Entrevista: o jornalista Leão Serva fala sobre seu livro “A fórmula da emoção na fotografia de guerra”
Publicado em: 14 de abril de 2021Criado pelo historiador e intelectual alemão Aby Warburg (1866-1929), a “fórmula da emoção” é um conceito que define alguns modelos de gestualidade e expressões humanas universais passíveis de reconhecimento quase que automaticamente. Inspirado em Warburg, o jornalista Leão Serva decidiu levar tal conceito para as fotografias realizadas em campos de batalha e criar relações com imagens produzidas pela humanidade sobre o tema, desde pinturas rupestres até esculturas, gravuras, pinturas e demais iconografias. O resultado é o livro A fórmula da emoção na fotografia de guerra, lançado hoje pelas Edições SESC SP.
Em entrevista, Serva comenta aspectos da fotografia de guerra e o que o levou a aproximar tais imagens do método desenvolvido pelo estudioso alemão. “Warburg usava painéis para relacionar imagens de origens e tempos diferentes, criando linhas de associação entre elas, que ficavam claras pela justaposição. Eu procurei fazer o mesmo, criando painéis a partir de conjuntos de imagens que criei, identificando a presença de gestos arcaicos em fotografias de guerra. Então, uso painéis ‘a la Mnemosine’ para revelar as ‘fórmulas de emoção’ que aponto nas imagens estudadas.”
A guerra é um tema clássico da fotografia, com uma vasta literatura sobre fotógrafos, conflitos, etc. O que o levou a escrever sobre o tema? Por que a fotografia de guerra?
Leão Serva: A fotografia é um elemento fundamental do jornalismo de Guerra, ambos nasceram juntos, na cobertura da Guerra da Crimeia, para a qual foram enviados o primeiro correspondente (William Howard Russell, do The Times inglês) e o primeiro fotógrafo (Roger Fenton, financiado pelo governo britânico). Antes, “correspondências de guerra” eram relatos, cartas, enviadas por pessoas envolvidas nos conflitos, militares, médicos, enfermeiros, diplomatas. E não havia equipamento fotográfico que pudesse ser transportado para um conflito. A partir da década de 1850, com a cobertura da Guerra da Crimeia por profissionais dedicados ao jornalismo, surge a cobertura de conflitos, que imediatamente gerou grande impulso na circulação dos jornais. Era um empreendimento caríssimo, cujo custo foi fartamente superado pelo incremento de circulação. Desde então, as coberturas de guerras são momentos especiais do jornalismo, imagens e textos sempre juntos. Seu sucesso desperta inúmeras abordagens possíveis, históricas, estéticas, políticas etc. Eu busquei uma abordagem inédita, uma explicação da concepção das imagens e seu impacto a partir de sua vinculação à tradição iconológica da cultura humana: a fotografia de guerra contém “fórmulas da emoção”, gestos universais significativos, reconhecíveis por qualquer humano e outros mamíferos, presentes nas imagens produzidas pelo homem desde as cavernas até hoje.
Os grandes conflitos mundiais do século 19 e 20 geraram muitas imagens de impacto graças ao trabalho de fotógrafos que arriscaram suas vidas no campo de batalha, registrando in loco os horrores que iriam ilustrar a primeira página de jornais e revistas ao redor do mundo. Na guerra de hoje, feita por drones, satélites e mísseis teleguiados, os registros do campo de batalha são cada vez mais raros. Como você vê a fotografia de guerra se “adaptando” a este novo arsenal tecnológico?
LS: Em ensaios anteriores, venho estudando a fotografia de conflitos à luz da influência exercida sobre os profissionais pelo “mandamento de Capa”, segundo o qual “uma foto não está suficientemente boa é porque você não está perto o suficiente”. O dito de Capa se tornou uma imposição que implica a ética, a técnica, a estética e a gramática da fotografia de guerra. Por essa influência seminal e definidora da atividade, não creio que os fotógrafos vão se libertar dessa forma próxima de fazer as fotos, qualquer que seja a evolução tecnológica, apesar da proximidade ser causa de tantas mortes de fotógrafos de guerra, a começar pelo próprio Robert Capa, sua mulher Gerda Taro e seu amigo David “Chim” Seymour, todos mortos em conflitos. Em outro estudo, em que mostro que fotógrafos e cinegrafistas são as principais vítimas fatais de conflitos, fica claro como, apesar de todos os desenvolvimentos tecnológicos, os fotógrafos continuam morrendo ao chegar perto dos objetos. Digo mais: veja todos os prêmios dados à fotografia de guerra e você verá que o gosto predominante não premia as fotos feitas de longe, com drone etc, mas fotos que captam expressões de emoção dos sujeitos.
Nas últimas décadas a obra de Aby Warburg tem sido muito estudada dentro do meio acadêmico relacionado à filosofia da imagem (Carlo Ginzburg e George Didi-Huberman talvez sejam os nomes de mais destaque). Como surgiu a ideia de relacionar o método de Warburg e a fotografia de guerra?
LS: Warburg é um dos pensadores mais influentes dos séculos 20 e 21, com parceiros e discípulos importantes como Fritz Saxl e Ernst Cassirer, Erwin Panofsky e E.H. Gombrich, o popular crítico britânico Kenneth Clark e, mais recentemente, os contemporâneos Claudia Wedepohl, Carlo Ginzburg e Didi-Huberman, além de Giorgio Agamben, uma estrela da hora no pensamento em ciências humanas. Há também dois jovens acadêmicos com estudos muito interessantes, que me ajudaram durante meus estudos em Londres, o norte-americano Peter J. Schwartz e o alemão Pablo Schneider. No Brasil, meu orientador Norval Baitello, Malena Contrera, Jorge Coli, Cassio Fernandes e tantos outros. Há muita gente estudando Warburg em todo o planeta. Quando comecei a minha tese de doutorado, eu buscava entender por que imagens tão chocantes atraiam pessoas de lugares distantes a ponto de uma guerra em Biafra aumentar a penetração de meios jornalísticos no Japão ou no Brasil. E Warburg apresentou uma chave para essa compreensão, com seus estudos sobre a relação universal e supratemporal entre as imagens e a emoção.
Seguindo o método estabelecido por Warburg, seu livro propõe uma divisão de painéis/capítulos para agrupar determinados tipos de fotografia de guerra. Pode nos dizer como chegou a estes painéis específicos?
LS: Warburg usava painéis para relacionar imagens de origens e tempos diferentes, criando linhas de associação entre elas, que ficavam claras pela justaposição. Eu procurei fazer o mesmo, criando painéis a partir de conjuntos de imagens que criei, identificando a presença de gestos arcaicos em fotografias de guerra. Então, uso painéis “a la Mnemosine” para revelar as “fórmulas de emoção” que aponto nas imagens estudadas. Entendo que os estudiosos que usam Warburg são muito econômicos para preparar painéis, preferindo geralmente tecer relações entre imagens e publicá-las lado a lado, em pares. Eu achei que se a ideia para de pé, ela deveria ser submetida ao desafio proposto por Warburg, de traçar uma “árvore genealógica” composta de conjuntos maiores de imagens. Durante a realização do meu doutorado tive uma temporada de estudos no Instituto Warburg, em Londres, sob orientação da doutora Claudia Wedepohl, que me sugeriu estudar a coleção de fotografias de imprensa da Primeira Guerra Mundial, que Warburg juntou durante o conflito. Esse conjunto de imagens foi encontrado no Arquivo de Warburg em 2004 e tinha sido pouco estudado até 2015, quando fiz uma primeira imersão. Havia dúvidas até mesmo se a coleção de fotografias tinha sido juntada por Warburg, o que vim a comprovar naquela pesquisa. Ali tive a oportunidade de testar o método, criar painéis significativos com imagens da Primeira Guerra que de alguma forma tinham passado pelo filtro de Warburg. Esses primeiros dez painéis estão publicados em um livro chamado War, Warburg And The World War I Press Photos (2020).
Neste novo livro, trabalho com dez painéis inéditos, com imagens que são geradoras de emoção, como “Decapitados”, “Caveiras”, “Crucificação”, “Cristo Descido da Cruz”, “Pessoas em Chamas”, “Massacre dos Inocentes”; e um painel composto a partir de um ensaio de Carlo Ginzburg (“Dedo de Deus”). ///
A fórmula da emoção na fotografia de guerra
Editora: Edições Sesc São Paulo
Páginas: 204
Tags: Atlas Mnemosine, Fotografia de guerra, livro de fotografia, Warburg