Por uma educação que interesse aos negros
Publicado em: 22 de junho de 2021
À luz da hipervisibilidade digital, do legado dos movimentos abolicionistas e sociais e dos efeitos das políticas afirmativas, sobretudo no sistema educacional brasileiro, um debate ganhou destaque na produção artística e cultural contemporânea: a ausência e a presença de artistas negrxs, indígenas e dissidentes nos circuitos institucionais do país.
Tendo como ponto de partida uma série de fatores, tão múltiplos como os modos de contar a história daqueles que, como se sabe, foram excluídos da narrativa da Humanidade, tanto o museu quanto as instituições culturais e artísticas passaram a ser alvo de questionamentos sobre as suas poéticas e políticas de exibição, sobre seus sistemas de representação.
Com o desejo de escrever uma história que se dá na linguagem e através da linguagem, e ao revirar os arquivos da memória invisíveis a esses espaços institucionais, encontrei, por meio da performatividade de uma fotografia, o modo como me pareceu ser possível, àquela altura, situar essa reviravolta racial que inaugura o século 21.
Na cena, registrada durante um protesto na década de 1980, em Salvador, duas mulheres negras desconhecidas, cercadas por muitas outras, empunham cartazes que, em meio a tantas palavras de ordem ilegíveis, estampam: “Por uma educação que interesse aos negros”.
Era 2018, eu estava numa viagem de pesquisa a Salvador, e a imagem se perdia entre os mais de 30 mil fotogramas salvaguardados pelo Zumvi Arquivo Fotográfico, localizado na pequena edícula de paredes verdes no bairro da Fazenda Grande do Retiro, onde mora o seu coordenador, o fotógrafo Lázaro Roberto. A foto, como muitas outras que hoje fazem parte da história de mais de 30 anos do acervo Zumvi, é de autoria do fotógrafo e poeta Jônatas Conceição, que em 2006, três anos antes de falecer, entregou os seus registros aos cuidados do Lente Negra, como é conhecido Lázaro no meio da fotografia.
Já a pesquisa motivo da viagem se deu graças ao convite que fiz ao Zumvi para comissionarmos a instalação Zumvi – A gente se acende é nos outros para o Valongo Festival Internacional da Imagem 2018. Era uma estrutura de grande dimensão, feita de andaimes em torno de 10 metros de altura, que recebia uma projeção mapeada com fotografias do acervo. A obra pública projetada pelo Bijari se acendia ao cair da noite na paisagem do bairro do Valongo, em Santos, criando com a presença das pessoas uma manifestação ao redor de outras manifestações, tão marcantes como a desta fotografia, sobre a qual resolvi seguir me debruçando.
No alto contraste que nos oferece o seu preto e branco, enquanto uma terceira mulher [1] em primeiro plano nos encara como quem especula o próprio futuro, a primeira reflexão que nos oferece esta imagem refere-se à constatação do quanto, na segunda metade do século 20, a educação e a produção de conhecimento se consagraram como campo de disputas de narrativas, ainda que o próprio arquivo, como sinônimo de salvaguarda, tenha tragicamente colecionado os seus abandonos.
Fazendo das lacunas aquilo que primeiro o constitui como arquivo, se, por um lado, tal diagnóstico dá a ver a precariedade com que sempre se relacionou às contribuições afro-indígenas nos setores da arte, da cultura e do patrimônio, por outro, nos parece que, mesmo com a incerteza da data, daquilo que não se pode mais ler e dos nomes nunca reconhecidos, para além da sua capacidade ocularcêntrica, esta imagem nunca desistiu de ser objeto da nossa imaginação: ao extrapolar a função de lugar de memória que sua condição musealizada de acervo circunscreve, o excesso que tenho escutado de suas bordas refere-se à força revolucionária da sensualidade que emerge do evento sônico e da pulsão de liberdade que anima as performances pretas que dão vida à sua (re)produção gráfica. A questão, portanto, que gostaria de tocar neste texto não se encerra nos modos como estamos vendo esta foto, mas como estamos escutando a sua capacidade sônica e respondendo à ela.
II
Em In the Break, Fred Moten parece nos deixar uma pista: estamos diante de uma gravação fotofonográfica “perturbada pelo traço da performance sobre a qual ela fala e pelo traço da performance sobre a qual essa performance falou”. Isso porque, ainda que não tenhamos acessado esta fotografia como um objeto de arte, ainda que a sua circulação tenha sido inviabilizada como documento histórico (inclusive fazendo desse momento para muitos a primeira vez), Por uma educação que interesse aos negros chega à nossa retina confirmando o quanto foi capaz de seguir o seu caminho se oferecendo a nós enquanto performance. Momento em que, com ela, alcançamos a capacidade generativa da materialidade da fala, contida na relação existente entre aquilo que não ouvimos, mas se encena no gesto, e a liberdade do grito através dos tempos.
Assim, ao encará-la de novo e mais uma vez, me perturba o seu barulho silencioso. Considerando o espetáculo generativo que ela dramatiza, vemos que é apenas hoje, quando a frequência sonora e o movimento por trás do seu silêncio irradiam-se, que finalmente conseguimos avistá-la. Revelando-se na luz negra, dizemos que ela se tornou visível graças à frequência das suas radiações. Para explicar, aproximo Por uma educação que interesse aos negros à definição de luz negra (a radiação ultravioleta) de Denise Ferreira da Silva, uma ferramenta analítica pela qual seria possível fazer “reluzir o que deveria permanecer ofuscado para manter intacta a fantasia da liberdade e igualdade”.
Uma manutenção que, inclusive, segundo a própria autora, consiste na falha tanto dos estudos raciais quanto dos discursos políticos do século 20, aos quais esta mesma foto pertence, que privilegiavam a liberdade e a igualdade como os princípios éticos fundamentais, inviabilizando-nos de ir além do que possibilitaria o aparato ético-jurídico moderno. Ainda que não seja o nosso objetivo articular aqui esse debate, podemos concluir que, se o chamado à justiça é também o chamado à subjugação, os efeitos da radiação podem ser na curva do tempo, tanto as conquistas jurídicas quanto o desmonte das noções de democracia racial que nos dias de hoje se atualizam através do próprio direito desta imagem em competir como objeto de valor na sociedade capitalista do mercado de arte, que é o que significa, por fim, a presença dela, a partir deste texto, nesta instituição.
De volta à radiação, podemos aproximá-la ainda da cosmologia africana bantu-kongo de Bunseki Fu-Kiau, sobre as palavras-frequência emitidas nos provérbios e oralituras negras. Segundo ele, as ondas e radiações impregnadas no ato de proferir palavras revelam uma cosmologia que, em virtude do preceito nele contido, reafirma a crença no seu efetivo poder de realização. De modo que a experiência manifesta na linguagem só poderá ser realizada e decodificada por aquelxs que compartilham certa forma de ser e viver culturalmente: o entendimento é possível apenas para aquelxs que podem “experimentar e sentir a beleza da radiação”.
Vemos e ouvimos então que a ação cinética que esta imagem produz não se reduz a uma evidência histórica da violência racial (ou o seu significante) tal como ela poderia ser essencializada como representante no espaço institucional. Antes disso, ela segue a sua caminhada como um chamado à ação.
III
O ruído que a foto soa nos risos, nas placas de madeira, nas escritas das palavras tortas e na preparação das vozes das mulheres negras reinventa a cena da nossa tradição político-musical cambaleante entre gritos de horror e gritos de libertação, que, ao se repetir no corpo e na voz, constitui, como apresenta Leda Maria Martins, a nossa episteme. Motivo pelo qual a nossa tarefa de especulação historiográfica estaria muito menos a serviço do que a história apagou ou tentou apagar como arquivo, e muito mais inclinada a refletir sobre como a capacidade performativa desta imagem expande as possibilidades de imaginar como vem se construindo o nosso futuro. Nesse caso, perguntamos: “Se, nas performances da oralidade, o gesto não é apenas uma representação mimética de um aparato simbólico, veiculado pela performance, mas institui e instaura a própria performance”, o que a materialidade fotográfica e sua reprodutibilidade enquanto matéria física e virtual estabelece como um continuum no tempo? Estaria essa performance, aprisionada na bidimensionalidade que exige o dispositivo fotográfico, fora da economia da reprodução? E, fazendo coro à pergunta de Moten, “qual a política dessa performance incontornavelmente reprodutível e reprodutiva?”
É nos fazendo ensaiar respostas que Por uma educação que interesse aos negros nos convoca ao exercício de acreditar que é possível pensar fora do texto moderno de modo a liberar a radical capacidade criativa da nossa imaginação. O que significa dizer que, para escutá-la, precisamos romper com a tradição logocêntrica do sistema linguístico cartesiano e racionalista que limita o campo da linguagem à função de um intermediário epistêmico.
Aceitando o desafio de Denise Ferreira da Silva de pensar o mundo e imaginar uma mudança radical no modo como podemos abordar matéria e forma a partir de e com essa matéria fotográfica, entendemos que, do mesmo modo que eu neste momento não estou apenas a descrever uma fotografia quando faço uso da linguagem textual, também esta fotografia não apenas descreve uma cena real: juntas, nós, em tempos e espaços históricos distintos, ao aproximarmos fala e ação, agimos. Operação que passa pela compreensão de que a linguagem, para além de descrever ou representar a realidade, traz à existência aquilo sobre o que fala.
É, portanto, nesta cena prefigurativa, na voz alta do texto sônico e em tudo aquilo que a fotografia silencia, que escutamos o eco da história, realizando 20 anos depois essa profecia fonofotográfica por meio, por exemplo, da aprovação das leis 10.639/03 e 11.645/08, que tornaram obrigatórios os estudos em história e cultura afro-brasileira, africana e indígena, em todas as instituições de ensino do país.
Considerando que essa aprovação, juntamente com a implantação do sistema de cotas nas universidades, a criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e do Estatuto da Igualdade Racial, constitui uma das maiores vitórias dos movimentos negros e sociais dos anos 2000 até os dias de hoje, podemos concluir, através dos jogos ópticos desta fotografia, que as produções artísticas vêm não somente inscrevendo historicamente as lutas raciais no campo da linguagem e da estética como vêm, sobretudo, sendo expressivamente influenciadas e expandidas por elas.
Mesmo que a tomemos como um flagrante histórico, na medida em que denota as estratégias que tornaram público o debate sobre a urgência do Estado e das instituições promoverem medidas de reparação, redistribuição e justiça racial, sua performance como manifestação artística no mundo segue deflagrando as bases ontoepistemológicas que fabricaram uma musealidade e uma história da arte excludentes e que encenam, em seus regimes de visibilidade, o espetáculo da sujeição e objetificação, numa relação obscena entre espectador e testemunha, violência e prazer. Em outras palavras, tal fotografia, em sua resistência como objeto de arte nos dias de hoje, também age questionando o sistema de produção cultural e artístico e seus princípios fundamentados na colonialidade, nos cânones de tradição europeia e nos mecanismos de produção de valor que regem o capital racial global.
Sobre o futuro que ela nos permite imaginar e que excede os limites do arquivo, quando essa foto se encontra com as expressões artísticas contemporâneas que performam um feminismo de recusa e que, por assim dizer, se posicionam contra a representatividade como premissa ética e procedimento estético, nos parece que a sua atualização concentra-se na própria característica subjuntiva e atemporal no modo como essa frase é construída: no momento agudo que enfrentamos, de desmonte dos direitos que foram conquistados, talvez possamos fazer eco, repensando as falhas nomeadas por Denise Ferreira da Silva, através da criação de estratégias para os nossos movimentos sociais (e culturais) do presente que abracem desde dentro e tomem como premissa a impossibilidade de igualdade e justiça social.
Ao passear na linha tênue entre liberdade e captura, quando vistas agora nessas paredes de páginas brancas, nos cabe terminar especulando se Por uma educação que interesse aos negros continuará agindo no mundo, levando aqueles que não a conhecem pelo saber do corpo, mas que agora a possuem pela retina, a uma ação que, em si mesma, possa ser considerada como um efeito de sua radiação. ///
Diane Lima é curadora independente, escritora e pesquisadora. Vivendo entre São Paulo e Salvador, atualmente é co-curadora de Frestas – 3ª Trienal de Artes do SESC-SP – O rio é uma serpente e das exposições monográficas Voadora do artista Paulo Nazareth na Pivô em São Paulo e Stella do Patrocínio: a história que fala de Stella do Patrocínio no Museu Bispo do Rosário no Rio de Janeiro. É docente da Especialização em Gestão Cultural Contemporânea do Itaú Cultural e pesquisadora/curadora convidada do Programa de Curadoria Crítica e Estudos Decoloniais em Arte no acervo do Museu de Arte Contemporânea – MAC-USP em parceria com a Getty Foundation.
[1] No dia em que achei ter terminado este texto, dias antes de publicá-lo, resolvi fazer a sua leitura como parte da minha proposta para uma aula no Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos (IHAC/UFBA) a convite de Tiganá Santana, Cíntia Guedes e Laura Castro. Sem surpresas, o arquivo performou mais uma vez: após a leitura do texto e a exibição da imagem, veio a revelação, por parte de Tiganá, que estávamos falando de uma das maiores pensadoras no debate sobre educação e questões raciais no país, a prof. dra. Ana Célia Silva. Um episódio feliz que atesta a radiação dessa imagem e que, com isso, já me traz uma segunda nova versão na minha trajetória com ela, antes mesmo da sua primeira publicação.
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Fred Moten em “A resistência do objeto: o grito de tia Hester”. Dossiê “A Música e Suas Determinações Materiais”, Revista ECO-Pós, v. 23, n. 1, 2020, p.37.
Denise Ferreira da Silva em A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política
Kimbwandende kia Bunseki Fu-Kiau em African Cosmology of the Bantu-Kongo: Principles of Life and Living. 2. ed. Nova York: Athelia Henrietta, 2001, p. 11.
Leda Maria Martins em “Performances do tempo espiralar”. In: RAVETTI, Graciela e ARBEX, Márcia (orgs.). Performances, exílios, fronteiras: errâncias territoriais e textuais. Belo Horizonte: FaLe/UFMG/PosLit, 2002, p. 71.
Tags: Arquivo Zumvi, Movimento negro