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A fotografia neorrealista italiana é tema de exposição em Nova York

Publicado em: 24 de outubro de 2018

Apulia, de Gianni Berengo Gardin, Apulia, 1958. Eixo Investigação etnográfica © Gianni Berengo Gardin

Em cartaz na Galeria Grey Art e na Casa Italiana Zerilli-Marimò, ambas ligadas à Universidade de Nova York, a exposição Neorrealismo: a nova imagem na Itália 1932-1960 apresenta por meio da fotografia um panorama da vida na Itália antes, durante e depois da Segunda Guerra Mundial. Mais comumente associado ao cinema e à literatura do pós-guerra, a curadora Enrica Viganò destaca o trabalho de importantes fotógrafos do período. “Devemos dizer que os debates sobre o neorrealismo como um movimento estavam muito vivos na comunidade cinematográfica, em comparação com os fotógrafos, que nunca escreveram um manifesto sobre sua posição. Eles (os fotógrafos) eram mais indivíduos com diferentes critérios e propósitos, capazes de criar algo único e que só agora podemos ler e analisar como um fenômeno”, comenta Viganò em conversa exclusiva com a ZUM.

Com cerca de 175 fotografias de mais de 60 artistas italianos, a exposição Neorrealismo apresenta também publicação originais da época, como revistas ilustradas, livros de fotografia e catálogos de exposições. A mostra também trechos de filmes de grandes diretores neorrealistas italianos, como Vittorio De Sica, Roberto Rossellini e Luchino Visconti.

Leia a entrevista com Enrica Viganò:

 

Como foram escolhidos os 5 eixos expositivos da mostra?

Enrica Viganò: O material que eu pesquisei para esta exposição é imenso. Dez anos visitando arquivos em toda a Itália. Por isso, foi necessário encontrar um sentido entre estes magníficos materiais e levar os visitantes / leitores pela mão acompanhando-os através do conceito da mostra e do livro relacionado. O eixo Realismo na era fascista tem o ano de 1932 – que viu a abertura da Exposição da Revolução Fascista – como seu ponto de partida. Em exposição durante dois anos no Palazzo delle Esposizioni em Roma, essa mostra de cunho propagandístico apresentou a fotografia como um instrumento de comunicação de massa, explorando seu potencial educacional e informacional. Imagens fotográficas eram a “prova” das declarações de Mussolini e testemunhavam a verdade de suas palavras. Embora muitas vezes escondesse as diferenças entre informação e propaganda, a fotografia fornecia uma linguagem que era acessível a todos em face do analfabetismo generalizado, dos dialetos regionais e da desigualdade social.

No final da guerra, a Itália estava em ruínas. Apesar de sua devastação material, no entanto, o país experimentou uma sensação generalizada de euforia e renascimento. Esse sentimento de redenção moral está subjacente ao que os historiadores chamaram de “o milagre italiano” dos anos 50 e 60. E a recém-descoberta liberdade de revelar as realidades de um país ferido recriando-se deu origem ao neorrealismo. Assim, o eixo Pobreza e Reconstrução examina representações dramaticamente contraditórias da Itália durante este período. Fotógrafos como Tullio Farabola e Stefano Robino capturaram a vida cotidiana sob essas condições difíceis, que, no entanto, vibravam com esperança e vitalidade. Com a queda do fascismo, o neorrealismo tornou-se a forma dominante de expressão. A liberdade artística e a necessidade de reconstruir uma nova identidade italiana alimentaram um fervor nacional pela documentação – o testemunho da realidade cotidiana.

Já o tema Investigação etnográfica demonstra como a fotografia desempenhou um papel essencial nas tentativas de estabelecer uma identidade coletiva na Itália do pós-guerra. Agora, a função educativa que havia sido explorada durante o período fascista foi colocada a serviço da democratização. Depois da guerra, as regiões italianas permaneceram fragmentadas, cada uma afetada por diferentes condições econômicas e sociais. Figuras como Mario Cattaneo, Franco Pinna e Arturo Zavattini ajudaram a Itália a estabelecer uma nova identidade nacional ao fotografar as muitas faces do país, alcançando um ponto alto na era neorrealista. Neste auge do fotojornalismo social, projetos ambiciosos de reportagem retratam muitas partes da Itália, documentando a vida como ela foi vivida. Motivado pelo desejo de transmitir as realidades da experiência italiana, fotógrafos com diferentes graus de consciência social e engajamento político viajaram para todos os cantos do país.

Um aumento dos meios impressos estimulou uma variedade de abordagens fotográficas e transformou o papel do fotógrafo. Os jornais, que anteriormente haviam contratado fotógrafos freelancers, começaram a incorporá-los em equipes editoriais, promovendo seu trabalho e visualizando-o como parte de sua marca distinta. O eixo Fotojornalismo e a imprensa ilustrada enfoca essa época de ouro, quando as narrativas fotográficas se assemelham à cinematografia, com textos que cobrem várias páginas e reportagens importantes lançadas em fascículos, inserções especiais e suplementos. Apesar de suas perspectivas dramaticamente diferentes, esses fotógrafos de mídia impressa – incluindo Carlo Cisventi, Tino Petrelli e Marisa Rastellini – estão ligados por seu interesse no realismo e sua rejeição ao artificial.

Italianos dão a volta, de Mario De Biasi, Milão, 1954. Eixo Fotojornalismo e a imprensa ilustrada © Arquivo Mario De Biasi

A seção final, Da arte ao documento, traz obras de fotógrafos como Pietro Donzelli e Giuseppe Bruno, que estavam envolvidos em discussões acaloradas sobre o legado do neorrealismo. Entre 1943 e 1960, os fotoclubes forneceram locais de encontro onde os artistas debateram o valor criativo da fotografia e seu futuro. Surgiram duas escolas de pensamento opostas. Para alguns, o neorrealismo representava uma restrição rígida de expressão que sufocava o potencial criativo do fotógrafo. Outros achavam que, a menos que a fotografia mantivesse uma forte conexão com a vida real e fosse informada por um senso de engajamento cívico, ela correria o risco de se tornar um exercício formal. Essas duas visões se entrincheiraram ao longo do tempo, resultando em argumentações acaloradas e divisões endurecidas. No entanto, seus debates lançaram as bases para o futuro da crítica fotográfica na Itália.

 

Você concorda que existe uma qualidade cinematográfica em boa parte das fotografias expostas? Se sim, você acredita que isso acontece por uma forte influência do cinema neorrelista italiano ou a fotografia neorrealista conseguiu ter sua própria diferenciação estética?

EV: Concordo que em algumas fotos há uma qualidade cinematográfica, mas eu não simplificaria tanto dizendo que havia uma forte influência do cinema na fotografia. Eu falaria de uma irmandade entre todas as artes. O neorrealismo foi um fenômeno contagiante e tocou não só o mais famoso campo do cinema, mas também a literatura, a pintura e a fotografia. Foi o espírito de documentar as diferentes “Itálias” (como escreveu Italo Calvino) que eram desconhecidas para os outros. Era “a verdadeira caridade do tempo, dos olhos e ouvidos, concedida aos eventos e às pessoas do próprio país”, como disse Cesare Zavattini. Na verdade, nos anos 50, os cineastas pediram aos fotógrafos sugestões de filmes e a revista Cinema Nuovo publicou em cada edição um “Fotodocumentário” assinado por diferentes fotógrafos com potenciais ideias para roteiros. Por outro lado, muitos fotógrafos tiveram impressas em seus olhos a forte poética dos filmes neorrealistas. E devemos dizer que os debates sobre o neorrealismo como um movimento estavam muito vivos na comunidade cinematográfica, em comparação com os fotógrafos, que nunca escreveram um manifesto sobre sua posição. Eles (os fotógrafos) eram mais indivíduos com diferentes critérios e propósitos, capazes de criar algo único e que só agora podemos ler e analisar como um fenômeno.

 

N.U., de Roberto Spampinato, Milão, 1955. Eixo Da arte ao documento © Roberto Spampinato

Qual a importância do movimento neorrealista em oferecer ao mundo uma imagem da Itália após a segunda guerra mundial?

EV: Depois da Segunda Guerra Mundial, a Itália foi completamente destruída: 20 anos de fascismo e cinco anos de guerra! Muitas cidades e territórios foram bombardeados pelos aliados. A pobreza foi espalhada em todas as regiões, do norte ao sul. E a fotografia era a língua que todo mundo podia ler, mesmo em um país analfabeto e onde a maioria das pessoas falava apenas dialetos. Assim, a fotografia era o meio perfeito para alcançar as massas, usado durante o fascismo para propaganda e no pós-guerra para criar uma nova identidade da Itália no processo de democratização. O neorrealismo na fotografia não se resume a crianças descalças e sociedade miserável. O neorrealismo traça o que está acontecendo na vida real e denuncia o que deve ser mudado. É um instrumento de conhecimento e educação, e tem o poder de chegar a lugares distantes.///

 

Mais informações sobre a exposição Neorrealismo: a nova imagem na Itália 1932-1960 na Grey Art Gallery e na Casa Italiana Zerilli-Marimò.

 

 

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