Vinte anotações sobre Farroupilha, de André Penteado
Publicado em: 25 de agosto de 20201.
Ao longo dos anos adquiri alguns livros sobre o interpretar o trabalho de fotógrafos que impactaram sua geração – entre eles está o Sobre fotografia, da escritora americana Susan Sontag. Dela é a observação: a fotografia é o inventário da mortalidade. Levando isso em conta, penso que, na arte fotográfica, a confirmação da finitude, da passagem, é também a afirmação de uma distância – e, por isso, uma nova alternância – entre presente e passado, com reflexos diretos no que chamamos de esquecimento, memória (no fundar e refundar memórias) e imaginação (na imaginação que age sobre a construção das memórias). Esse processo, essa dimensão e seu desdobramento, é mais grave quando relaciona símbolos, simbologias, identidades, pois adere (e, a exemplo do que se proporciona a partir da literatura e da tradição oral, os instrumentaliza) a processos de idealização (e ideologização).
As grandes e as pequenas ocorrências absorvidas por algum imaginário, normativo e vinculado à expansão de planos ideais, estabelecido ou em formação, tendem a ser objeto de disputa. A simbologia em torno da chamada Revolução Farroupilha é, nos dias de hoje, talvez como ainda não havia ocorrido nas últimas décadas, destino de acirrada disputa. Imagens que capturem cenários, arquiteturas, expressões em geral passíveis de serem conectadas ao histórico daquele período podem ter múltiplas interpretações – nessa dinâmica surgem certezas, mas também se revelam novas e significativas incertezas.
Sendo negro, pardo de pele clara, nascido em uma região de classe média baixa da capital do Rio Grande do Sul, região onde é possível encontrar presídios, quartéis do Exército, quartéis da Polícia Militar, Academia da Polícia Militar, o primeiro, e possivelmente o mais importante, centro de tradições gaúchas do estado e do país e também churrascarias – algumas das mais procuradas da cidade, onde, por definição, o culto ao consumo de carne, no padrão espeto-corrido, chega à sua plenitude –, penso que me seja impossível passar pelas imagens deste álbum, de autoria do André Penteado, sem me desvencilhar das lembranças, das passionalidades que integraram e integram minha história pessoal.
Ao escrever sobre este trabalho escrevo muito mais sobre mim do que sobre ele e sobre os questionamentos reavivados pelo choque entre minhas memórias e as memórias que as imagens dele fundam e refundam em mim. Nesse sentido, o que posso anotar é que selecionei as imagens – as imagens a respeito das quais tentarei dizer alguma coisa – com cautela, separando as que mais me tocaram, mas consciente de que, no contato que se possibilita, passo a integrar um processo de racionalização que é bem maior do que este meu processo, esta minha leitura e, talvez não suficientemente cautelosa, exposição.
Necessário ainda registrar que, soterrado por imagens do Instagram, do Facebook, do Twitter e até por vídeos do Youtube e do Vimeo – mesmo sendo alguém que tenta se policiar para não despender muito tempo com futilidades da internet –, me apercebo, e isso para mim não é obviedade alguma, do quanto um trabalho como este do André se distancia com êxito das capturas frenéticas, abarrotadas de filtros, superficialidades, acasos esplendorosos, dos celulares e das suas sequentes postagens nas redes sociais a que nos submetemos na atualidade. Por isso registro que recebi com felicidade a chance de ter acesso ao instigante trabalho desse artista. (Nem tudo será abduzido pela grande geleia que, a partir da recente revolução tecnológica, parece ter comprometido para sempre nossa atenção.)
2.
Farroupilha chegou às minhas mãos no início da pandemia gerada pelo Covid-19 – eu já estava em confinamento social quando folhei o livro pela primeira vez. Logo no primeiro contato, as imagens me levaram a um lugar diferente, a um, digamos, páthos situado além das impressões, aleatórias e fugazes, dos espaços de linguagem de comunicação dependentes do que é projetado, como mencionei há pouco, dos visores e das telas dos celulares, tablets, laptops, monitores de televisões. No manuseio do álbum, o sentir e o ressentir do maço de folhas e do seu peso, a experiência do tocar, percepções que se descolam da cronologia rotineira, os lapsos-labirintos do tocar.
3.
Na segunda estrofe do Hino do Rio Grande do Sul, há quatro versos: “Mostremos valor, constância / Nesta ímpia e injusta guerra / Sirvam nossas façanhas / De modelo a toda terra”. Essas palavras, por adesão, rejeição ou indiferença, são as que, imagino, vêm à cabeça da maioria dos rio-grandenses quando diante de expressões ou registros relacionados à Guerra dos Farrapos, à data do 20 de setembro, dia de celebração da chamada Revolução Farroupilha.
A primeira imagem no álbum do André Penteado é a do plenário da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, o Plenário 20 de Setembro, no prédio batizado de Palácio Farroupilha, inaugurado em setembro de 1967, portanto, durante a ditadura militar. Na imagem, um plenário vazio, a bandeira do estado, o Cristo crucificado, poltronas, mesas, sua permanência, suas simetrias, seus forros de couro, metal, madeira, sua isonomia e, sobretudo, sua resiliência em processo diante da absoluta ausência de todos os que, em todos os tempos desde 1967, passaram por ali. Na imagem, o que está sempre à espera. Um modelo a toda terra?
Nesse plenário assisti à primeira palestra do Fernando Gabeira em Porto Alegre depois que ele voltou do exílio, foi uma palestra que me marcou, participei de atos de protesto, participei de meia dúzia de reuniões municipais e estaduais da União Gaúcha dos Estudantes, geralmente realizadas nas tardes de sábado e domingo, reuniões que tinham um clima de festa, porque era quando militantes de vários locais do estado se encontravam (e havia as festas de sábado, que aconteciam depois das reuniões), de alguns encontros estaduais do Partido dos Trabalhadores também. Nesse plenário, escutei, falei, debati, gritei palavras de ordem, conheci pessoas que, depois do meu afastamento da militância, nunca mais cruzei. Lembro, nos encontros estudantis, de me sentar nas poltronas de frente para a mesa diretora e colocar meus pés sobre o tampo da mesa e ficar observando os jeitos dos outros jovens militantes, os de direita e os de esquerda, as disputas políticas, as propostas, os ensaios de moças e rapazes que hoje são deputados federais, estaduais, ex-prefeitos, teólogos, professores, ambientalistas, urbanistas, artistas, médicos, engenheiros, advogados, sindicalistas, empresários, juízes, desembargadores, promotores, procuradores, policiais.
Talvez essa imagem, a primeira imagem do álbum, seja, como imagem isolada, a mais significativa para mim – nesse plenário sempre houve algum adorno em destaque para lembrar a todos da Guerra dos Farrapos e as tais façanhas que deveriam servir de modelo a toda terra.
Um plenário de casa de legislativa, embora projete concerto, conciliações, é sempre um lugar de disputa, de combate.
No início da década de mil novecentos e noventa decidi me afastar desse espaço (da Assembleia Legislativa). Não retornei.
4.
Na segunda imagem, a galeria com os retratos dos presidentes da Assembleia Legislativa, apenas dois deputados negros – embora, suspeito, um deles (ainda vivo, na verdade mais jovem do que eu) não se reconheça como homem negro –, e uma deputada.
5.
Na décima quarta imagem. Sem moldura branca, espeto de carne de ovelha – provavelmente de carne de ovelha. A única imagem, entre as imagens com carne para churrasco no álbum, que não me trouxe desconforto. Difícil explicar. Tendo a não gostar de imagens com carne, assada ou não.
Lembrei das visitas de amigos estrangeiros, europeus na maioria, que, levados por mim a churrascarias de Porto Alegre, passaram mal – sendo, inclusive, acometidos de fortes dores nos maxilares inferiores, nas mandíbulas, por conta da mastigação – pelo consumo de tanta carne.
A imagem me lembra do quanto, no geral, o rio-grandense, ainda nos dias de hoje, precisa se afirmar como pessoa agressiva – rio-grandenses têm essa fama de serem bélicos, de prezarem as disputas francas –, o que, muitas vezes, para quem olha de fora, é comportamento ridículo.
6.
Na décima sexta imagem, um homem dos seus cinquenta anos, provavelmente um professor, um militante do movimento negro. A mesa da cozinha é seu lugar de estudo – meu pai fez a faculdade de Direito inteira estudando na mesa da cozinha. Não há sorriso no rosto do homem. O negro rio-grandense não é de sorrir, não gratuitamente.
Os movimentos negros do Rio Grande do Sul são dos mais fortes do país, ainda assim boa parte da comunidade negra ainda não tem plena consciência do quanto a chamada guerra farroupilha foi injusta e cruel com os escravizados.
7.
Na vigésima segunda imagem, um jovem, vestindo uma camiseta do Movimento Nacional de Luta Pela Moradia, no alto de um prédio. Do outro lado da via, um prédio que foi construído no terreno onde era a sede antiga da Sogipa – Sociedade de Ginástica de Porto Alegre, fundada por um grupo de imigrantes alemães. No olhar dele, o tradicional ar de desconfiança que é marca dos rio-grandenses.
8.
Na vigésima oitava imagem, mulher idosa sobre rocha. O tênis Nike de corrida parece ser de um número maior do que o pé dela. No olhar dela, olhar de quem, invisível, observa o desenrolar de uma batalha. No seu olhar, a vivência de mil anos (no seu dedo anular da mão direita, um anel).
9.
Na vigésima sétima imagem, a estátua de Bento Gonçalves. Nunca simpatizei com essa estátua. Para mim – que inconscientemente nunca relacionei a representação em metal à figura histórica –, sempre foi a estátua de um tirano.
O ônibus no registro, por certo, é um ônibus das linhas que atendem a região leste, onde fica o Bairro Partenon, o bairro onde me criei.
Durante minha infância e minha adolescência inteiras passei de ônibus por essa estátua. Do seu lado esquerdo está o Colégio Estadual Júlio de Castilhos, o Julinho, que formou várias figuras de expressão da história brasileira, como Leonel Brizola, Paulo Brossard e Moacir Scliar. Também estudou no Colégio, Paixão Côrtes, folclorista que serviu de modelo para a emblemática estátua do laçador (parte da estátua aparece na vigésima nona imagem) – tem uma réplica tosca na cidade de Rondonópolis, onde se passa o romance que estou escrevendo – e foi o responsável direto pela fundação do primeiro Centro de Tradições Gaúchas, o CTG 35. (Quando eu tinha 16 anos frequentei as tertúlias de sexta-feira à noite do Trinta e Cinco, tinha desconto para estudantes e ficava perto da minha casa).
10.
Na trigésima quarta imagem, pequeno monumento em pedra, onde está afixada placa em metal, iniciativa do Movimento Tradicionalista Gaúcho, em homenagem aos que lutaram na Batalha dos Porongos, em 14 de novembro de 1944. Imagem sóbria. Edificação que, diferente de quase todos os monumentos que remetem à Guerra dos Farrapos, para mim, faz algum sentido. Estrutura atingida pelas intempéries.
11.
Na sequência de imagens, quadragésima sexta a quinquagésima primeira, pessoas aguardando o início do desfile do 20 de setembro. A sequência de imagens mais interessante do álbum, na minha opinião. Adultos atentos, desligados, conversando, imersos nos visores de seus celulares. Crianças sem saber o que esperar, ansiosas, distraídas, felizes, absortas, com expressão desolada. Pessoas encarando desconfiadas a lente da máquina fotográfica. Pessoas com o olhar cansado, com o olhar sofrido. Pessoas solitárias. Famílias. Casais. Camisas e agasalhos do Internacional. Camisas e agasalhos do Grêmio. Pessoas vestindo a indumentária tradicional. Pessoas tomando chimarrão. Um menino que, tímido, observa a menina ao seu lado comendo pipocas.
12.
Na sexagésima terceira imagem. Homem usando lenço vermelho. Íris de cores múltiplas. Fenótipo mestiço, indígena, negro, branco. Gaúcho-peão. Alguns amigos meus nascidos no Rio Grande do Sul, não gostam de ser chamados de gaúchos porque o termo remeteria a um passado (a uma mitologia forçada) do qual, segundo eles, não há muito do que se orgulhar; há outros motivos.
13.
Na sequência de imagens octogésima nona a nonagésima terceira, imagens de propriedades rurais. Gaúchos têm essa fama de, por conta da vocação ruralista, migrarem para outras regiões do país e, nesse contexto de exploração da terra, de serem responsáveis por boa parte do desmatamento do país. A lógica da fazenda gaúcha com o gado pastando em grande extensão de campo é um modelo superado; há mais de seis décadas, não faz sentido algum.
14.
Quantos esquecimentos, apagamentos, quantas distorções se fizeram necessários para cada memória erguida em torno da mitologia farroupilha?
15.
Em que medida as fotos desse álbum chegam ao passado, inventam o passado? (Comecei com a pergunta e continuo com ela.)
16.
Para Susan Sontag, construímos a história a partir de nossos detritos.
17.
Para quem escreve ficção tudo é narrativa. Penso que as fotografias contêm narrativas, diversas (em relações nunca completamente anacrônicas), muito mais ficcionais do que documentais, mas antes afirmam a realidade. Com essa dimensão, os que conviverem com o coligir eternizado nesse álbum, em graus diferentes, rio-grandenses ou não, terão de lidar.
18.
(As fotos são pedaços da realidade e passagem.)
19.
Na interação: qual seria o engajamento, qual seria a ética?
20.
Revisão, expressão do conflito sob o contínuo propósito da idealização. E a razão do que permanecerá oculto. ///
Paulo Scott é autor de seis livros de poesia e seis de prosa – dentre eles o livro de contos Ainda orangotangos, adaptado para o cinema pelo diretor Gustavo Spolidoro, longa-metragem vencedor do 13º Festival de Cinema de Milão, e o romance Habitante irreal, livro vencedor do Prêmio Machado de Assis 2012. Seu trabalho recente é o romance Marrom e Amarelo, que aborda o racismo e o colorismo no Brasil.
Tags: Cabanagem, fotolivro, Missão francesa, Revolução Farroupilha