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German Lorca e as sobreposições do tempo

Eder Chiodetto & German Lorca Publicado em: 11 de maio de 2021

 

Retrato de German Lorca realizado por Chico Albuquerque no estúdio fotográfico do Foto Cine Clube Bandeirante, São Paulo, SP, 1949. Coleção Chico Albuquerque/ Acervo IMS – Convênio MIS/SP

 

O último dos fotógrafos brasileiros da geração modernista partiu. O longevo, irrequieto, criativo e iconoclasta German Lorca nos deixou órfãos de suas histórias repletas de humor e muita vivência na véspera do Dia das Mães, no último 8 de maio, faltando apenas 20 dias para completar 99 anos.

A história da família de German Lorca se assemelha a de muitos imigrantes que chegaram ao Brasil no início do século 20: “Meus avós eram espanhóis e vieram para o Brasil por causa da Guerra da África. Quem estivesse na idade militar era mandado para lá. Muitos não voltavam.”

Terceiro dos oito filhos de Francisco Ramón Lorca Moreno (1893-1962) e Julia López Pérez (1897-1990), German Lorca nasceu em 1922, ano da Semana de Arte Moderna. Formou-se em contabilidade em 1940 e morou no bairro do Brás até os 32 anos. Aos 13, adquiriu uma câmera Kodak Bullet 127. Sua primeira experiência fotográfica foi um retrato de seus pais no quintal de casa.

Aos 23 anos, Lorca casou-se com Maria Eliza Adelina Ferreira. Prestes a nascer sua primeira filha, investiu na câmera alemã Weiti, de 35 mm. Um tio de sua esposa o incentivava no ramo fotográfico. Lorca passou então a andar pela cidade com a câmera, até que um dia, em 1947, deparou-se com a cena que o faria perceber a potência de uma fotografia: próximo ao parque Dom Pedro, pessoas haviam ateado fogo em um bonde, em protesto contra o aumento do preço da passagem de 200 para 500 réis. “Foi meu primeiro flagrante.” Excitado com a imagem, Lorca inscreveu-se no Foto Cine Clube Bandeirante (FCCB) logo depois.

 

Revolta dos passageiros, 1947

“O Bandeirante era uma escola. Tinha pessoas abonadas, mas eu era humilde, não tinha nem máquina boa. No Clube havia engenheiros, médicos, dentistas, industriais. Vinham todos de carro, eu de ônibus. Lá conheci o Geraldo de Barros, funcionário do Banco do Brasil.”

No Clube, rapidamente começou a haver um racha entre a fotografia mais tradicional, que pagava tributos à pintura acadêmica, e a radicalidade experimental de Geraldo de Barros, à qual Lorca aderia ao mesmo tempo que se interessava pelo ramo das reportagens.

 

São Paulo crescendo, 1965 (múltiplas exposições em um mesmo negativo)

Essas duas visões polarizadas no FCCB era reflexo direto do cenário pós-Segunda Guerra Mundial. A arte no geral, e a fotografia em particular, estavam sendo revisadas diante de um novo mundo. Sinais luminosos, velocidade, arranha-céus, televisão, Guerra Fria e a industrialização crescente redesenhavam por completo a paisagem e a postura do homem moderno.

 

Le diable aux corps, 1949 (solarização)

Os temas bucólicos e românticos, que muitas vezes eram o foco dos integrantes do FCCB, contrapunham-se a uma ávida investigação sobre as múltiplas possibilidades de representação do visível. A cidade e o homem moderno careciam de uma iconografia renovada que os representasse. Impulsionados por Geraldo de Barros, Lorca e outros poucos iconoclastas dos quadros do FCCB buscavam amplificar as possibilidades do fotográfico a golpes de luz, o elogio das sombras, jogos geométricos, múltiplas exposições, baixas velocidades de obturação, fotomontagens e solarizações, entre outros efeitos. Movimentos como dadaísmo, surrealismo e concretismo foram revistos de forma intuitiva e “antropofágica”, para horror dos fotógrafos mais tradicionalistas do FCCB.

 

Em pouco tempo, Lorca montou em sua casa um laboratório para revelar filmes em preto e branco e ampliar cópias. Geraldo de Barros comprou uma casa a 30 metros de Lorca e usava o laboratório do amigo para fazer suas experimentações. “O Geraldo me ensinou a fazer solarização e a regra de ouro da composição.” Esses trabalhos experimentais de Lorca o levaram a fazer sua primeira mostra individual: 35 fotografias G. Lorca, no MAM-SP, em 1952, ano em que também abriu seu primeiro estúdio, o G. Lorca Foto Stúdio, no centro de São Paulo.

Lorca, enfim, abandonou definitivamente o ofício de contador e assumiu a fotografia profissionalmente. Em 1954, fotografou o Quarto Centenário de São Paulo, e o ensaio foi publicado pela Editora Abril, conferindo-lhe notoriedade no meio editorial. Destacou-se no conjunto sua conhecida obra Oca, na qual ele reforça a semelhança do prédio desenhado por Oscar Niemeyer com uma espaçonave, que abduz uma senhora e um garoto, no caso, a avó e um dos três filhos do fotógrafo.

A partir daí, Lorca fotografa avidamente casamentos, álbuns de crianças, publicidade, fotografia industrial, tudo o que pudesse render alguma remuneração. Vale ressaltar que ele é um dos raros fotógrafos do núcleo do FCCB que se tornou um fotógrafo profissional. Aos poucos, um emergente mercado de publicidade em São Paulo começa a render-lhe bons trabalhos.

 

Oca, 1954 (Quarto Centenário de São Paulo)

Lorca se valeu de sua liberdade experimental dos tempos de FCCB aliada à curiosidade sobre as técnicas para injetar novidade e gerar imagens de impacto para a publicidade. A chegada dos flashes eletrônicos, que permitiam congelar cenas em movimento, por exemplo, geraram imagens publicitárias singulares, como a dos pratos voadores, que o fabricante alegava serem inquebráveis por terem em sua composição uma determinada resina.

 

Pratos, 1970

Chamado para fazer o catálogo de moda verão do Mappin, achou meio aborrecido fazer apenas as fotografias das modelos posando com as roupas e, ao enviar as imagens para a agência, colocou de propósito uma imagem desfocada, em alto contraste e em preto e branco no pacote. O diretor de arte o questionou sobre o que aquela imagem fazia no conjunto. Lorca desconversou, disse que havia enviado por engano. Para sua surpresa, a imagem tornou-se a capa do catálogo.

 

Moda, 1970

Com o imenso avanço da indústria automobilística no Brasil, após os anos do governo JK, Lorca especializou-se em fotografar carros e caminhões, tanto em externas quanto em estúdio, atividade na qual foi pioneiro. Para a campanha do Jeep, em 1963, ele criou a ambientação num campo de futebol. Para dar uma graça maior à imagem, o fotógrafo resolveu incluir um cachorro na cena. Para que ficasse na posição certa, Lorca pediu para que o figurante que está com o braço levantado segurasse um naco de carne na mão, para onde o cachorro olha atentamente.

 

Desafio maior foi a campanha da caminhonete que dizia ser perfeita para qualquer tipo de carga. Lorca precisou convencer o dono de um circo a alugar uma girafa, levá-la até o vale do Anhangabaú e colocá-la sobre o bagageiro. O peso da modelo quebrou o eixo do automóvel, ela se assustou e saiu em disparada pela cidade. Desespero. Dominada a situação, com a girafa laçada pelo seu proprietário, a foto foi feita com o eixo do carro reforçado, Lorca num guindaste emprestado da Light e ajudantes segurando um saco de pão com uma vara, nas alturas, para que a girafa olhasse na direção certa.

 

A indústria fonográfica foi outra para a qual Lorca fez muitos trabalhos, sobretudo capas de discos para a RCA Victor. Aqui também ele inovou. Ao invés do clássico plano americano dos artistas nas capas, que predominava como padrão, propôs solarizações coloridas, como nas capas dos grupos Os Incríveis e Os Caçulas. Para a capa do disco da cantora Vanusa, a fez dançar no estúdio, baixou a velocidade de obturação da câmera e registrou seu rastro.

O trabalho comercial entre os anos 1960 e 1980 levaram a um decréscimo de sua produção mais experimental, mas ele sempre dava um jeito de fazer uma foto mais criativa entre as sessões de encomenda. Em 1988, os filhos José Henrique e Fred assumem de vez o estúdio. Lorca segue como diretor até 2003, mas passa a se dedicar a garimpar imagens do seu acervo para exposições. Importante salientar que a produção fotoclubista volta com força a ser estudada e exposta a partir do importante levantamento da história do FCCB, em pesquisa realizada por Helouise Costa e Renato Rodrigues da Silva, que resultou no livro A fotografia moderna no Brasil, publicado pela Edusp, em 1995 (reeditado em 2004 pela Cosac Naify).

Além de pinçar obras do seu acervo, Lorca continuava circulando por São Paulo com sua máquina numa caça incansável por boas imagens, como a que foi realizada durante um passeio pelo Centro Cultural São Paulo, em 2009, na qual ele, já com 87 anos, percebe o jogo geométrico desconcertante de uma mesa redonda com um painel quadrado banhados por uma bela gradação de cinzas. A beleza do ordinário revelada por um olhar astuto.

 

Quadrado e círculo, 2009

Caminhando pelo parque do Ibirapuera, em 2002, viu o sol da tarde entre as árvores e imaginou um conto fantástico sobre uma tarde estranha em que três sóis compareceram no crepúsculo. E assim se fez a imagem.

 

Três sóis, 2002

Ainda frequentando quase que diariamente o estúdio, agora sob administração dos filhos, Lorca pedia a um assistente para trabalhar algumas de suas imagens no Photoshop. Encantava-se com as infinitas possibilidades de recriar as imagens alterando cor, corte, textura etc. Foi assim que ele ingressou no universo da cor no seu trabalho artístico. Houve uma imagem que o mobilizou nessa nossa esfera. Em 2000, visitando um amigo no interior, deparou com um colchão inflável numa piscina. Seus olhos atentos perceberam que a falta total de vento e movimento criou um efeito mágico: a água parecia não existir. O colchão flutuava no ar. Fez a imagem, mas julgou que as cores não correspondiam à magia do momento. Sentou ao lado do assistente e foi alterando a imagem até chegar na belíssima versão final.

 

Levitação na piscina, 2000

Desde então se encantou com as possibilidades da cor. Outro evento que o motivou foi um festival de pipas num parque da capital Paulista. “Nessas já veio tudo pronto, não precisei alterar nada”, disse.

 

Pipas #22, c. 2000

Em 2016, um grupo de imagens de Lorca foi adquirida para o acervo do MoMA, por intermédio de Sarah Meister, curadora de fotografia do museu nova-iorquino. Feliz com sua obra sendo integrada a importantes coleções mundo afora, animou-se a ir até Nova York, com 94 anos, visitar o MoMA e terminar um ensaio sobre o Central Park que havia começado décadas antes. Por um desses desatinos do tempo, a mostra Fotoclubismo: Brazilian Modernist Photography, 1946-1964, da qual Lorca é um dos principais artistas expostos, abriu no MoMA justamente no dia de sua morte.

 

Central Park, 1992 (justaposição)

Ele se divertia quando o provocávamos sobre o seu centenário que se aproximava. “Será que chego lá?”, perguntava. A gargalhada característica que se seguia a essa pergunta era a prova de que sua obra havia desafiado o tempo, e não havia mais porque temer a finitude. Lorca, definitivamente, venceu o tempo!

Sua obra deixa um legado dos mais importantes para a história da fotografia brasileira, sobretudo por sua atitude libertária. Era da sua natureza jogar sempre com os limites, desafiando o status quo da linguagem fotográfica e das convenções. Seja na arte, seja na fotografia comercial, a percepção da magia e do fantástico de Lorca criou mundos paralelos ao que denominamos realidade. Rever sua obra será sempre uma forma de reativar um universo sensível tangível. Suas imagens e suas histórias seguirão por outros séculos iluminando a relação provocativa e crítica que devemos ter com as imagens, mas também com a própria vida. Lorca vive! ///

Fotografias gentilmente cedidas pela família de German Lorca

 

Eder Chiodetto é mestre em Comunicação e Artes pela ECA/USP, jornalista, fotógrafo, curador independente e autor dos livros O Lugar do Escritor (Cosac Naify), Geração 00: A Nova Fotografia Brasileira (Edições Sesc) e Curadoria em Fotografia: da pesquisa à exposição (Ateliê Fotô/Funarte), entre vários outros.

 

 

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