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Entrevista: a curadora Sarah Meister fala sobre a exposição Fotoclubismo, em cartaz no MoMA de Nova York

Tiê Higashi Publicado em: 12 de maio de 2021

Circense, de Júlio Agostinelli, 1951. Museu de Arte Moderna, Nova York. Adquirido pela generosidade de Richard O. Rieger. © 2020 Espólio de Júlio Agostinelli

A exposição Fotoclubismo: Fotografia Modernista Brasileira – 1946–1964, aberta no último final de semana no MoMA de Nova York, marca a despedida da curadora Sarah Meister do departamento de fotografia do museu, onde esteve nos últimos 20 anos. Ela agora se prepara para assumir a diretoria executiva da Fundação Aperture.

Fotoclubismo apresenta as experiências criativas do Foto Cine Clube Bandeirante (FCCB), um grupo de fotógrafos amadores baseado em São Paulo e cuja originalidade dos trabalhos mais abstratos teve importante papel no cenário da arte de vanguarda brasileira durante a década de 1950. Apesar de naquele momento o FCCB ter apresentado o seu trabalho ao redor do mundo por conta dos concursos internacionais de fotografia, eles acabaram desaparecendo de vista alguns anos mais tarde. A atual exposição é a primeira a apresentar este momento da história da fotografia brasileira para um público internacional.

Com mais de 60 fotografias, quase que exclusivamente da coleção do MoMA, Fotoclubismo questiona os preconceitos que levaram à ausência do FCCB na história internacional da fotografia e ainda convida à reflexão sobre o atual status da fotografia amadora. Sarah conversou com Tiê Higashi, curadora independente brasileira que trabalhou no projeto do MoMA, sobre o processo de pesquisa, seu interesse pela fotografia brasileira e latino-americana, o acervo do MoMA e o seu futuro na Fundação Aperture.

 

Fotoforma, de Geraldo de Barros, 1952-53. Museu de Arte Moderna, Nova York. Adquirido pela generosidade de John e Lisa Pritzker. © 2020 Arquivo Geraldo de Barros. Cortesia Galeria Luciana Brito.

Eu gostaria que você me contasse como começou o seu interesse pela fotografia moderna brasileira e latino-americana.

Sarah Meister: Eu começaria a traçar o início do meu interesse em 2005, quando o MoMA comprou duas fotografias do Geraldo de Barros. Na época, não sabia o que fazer com aquelas imagens. Mas elas certamente me interessavam. No entanto, eu não tinha nenhum contexto que me fizesse entender aqueles trabalhos, eles não se encaixavam em nada do que eu achava que sabia sobre fotografia. Mas diria que foi nesse momento, com essas aquisições, que as sementes do interesse foram plantadas, pois havia um artista incrível, inventivo e experimental trabalhando em São Paulo no fim dos anos 40 e 50 e eu não sabia nada.

Em 2012, graças ao C-MAP [um programa de pesquisa interno do MoMA que promove o estudo de histórias da arte fora da América do Norte e da Europa Ocidental], fui para São Paulo pela primeira vez e então eu comecei a entender. Luis Pérez-Oramas, então curador da 30ª Bienal e do MoMA, ficava me contando sobre um tal de Foto Cine Clube Bandeirante e eu não sabia o que era. Isso me levou a conversas com Gaspar Gasparian e Eric Franck sobre três aquisições do seu trabalho. Coincidiu também com conversas com os filhos de Thomas Farkas, nas quais descobrimos que existiam sete fotos na coleção do museu que Farkas havia mandado para Edward Steichen em 1949.

Estava contente pensando que tínhamos três artistas do FCCB na nossa coleção. Então, em 2015, estive em São Paulo pela terceira vez e fiquei sabendo que Gertrudes Altschul e muitos outros fotógrafos interessantes eram sócios do clube. Foi então que o senso de satisfação evaporou. Pensei em como eu era inocente em achar que estava perto de entender. Comecei então a ter contato com os escritos da Helouise Costa e da Heloisa Espada, visitei coleções privadas, conheci a Isabel Amado… E me dei conta de que este era um capítulo completamente desconhecido por mim e que eu precisava ser muito humilde sobre aquilo que eu não sabia. E, claro, também por ocasião daquela primeira viagem em 2012, comecei a desenvolver um interesse sobre o que estava acontecendo naquele momento no Brasil. Apesar dessa exposição tratar de um passado mais distante, ela coincide também com a tomada de consciência sobre coisas empolgantes que estavam acontecendo naquele momento.

 

Trilhos, de André Carneiro, 1951. Museu de Arte Moderna, Nova York. Adquirido pela generosidade de José Olympio da Veiga Pereira através do Fundo Latino-americano e Caribenho © 2020 Espólio de André Carneiro

A exposição apresenta majoritariamente fotografias do próprio acervo do MoMA, muitas de aquisições recentes. Queria que explicasse a relevância dessas aquisições para um dos mais importantes acervos de fotografia.

SM: Foi mais ou menos em 2015 que nós, enquanto instituição, começamos a perceber que havia a ambição de fazer algo maior com aquelas fotografias. Queríamos adquirir mais trabalhos e construir uma estratégia sobre como essas obras viveriam na coleção. E agora essas fotografias podem fazer parte das exposições do MoMA. Eu espero que a presença desses trabalhos no acervo continue a transformar a forma pela qual contamos a história da arte do século 20, tornando possíveis histórias expandidas. O outro motivo pelo qual eu as considero realmente essenciais para a coleção é que elas me oferecem, como curadora – e para outros curadores e pesquisadores –, a chance de refletir sobre os motivos que mantiveram esses nomes ausentes da história da fotografia até agora.

 

Falando nisso, como você acha que será a recepção da audiência norte-americana e europeia aos trabalhos produzidos pelo FCCB? Você acredita que haverá alguma ressonância no estudo da história da fotografia moderna, principalmente latino-americana?

SM: Espero que eles gostem tanto quanto eu, me sinto confiante de que eles irão gostar sim. As fotografias possuem tamanha ambição e força visual, e esses fotógrafos são tão inventivos e criativos que acredito que as pessoas responderão de forma receptiva e positiva aos trabalhos. Eu também espero que possa desencadear um ponto de reflexão do público sobre como é possível que não se soubesse nada sobre esse grupo de fotógrafos e o que é preciso fazer – enquanto curadores e instituições – para resolver isso. Sinceramente, a minha maior ambição é que esta exposição possa oferecer um modelo para que pessoas ao redor do mundo possam reconhecer como as formas que contamos as histórias, as hierarquias que estabelecemos e as prioridades que adotamos podem, inadvertidamente, nos levar a deixar passar e negligenciar semelhantes e importantes capítulos da história, não só na América Latina, mas ao redor do mundo.

Eu tenho também uma parcela de culpa. Ao longo da minha carreira tentei encontrar e dar sentido à fotografia, uma mídia pluralista, desregrada e democrática. E assim, ao tentar ajudar o público a entendê-la, dizendo “isso é bom, isso é ruim; isso é arte e isso não é”; com a boa intenção de tentar dar sentido à fotografia, eu contribuí com o problema e me arrependo disso. Assim, espero que a exposição ajude a apontar para uma solução, não só na história da fotografia latino-americana, mas, mais pluralmente, em como as hierarquias que foram instituidas levaram a exclusões que hoje precisam ser reconsideradas.

Recentemente, me deparei com o livro Viewfinders: Black Women Photographers, da fotógrafa Jeanne Moutoussamy-Ashem, escrito em 1985, no qual ela apresenta inúmeras fotógrafas negras. É chocante notar que a grande maioria das fotógrafas desconhecidas na época continuam sendo desconhecidas atualmente. E que uma parcela considerável é formada por fotógrafas comerciais. Isso me fez perceber que o preconceito contra o amadorismo, usado como justificativa para a exclusão do FCCB nesta narrativa mais ampla da história, é semelhante ao preconceito para com as práticas fotográficas comerciais suprimidas da literatura e da celebração estética. Ou seja, ainda temos muito trabalho para fazer. E é o que espero continuar fazendo na Aperture: oferecer uma plataforma para fomentar a reflexão crítica e recuperar fragmentos na história da arte e da fotografia global.

 

Arranha-céus, de Roberto Yoshida, 1959. Coleção Fernanda Feitosa e Heitor Martins. © 2020 Espólio de Roberto Yoshida

Como você mencionou, o processo de pesquisa para a exposição Fotoclubismo foi longo. O que mudou do início, entre 2015 e 2016, para o que é apresentado ao público agora?

SM: A estrutura da exposição foi definida em 2018. Foi extremamente excitante perceber que poderíamos organizá-la através dos temas estabelecidos pelo FCCB para os concursos internos e entremear com os núcleos monográficos, permitindo olhar mais profundamente algumas figuras centrais. Acredito que o ponto alto da pesquisa tenha sido perceber que poderíamos oferecer uma exposição em que ao mesmo tempo que fosse fácil e clara a apreciação de certos fotógrafos individuais, mas que também déssemos conta de compreender o espírito daquele grupo como um todo. Mas, para responder especificamente a sua pergunta, quase tudo mudou. Eu aprendi muito durante todo o processo e fiz as pazes com aquilo que eu não sabia, o que significou uma evolução pessoal para mim. Eu nunca havia me deparado de tal forma com a minha própria noção de bom gosto: como eu defendo aquilo que eu gosto, ao mesmo tempo em que admito que aquele grupo do qual eu gosto tanto também produziu inúmeras imagens clichês. Eu diria que a grande mudança para mim foi aceitar que a minha preferência estética é invisível e inevitável – ela me cerca –, mas que através da pesquisa eu consigo entender e reconhecer outros fatores que levaram o FCCB a apoiar trabalhos que eu considero banais. O processo de pesquisa me possibilitou abrir espaço a essas imagens, pois percebi que no circuito amador esses clichês eram permitidos e até mesmo encorajados. Certamente, havia uma grande retórica em torno do novo enquanto ambição do grupo, ao mesmo tempo em que eram bastante generosos e inclusivos. Aceitar isso foi provavelmente a maior mudança para mim enquanto historiadora da arte, não apenas em relação à exposição.

 

O vidro partido, de Maria Helena Valente da Cruz, c. 1952. Museu de Arte Moderna, Nova York. Adquirido pela generosidade de Donna Redel. © 2020 Espólio de Maria Helena Valente da Cruz

Fotoclubismo é uma exposição que compreende um período importante da história do Brasil: do projeto de Brasília até o Golpe Militar de 1964, até onde chega a exposição. Qual o diálogo entre o eixo curatorial da exposição e o contexto histórico brasileiro da época?

SM: O recorte temporal da exposição foi definido tanto por razões artísticas como sócio-políticas e históricas. O ano de 1946 é quando o FCCB começa a publicar os boletins, então naturalmente era um marco inicial, uma vez que fui capaz de compreender mais especificamente o clube através dessas publicações. Além disso, coincide com um marco político e histórico mundial que é o fim da II Guerra Mundial. A exposição termina em 1964, mas esta escolha foi um pouco mais turva. Na minha opinião, a produção do clube começou a declinar no início da década de 1960, por conta de uma necessidade constante de inovação. A escolha do ano de 1964 é importante na história do Brasil e, de certa forma, implica no fim de um momento extraordinário e fértil para a fotografia brasileira.

Entretanto, é curioso notar que Brasília quase nunca aparece no boletim. E como a maior parte da minha pesquisa é baseada nos boletins… Há apenas uma foto de Brasília que aparece em uma nota em uma edição do boletim de 1961. Apesar de sabermos que Farkas fotografou a nova capital e outros fotógrafos não associados ao FCCB também o fizeram, a ausência do tema nos boletins pode estar relacionada ao fato de ser um clube fortemente associado à Escola Paulista. A verdade é que muitas vezes você tem uma teoria na sua cabeça e o boletim pode ser um bom medidor para saber se ela é falsa ou verdadeira.

 

Filigrana, de Gertrudes Altschul, 1953. Museu de Arte Moderna, Nova York. Adquirido pela generosidade de Amie Rath Nuttall.

Filigrana, da Gertrudes Altschul, é colocada por você como umas das imagens que moldaram o seu trabalho como curadora e pesquisadora. Poderia me contar mais sobre a importância dessa fotografia para você e para a exposição – que é, inclusive, a capa do catálogo.

 SM: Você nunca sabe quando uma imagem favorita será a capa de um catálogo, pois há muitas questões que envolvem a escolha – algumas você pode controlar e outras, não –, mas diria que essa foi uma feliz coincidência em que provavelmente a minha fotografia favorita da exposição é também a capa do livro. Há duas coisas que são singulares nessa foto e por isso ela é tão importante para mim. Primeiramente, ela significa o momento, lá em 2015, em que eu não sabia quase nada sobre o FCCB e me deparei com vários fotógrafos que faziam parte desse grupo e, entre eles, muitas mulheres. Além disso, eu também amo a fotografia enquanto imagem em si, a considero visualmente interessante por dar a impressão simultânea de bi e tridimensionalidade. Ela parece que está ancorada em um tema tipicamente brasileiro –uma folha de mamão –, é parte de um vocabulário artístico internacional e, finalmente, Gertrudes resume uma das coisas mais fascinantes sobre este grupo: os fotógrafos em sua maioria eram amadores que tinham outros trabalhos. E Gertrudes e seu marido possuíam uma loja de flores artificiais. Então, ela pensava o dia todo sobre flores e suas estruturas como parte de seu trabalho e ela conseguiu expandir isso de forma fascinante para a sua arte, a sua fotografia. É, portanto, uma feliz coincidência entre o trabalho cotidiano de um membro e o seu hobby; para mim, isso resume o espírito que norteia o FCCB. ///

 

Tiê Higashi é mestranda em História da Arquitetura e do Urbanismo na FAU USP e tem atuado como assistente de curadoria no Instituto Moreira Salles. Entre 2018 e 2019, trabalhou para o MoMA na pesquisa da exposição Fotoclubismo.

 

 

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