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Lew Parrella: cidadão americano, fotógrafo brasileiro

Ângelo Manjabosco Publicado em: 24 de julho de 2015
O fotojornalista Lew Parrella (1927-2014) faria 88 anos hoje. Natural de New Haven (EUA), Parrella viveu no Brasil por mais de 50 anos, onde fez história com seus editoriais para revistas como RealidadeClaudiaManequimQuatro Rodas. Pouco antes de morrer, o fotógrafo doou todo o seu acervo ao Museu de Arte de São Paulo (Masp).
Revista Realidade n. 15, junho de 1967 – Lew Parrella - Acervo Abril Comunicacoes S.A.

Revista Realidade n. 15, junho de 1967 – Lew Parrella/Acervo Abril Comunicações S.A.

“Você consegue imaginar um senhor italiano andando pela avenida Paulista com uma pintura do Van Gogh?”, perguntou-me Lew Parrella, aos 83 anos, quando eu quis saber como ele havia feito um dos retratos que estava na sua mão. “Eu tinha apenas um dia para fazer esse trabalho, que era quando o museu fechava. Conversei com o professor [Pietro Maria] Bardi e falei que iria precisar da coleção do museu. Ele comentou que era possível, mas havia um quadro que estava em restauração e que ele queria que estivesse na foto.”

O ano era 1967. Lew pegou seu equipamento e saiu em seu carro para se encontrar com Bardi em um lugar próximo ao MASP, onde a obra Passeio ao Crepúsculo (1890) estava sobre uma mesa. “Perguntei: professor, você vai levar isso sem segurança? Ele respondeu: tudo bem! Solicitou um papel de embrulho, colocou a tela embaixo do braço e fomos até o museu.” Após montarem o cenário com as obras, Parrella falou que queria o diretor dentro da foto. “Quem é esse diretor? Ele disse, e começou a rir, e contou que quando os visitantes do MASP perguntavam porque ele estava movendo as pinturas, dizia que era o faxineiro. Então solicitei ao assistente que trouxesse o espanador.” A fotografia foi publicada na revista Realidade nº 15, na reportagem A arte de fazer um museu.

Luigi Giorlando Parrella nasceu em New Haven, Connecticut, em 1927, um dos seis filhos de um casal de imigrantes italianos. Entrevistei-o algumas vezes – em um duplex na Praça da República, que era ao mesmo tempo casa e estúdio – poucos meses antes dele falecer, em novembro de 2014. Conversava misturando diversas línguas. “Era um sotaque inesquecível, mistura de italiano, inglês americano de Nova York, paulistano da Rua Augusta. Andava sempre com duas ou três máquinas dependuradas no pescoço: uma Rolleiflex, uma Leica, uma Zenza Bronica ou uma Calumet”, comenta Silvio Lancelotti, que trabalhou com o fotógrafo na editora Abril nos anos 1970. “[…] era organizadíssimo – e super-elegante. Ostentava uma cabeleira branquérrima, mesmo ainda jovem, e se escanhoava duas vezes ao dia.”

Quando Claudia Andujar trouxe Lew Parrella ao Brasil, em 1961, havia um abismo entre os circuitos de fotografia de São Paulo e Nova York. Por aqui, a maior parte das exposições ainda se restringiam às iniciativas dos fotoclubes, enquanto as reportagens fotográficas de O Cruzeiro repetiam uma fórmula desgastada. Por lá, o MoMA já estava com seu departamento de fotografia consolidado, publicações eram lançadas e Lew Parrella era um dos colaboradores da revista suiça Camera e da galeria Limelight, especializadas em fotografia.

Foi durante um trabalho para a revista que conheceu Elliot Erwitt. “Poucas pessoas sabiam das fotografias de cachorros. Eram fotos que ele fazia como um hobby. Um sujeito muito divertido e peculiar.” Já sobre a galeria, conta que foi “curador, designer, escrevia os textos, fazia pesquisa, ajudava a Sra. Gee em praticamente qualquer tarefa”. Helen Gee era a proprietária da Limelight, inaugurada em 1954, e que pavimentou o caminho ainda tortuoso de um mercado que se consolidou apenas nas décadas seguintes. Vendia, por exemplo, trabalhos do francês Eugène Atget por U$ 20. Lew trabalhou na galeria em duas oportunidades, tendo contribuído em cerca de 20 exposições: entre 1954 e 1955 e entre 1959 e 1960.

“Em 1959, pressionada pelos prazos, procurei Lew Parrella e solicitei ajuda. Ele agora era o editor americano da revista trilíngue Camera, e isso, junto com seu trabalho como fotógrafo de propaganda, fazia dele alguém disputado. Eu ofereci a ele uma nova oportunidade, e ele gentilmente aceitou”, escreveu Helen Gee, em seu livro de memórias Limelight: A Greenwich Village Photography Gallery and Coffeehouse in the Fifties, a Memoir (1997).

Pela Limelight, passaram nomes como Robert Frank, Cartier-Bresson e Edward Weston. “Apesar do que possa parecer, eram pessoas muito simples”, dizia Lew, que no começo dos anos 1950 havia sido assistente de Arnold Newman e W. Eugene Smith. Em 1957, passou noites em claro tomando whisky com Smith enquanto ele e outro curador, Harold Feinstein, montavam a exposição individual de Smith na Limelight. Segundo Gee, “Gene” era incrível, mas imprevisível. “Ele ligava e dizia: não se preocupe, eu vou terminar essa noite, apenas preciso de alguma coisa para me manter ativo (…) Então eu dizia a ele onde estavam as bebidas […]. A abertura atrasou seis dias.”

Em um texto publicado na revista S/N em 2012, Claudia Andujar contou que conheceu Lew Parrella em Nova York, em 1960, e a partir de um convite feito por ele, realizou sua primeira exposição individual. “Foi graças ao Lew que conheci Eugene Smith, Minor White e o diretor de fotografia do MoMA na época, Edward Steichen […]. Essas oportunidades me abriram as portas ao mundo da fotografia.” O casal veio ao Brasil porque, segundo Lew, Claudia sempre demonstrou interesse em pesquisar os índios. “Eu achei fascinante chegar no Brasil. Fomos morar na Av. Paulista, onde Claudia tinha um apartamento. Saímos para passear um pouco e vimos um cachorrinho perdido. E a Claudia queria ficar com esse cachorrinho. Eu disse: ele pode ter doenças! Ela disse: eu vou lavar e amanhã nós levamos ao veterinário. Então esse foi o começo. Em fevereiro fomos ao Rio realizar um vídeo sobre Dom Helder Camara para a ABC TV. Era carnaval e eu recebi um passe de jornalista para circular entre os carnavalescos. Foi a primeira foto que fiz no Brasil.”

Nos primeiros anos da década de 1960, tornou-se amigo do jovem Otto Stupakoff. “Frequentávamos muito a casa um do outro. [Otto] Falava inglês e havia uma compatibilidade de interesses.” Em janeiro de 1963, Lew organizou a exposição individual de Otto na Petite Galerie, em São Paulo. Segundo crítica publicada no jornal O Estado de São Paulo em 26 de janeiro de 1963, tratou-se da primeira exposição individual de um fotógrafo brasileiro promovida por uma galeria. O texto feito por Lew para o catálogo da mostra enfatiza algumas das principais características do que viria a ser a fotografia contemporânea brasileira.

“Vemos que este fotógrafo é, antes de tudo, um construtor de formas, mais do que um registrador de momentos ou fatos. […] As fotos da exposição convidam-nos a especular em como é inata sua inclinação a construir, ou em quanto a sua experiência em ilustração de propaganda influenciou as suas abordagens pessoais. […] Em expressões que seguem a tradição dos grandes fotógrafos do passado, mas que nos dizem das coisas dos dias de hoje.”

Entretanto, foi a única vez que Lew Parrella trabalhou com exposições no Brasil. Em cartas enviadas a amigos, fazia planos para colaborar com museus, mas ressaltava que não conseguiria viver disso e lamentava o estágio em que se encontrava a fotografia brasileira.

Entre 1964 e 1965, Claudia e Lew começaram a trabalhar para a editora Abril.  Ela como fotojornalista, ele como fotógrafo de estúdio. A partir de maio de 1965, aos 38 anos, Lew assumiu o cargo de diretor de fotografia da editora, antes ocupado por Oswaldo Palermo. Orientou fotógrafos como Walter Firmo, Maureen Bisilliat, Luigi Mamprin, Cristiano Mascaro, David Zingg e George Love. Acostumado a trabalhar com fotografia colorida em 35mm – assim como Zingg e Love, também norte-americanos – encaixou-se perfeitamente nas demandas de reformas gráficas da época. Suas imagens podem ser vistas nas revistas Realidade, Quatro Rodas, Setenta e Veja.

Entretanto, seu trabalho aparece em maior quantidade em periódicos voltados para o público feminino, como Manequim e Cláudia. Nessa época a editora Abril passou a investir em edições especiais de Cláudia realizadas integralmente no exterior. O escritório de Lew Parrella ainda abriga mapas dos lugares que visitou, como Israel e Japão, repletos de anotações. Em uma caixa com pastas, guardou recortes sobre estilistas e modelos – de anúncios brasileiros a reportagens de revistas francesas. Tornou-se referência na fotografia de moda no Brasil nos anos 1960, juntamente com o inglês Roger Bester e Otto Stupakoff.

Lew fazia de tudo para participar da escolha das fotos. “Para mim, um bom fotógrafo não é aquele que entrega muitas fotografias. É aquele que está consciente do assunto. Eu me lembro que escolhi esta fotografia. Eu insisti nesta”, diz Lew, apontando para uma imagem do cineasta Alfred Hitchcock.

“Estamos num frigorífico, Alfred, eu e as duas manequins. Era muito engraçado, Alfred fez piadas. Deixei a câmera dentro por um tempo e congelou o mecanismo. A moda que está nessa foto é ridícula, completamente estúpida. Não é uma foto de moda, é uma piada com Hitchcock. O humor dele ficou aparente na foto.”

Décadas passaram, e nos últimos anos de vida Lew sofria com problemas de saúde.  “Do olho direito eu vejo apenas sombras. Do outro, quase nada. É muito complicado.” No entanto, os problemas haviam começado antes, ainda nos anos 1990. Para pagar uma das cirurgias, vendeu uma parte do seu equipamento e sua coleção de fotografias, com imagens de Irving Penn, Eugene Smith e Imogen Cunningham.

Em cartas, contava ao amigo e fotógrafo norte-americano Frank Paulin que estava cansado de lutar pelo reconhecimento da profissão e fazia planos de ir morar em alguma pequena cidade dos EUA. “Sou o fotógrafo mais prolífico e mal pago do hemisfério ocidental. […] Os editores não reconhecem mais meu nome. Um dia vou escrever um livro com as histórias de um fotógrafo americano no terceiro mundo”, ironizava, antes de assumir seu humor instável e a falta de paciência em comparecer a eventos sociais e buscar parcerias para projetos.

Além disso, era obsessivamente crítico. Assinava dezenas de revistas e jornais, recortava textos e fazia observações a caneta. Lew desprestigiava uma grande parcela dos fotógrafos brasileiros, mas tinha admiração por José Medeiros e colecionava artigos sobre Claudia Andujar, que posteriormente enviava para ela em envelopes. Já as anotações mais duras aparecem em artigos sobre o compatriota David Zingg. Em 1984, Zingg realizou trabalhos em Nova York, de onde lhe enviou uma entrevista publicada no jornal Photo District News em que diz ter aprendido a relaxar após ter mudado dos EUA para o Brasil. Lew ponderou que Zingg se acomodou devido aos baixos padrões da média da fotografia brasileira. “Keep him away!”, anotou no rodapé da entrevista.

Maria do Carmo, a Carminha, trabalhou para Lew Parrela entre 1976 e 2014. Era secretária, amiga, cuidadora e confidente. “Ele gostava de ir dormir tarde, gostava das coisas sempre organizadas e preferia trabalhar à noite, sem o barulho dos carros e das escavações do metrô.” Apesar de ter morado em São Paulo durante 53 anos, Lew não solicitou cidadania brasileira, não casou e não teve filhos. “Ele não gostava de falar sobre coisas muito pessoais… Poucas vezes perguntei sobre namoradas. Ele ria. E respondia: ‘Carminha! Eu passo meses fora de casa, trabalho muito. Quem vai querer algo sério com uma pessoa como eu?’”

A relação mais duradoura de Parrella foi mesmo com a fotografia, especialmente a fotografia de arquitetura. Morador do edifício Eiffel, projetado por Oscar Niemeyer, estudou o tema com o arquiteto Sérgio Bernardes, ainda no início dos anos 1960. Fotografou as principais construções brasileiras para um projeto da Editora Abril que resultou na série de publicações Arte no Brasil (1974). Passou por quase todas as revistas especializadas, incluindo Casa Claudia e Casa Vogue, e seus últimos clientes foram escritórios de arquitetos como Raul di Pace e Roberto Loeb. Um de seus planos envolvia expor suas “arqui-visions”, como chamava seus trabalhos sobre arquitetura. “Tenho fotografias dos anos 90, 80, 70… Não saberia como juntar todas elas em apenas um projeto. Mas são imagens de outros tempos, de outras vidas.”///

Ângelo Manjabosco é jornalista e pesquisador. Pós-graduado em Fotografia pelo Senac-SP e mestrando do Programa de Pós-graduação em Estética e História da Arte (PGEHA-USP).