere ao extermínio negro, em Retorne sua atenção as três partes que dão ênfase à questão negra indicam haver uma transformação social em curso: na primeira vemos um rosto de uma mulher negra e a frase “Somos um bonito alvorecer”; na segunda, uma placa que diz “Fuga da escravidão”; e na terceira, a frase “Este é o nosso momento” sobrepõe-se ao rosto do ex-presidente norte-americano Barack Obama. Se Lyons saísse às ruas em nosso atual momento, provavelmente produziria notas visuais que indicariam um novo ponto de vista sobre o desenvolvimento dessa questão.

A questão da opressão negra em Notations in Passing (1974), à esquerda, e em três aberturas de “capítulos” de Return your mind to its upright position (2014).

Outra passagem de Retorne sua atenção indica uma relação temporal mais direta entre o folhear das páginas e o tempo real: uma imagem mostra um gramado com pequenas bandeiras americanas penduradas e uma placa que apresenta a quantidade de mortos da guerra do Iraque, 3.583. Mais adiante no livro vemos outro gramado com bandeiras e a placa atualizada: agora são 4.321 mortos. Se colocadas lado à lado como dupla, as duas imagens não teriam a mesma força. O tempo do folhear e a sensação de descoberta da relação entre elas é fundamental para o impacto do discurso. A bandeira que aqui aparece associada à guerra é outro símbolo que interessa a Lyons (trabalhado intensamente em Após 11/9), e dialoga diretamente com o trabalho de Robert Frank.

Primeira imagem do livro The Americans (1958) de Robert Frank; primeira imagem de After 9/11 (2003), de Nathan Lyons, e imagem de Return your mind to its upright position (2014).

Podemos discorrer longamente sobre cada livro de Lyons e para todos os lados que olharmos encontrarmos relações interessantes entre as imagens e seus elementos, que constroem sentidos sobre sua forma de observar e entender o mundo. Mas, apesar disso, sua intenção é de que os trabalhos sejam simples, acessíveis.

Em uma fala de Ethan, filho de Lyons, na homenagem prestada a ele na Visual Studies Workshop em 2011, ele descreve que, anos antes, no contexto de um funeral em que foram juntos, o pai virou-se para ele e disse: mantenha as coisas simples … reúna alguns amigos e familiares, tome um copo, conte boas histórias … aproveite a companhia um do outro. Talvez essa frase descreva bem a forma de Lyons estar no mundo e de lidar com a fotografia: manter as coisas simples, valorizar a troca e a companhia das pessoas, contar histórias.

Hoje ficou bem mais fácil publicar livros. Imprimir é relativamente acessível e temos feiras e eventos que abrem espaços mais democráticos para a circulação dos trabalhos. Mas, para além de belas imagens, muito bem editadas e acomodadas num design bem apurado, talvez Lyons nos perguntasse: o que queremos dizer?///

 

Inês Bonduki é fotógrafa, pesquisadora e professora. É doutoranda em Artes Visuais pela ECA-USP e arquiteta pela FAU-USP. Foi editora de Fotografia da Revista São Paulo (2012-13), e fotógrafa colaboradora até 2017. Foi professora na pós-graduação em imagem do Madalena CEI (2016-2017). Desde 2018 realiza o curso Projeto Fotográfico no Livro na Fundação Ema Klabin. Seu livro Linha Vermelha foi contemplado com os prêmios Conrado Wessel (2015) e Foto em Pauta (2016).

 

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