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Paz Errázuriz e os retratos de casais apaixonados em um asilo psiquiátrico no Chile dos anos 1990

Publicado em: 23 de outubro de 2020

Da série O infarto da alma, Putaendo, Chile, 1994. Coleções Fundación MAPFRE © Paz Errázuriz, cortesia da artista

Os retratos que a fotógrafa chilena Paz Errázuriz realizou de casais apaixonados que se formaram dentro do hospital psiquiátrico Philippe Pinel, na cidadezinha de Putaendo, no Chile, são fruto, como em quase todas as suas séries fotográficas, de uma relação de anos de com esses indivíduos, calcada no respeito mútuo. O resultado foi o livro O infarto da alma, publicado em 1994 em parceria com a escritora Diamela Eltit e lançado agora no Brasil por ocasião da retrospectiva da fotógrafa em cartaz atualmente no IMS Paulista.

Em entrevista realizada no primeiro semestre deste ano, Livia Deorsola (tradutora para o português de O infarto da alma) conversa com Paz e Diamela sobre política, loucura, paixão, fotografia e literatura. Leia abaixo:

 

O infarto da alma, de Paz Errázuriz e Diamela Eltit, 1994, publicado pelo Instituto Moreira Salles. Reprodução: Bloco Gráfico.

Em quase 50 anos de fotografia, do ponto de vista crítico, o que mudou em seu olhar em relação ao ato de fotografar?

Paz Errázuriz: Não acho que tenha sido o meu olhar que mudou, tenho o mesmo olhar. O que se afina é a profundidade de campo (citando Angeles Donoso);[1] afina-se e controla-se melhor o tato. Me interessa mais o olhar que o ato mesmo de fotografar. A destreza que se aprende com os anos também desempenha um papel importante. Sempre pensei que a fotografia tem a ver com quem a registra. No meu caso, esse ato inevitavelmente responde aos meus desejos, interesses e obsessões.

Durante a ditadura chilena [1973-90], você deixa de fotografar os conflitos políticos diretos e volta sua câmera para os excluídos de qualquer regime. Como foi esta escolha? 

PE: Durante a ditadura, trabalhei ativamente na rua, fotografando conflitos sociais e políticos. Com efeito, sou fundadora da AFI – Associação de Fotógrafos Independentes, formada a partir da necessidade de proteger a nós, profissionais da fotografia, nos momentos do registro das situações de violência, que eram cotidianas e se espalhavam por toda a cidade. Ao mesmo tempo passei a me preocupar com determinadas questões sociais e culturais, que na época não existiam como tema ou preocupação, e me atrevi a enfrentar sozinha esses assuntos por meio de uma investigação etnográfica, digamos assim, que não tinha maior circulação acadêmica ou na sociedade em geral. Talvez tenha sido precisamente a rua o que me abriu caminho, me mostrando aonde eu devia ir. A rua me tirou o medo dessa busca que eu precisava empreender, a busca por muitas respostas, a busca por uma identidade própria.

 

Da série O infarto da alma, Putaendo, Chile, 1994. Coleções Fundación MAPFRE © Paz Errázuriz, cortesia da artista

Para desempenhar seu ofício, você adentrou lugares considerados proibidos a uma mulher. Como é ser uma fotógrafa mulher, sobretudo nos tempos da ditadura?

PE: Foi neste contexto em que eu mais me dei conta da situação da mulher em meu país, embora, na verdade, fosse algo que eu já soubesse desde antes. Mas, nessas circunstâncias tão repressivas, outras coisas ficaram evidentes. É preciso considerar que a fotografia é sempre uma ameaça para um regime totalitário e militar. Ao mesmo tempo, uma mulher fotógrafa era algo subestimado: as forças oficiais não conseguiam medir nem suspeitar quão perigosa podia ser uma mulher desempenhando este trabalho, com seu olhar e suas imagens. A desqualificação da profissão era uma constante, mas foi, também, de grande ajuda para mim; eu aprendi a usá-la a meu favor; era uma grande provocação que me motivava. Como mulher, estou subordinada a um espaço determinado, que, para mim, é natural explorar: o espaço marginal. E essa exploração tem a ver com uma necessidade de desatar amarras, de abrir novos espaços. Com minhas fotografias, construo a minha própria história.

Quais os efeitos do fim da ditadura de Pinochet em suas atividades como fotógrafa?

PE: Os efeitos são difusos, porque há um trabalho autoral e artístico que é contínuo, pois a abertura formal do sistema democrático não altera a realidade das pessoas que estão à margem. Eu continuo ligada a esses processos, e a mudança se dá, antes, no tipo de fotografia de denúncia, que era um ato de resistência à ditadura. Com o fim do regime, é preciso repensar a fotografia nas ruas.

 

Da série O infarto da alma, Putaendo, Chile, 1994. Coleções Fundación MAPFRE © Paz Errázuriz, cortesia da artista

Que papel a intuição tem em seu trabalho?

PE: A fotografia tem muito a ver com quem a desempenha. No meu caso, todas as minhas séries inevitavelmente respondem aos meus interesses, preocupações, e a intuição certamente é parte disso. Mas é algo que se complementa com a pesquisa e o vínculo com as pessoas fotografadas.

Entre 1983 e 1987, acompanhada da escritora Claudia Donoso, você registrou a vida de travestis em bordéis de Santiago e Talca. E depois repetiu a experiência – a de ser acompanhada por outra escritora, agora Diamela Eltit –, em visita ao hospital psiquiátrico de Putaendo. Como você vê a relação entre estas duas artes: a fotografia e a escrita?

PE: Em 1981, comecei meu projeto O pomo de adão [Leia aqui matéria publicada na ZUM] e, despois de um ano, senti que não era possível continuar entrevistando e fotografando ao mesmo tempo. Por esta razão, convidei a jornalista Claudia Donoso para trabalhar comigo e, juntas, finalizamos o projeto. Já em 1991, estando na metade do meu trabalho com os asilados de Putaendo, com Diamela decidi transformar a experiência em um livro que se chamou O infarto da alma. Em 1998, ao lado da poeta [chilena] Malú Urriola, começamos um trabalho conjunto que se chamou A luz que me cega.[2] Nestes casos, o processo, a princípio, é individual, mas é sempre enriquecedor quando a fotografia se cruza com outra disciplina; ao longo da carreira, foi algo que se tornou inevitável para mim e que me ensina. É, além disso, algo da ordem da generosidade, pois abre a possibilidade de olhar os trabalhos a partir de outra perspectiva, para além da imagem, sobretudo porque esse olhar contribui com a obra final. Penso que tudo isso tem sido muito enriquecedor e estimulante, pois palavra e fotografia se retroalimentam.

Quais os pactos que se estabelecem entre o fotógrafo e o fotografado para que o resultado final seja o desejado?

PE: Não poderia falar de pactos, não é minha forma de trabalhar. Esta é, antes, uma relação espontânea, aberta e, acima de tudo, livre.

O que significou para os asilados de Putaendo ver a si mesmos retratados? Você poderia descrever brevemente a reação deles?

PE: A reação foi de proximidade, de reconhecer a importância de ser parte daquelas imagens. Eles revelam um desejo de transcender e percebem que nas imagens seu amor está reconhecido. Além do mais, suas reações se vinculam a certos desejos de liberdade, de ver-se fora do enclausuramento. Também poderiam ser definidas como reações de valorização e de confiança em mim, em minhas fotografias, das quais eles se apoderam.

 

Da série O infarto da alma, Putaendo, Chile, 1994. Coleções Fundación MAPFRE © Paz Errázuriz, cortesia da artista

O infarto da alma é composto por texto e imagem. Como se deu seu processo de escrita a partir de algo que já tinha sido artisticamente produzido antes? 

Diamela Eltit: Na verdade, eu criei o meu texto de maneira autônoma em relação às fotografias. Paz e eu combinamos que faríamos um livro no qual coexistiriam, de forma independente, dois registros: o literário e o fotográfico. De modo que nunca escrevi sobre as fotografias; minha tarefa era produzir escritos diversos, narrações ligadas ao amor e à história. Acho que nisto está a singularidade deste livro: sua autonomia dual em sua configuração. Não é um livro convencional, em que se unem fotografia e escrita, quero dizer, livros nos quais a escrita se refere apenas às fotos, e a escritura cumpre uma função ilustrativa.

Você produziu um material híbrido: diário, ensaio, carta, transcrição de sonhos, entrevista, em que ficção e realidade se misturam. Por que foi necessário lançar mão de tantas formas de criação?

DE: É muito complexo fazer um livro fundado em pessoas reais que estão confinadas por psicose ou esquizofrenia em um lugar específico. O real problema, para mim, foi como dar dignidade a essas figuras, como não fazer um livro anedótico e abusivo. Era preciso uma política da escrita, e este foi meu grande desafio: o respeito. Por isso me refugiei na poética, na leitura de textos de alta cultura, na busca por formas de refinamento para me referir aos asilados. Meu texto não é espontâneo, ele foi muito pensado por mim, deliberei comigo mesma, me fiz perguntas que abarcaram da ética à estética.

A falta aparece em seu ensaio como o cerne da enfermidade e das uniões amorosas ali flagradas, que conduzem o ser a “habitar o outro a qualquer custo”. A ideia de unidade é, afinal, histórica, cultural, ou inata, e sendo inata, é aí que a fratura dos doentes se encontra?

DE: Bem, a loucura é uma forma de erupção, de desagregação, de ruptura do eu. Então precisei desagregar, romper, fazer explodir a literalidade do texto para me aproximar talvez à minha própria doença, que é a escrita.

 

É possível falar de política ao se falar de amor?

DE: Existe uma política do amor determinada e moldada pelo conjunto das instituições que adentram os imaginários de forma sentimental. Me interessou intensamente a forma como o amor se torna texto em espanhol, de que modo foi registrado. Me interessava essa parte da produção amorosa mediante um dos instrumentos mais valorizados da escrita, como é a poesia. Para isso, li muita poesia medieval em castelhano (como matriz do atual espanhol), o que foi uma experiência cultural importante e necessária para o livro. Nessa poética inaugural, apareciam uma e outra vez os ossos como decisivos no trânsito amoroso.

Qual o valor ético que o amor ganha ao ser retirado de seu contexto socialmente aceitável?

DE: Em Putaendo havia, e certamente ainda há, casais. Da minha perspectiva, esses casais se formam como modo de resistência e de sobrevivência diante de um confinamento sem data para terminar. Não se trata do horizonte de um futuro, e sim de cada um dos tempos presentes mais radicais. Então, essas uniões, realizadas mediante algum tipo de afinidade, podem ser consideradas como amorosas quando pensadas em relação à generalidade das uniões. É evidente que não se trata do amor burguês, muito menos da acumulação de bens. O que os asilados podem compartilhar com algum grau de esforço é o mínimo, como dividir um pão com manteiga. Estamos falando de confinados pobres e sem direitos civis.

No ensaio, você recupera a ideia de “corpo romântico” do século 19 (amor/doença/morte), para compará-lo ao corpo assalariado, que serve à sociedade apenas na medida em que produz. Em tempos de coronavírus e da incapacidade do sistema capitalista e da ciência de dar respostas eficientes à humanidade, acredita que estamos diante de mais uma mudança no entendimento do amor?

DE: Penso que a covid-19, causada pelo coronavírus, é uma doença antagônica ao amor e se situa, antes, no território binário da guerra entre doença e economia, entre máxima riqueza e extrema pobreza ou entre a opção (sempre segregadora) dos que vivem e dos que morrem. Acho que o que está no centro são o amor ao dinheiro, o amor ao poder custeado pelo amor a uma ordem violenta, produzida pelo aparelho policial, feroz e extremo. O coronavírus permite desdobrar abertamente a real dimensão das estruturas que habitamos. ///

 

 

 

 

O livro O infarto da alma pode ser comprado na loja online do IMS 

 

Paz Errázuriz (Santiago do Chile, 1944) iniciou sua carreira autodidata na fotografia durante os violentos anos 1970, quando se instaurava em seu país a ditadura militar de Pinochet. Errázuriz expôs largamente pelo mundo, inclusive representando o Chile na Bienal de Veneza em 2015, e sua obra está nos acervos de instituições como Tate, Reina Sofía, Daros e Mapfre. Recebeu diversos prêmios; entre os mais recentes estão o Photoespaña, o Madame Figaro do Festival de Arles e o Prêmio Nacional de Artes Plásticas do Chile.

Diamela Eltit (Santiago do Chile, 1949) é escritora e professora universitária. Foi parte do grupo conceitual cada (Coletivo de Ações de Arte), em que a prática artística era exercida como forma de resistência ao regime de Pinochet. Publicou, entre outros livros, Lumpérica, Por la patria, El cuarto mundo, Los vigilantes, Los trabajadores de la muerte, Mano de obra e, no Brasil, o romance Jamais o fogo nunca (Relicário, 2017) e os ensaios de A máquina Pinochet (e-galáxia, 2017).

Livia Deorsola é editora e tradutora. Além de A fúria, de Silvina Ocampo, traduziu, entre outros, livros de Bioy Casares, Pedro Mairal e Daniel Sada – por este último, foi indicada ao Prêmio Jabuti de Tradução em 2018. Foi editora na Cosac Naify e na Companhia das Letras, e é professora de cursos de tradução na Casa Guilherme de Almeida e no Lugar de Ler.

 

 

[1] A chilena Angeles Donoso Macaya é pesquisadora na área de fotografia e professora do Borough of Manhattan Community College, em Nova York. Suas pesquisas concentram-se na teoria e história da fotografia latino-americana, direitos humanos e feminismo. É autora de The Insubordination of Photography: Documentary Practices under Chile’s Dictatorship (University Press da Flórida, 2020).

[2] Série de fotografias realizadas no pequeno povoado chileno de El Calvario, onde conhece Paz Errázuriz uma família acometida pela acromatopsia, enfermidade congênita que faz com que a realidade seja percebida em preto e branco.

 

 

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