Radar

Earthrise: a primeira foto da Terra feita por um astronauta faz 50 anos

Leandro Siqueira Publicado em: 21 de dezembro de 2018

AS08-14-2383, feita pelo astronauta Bill Anders as 75h48m39s da órbita 4. O primeiro nascer da Terra colorido registrado por um ser humano. Pesquisa de imagem por Ernie Wright no Estúdio de Visualização Científica da NASA, do Centro Espacial Goddard. Crédito: Laboratório de Análise e Ciência da Imagem, NASA – Centro Espacial Johnson.

Qual o impacto estético e político de uma fotografia da Terra? Teria esta imagem força para alterar o modo como o humano pensa e age em relação ao seu planeta? Antes de cosmonautas e astronautas ganharem o espaço sideral, tais questionamentos já incomodavam a mente do astrônomo britânico Fred Hoyle. Em seu livro A natureza do universo (The Nature of the universe, em inglês), publicado em 1950, o astrônomo conjeturou: “Uma vez que o completo isolamento da Terra se torne evidente para todo homem, independente de sua nacionalidade ou crença, uma nova ideia, a mais poderosa do que qualquer outra na história, será liberada. Eu acredito que esta não tão distante revelação poderá ser benéfica, com o efeito de expor cada vez mais a futilidade das rixas nacionalistas. É exatamente deste modo que a Nova Cosmologia pode vir afetar toda a organização da sociedade”.

Entre os acontecimentos que fizeram de 1968 um ano singular, está o prenúncio de uma nova relação do ser humano com seu planeta, disparada por uma imagem registrada pelos astronautas da missão Apollo 8 e que, não por mero acaso, recebeu o nome de Earthrise (Nascer da Terra). Embora anos antes dois satélites e a sonda Lunar 1 tivessem capturado as primeiras imagens da Terra inteira, nada se compara ao momento em que humanos, a caminho da lua, puderam avistá-la e fotografá-la.

Chegar à lua foi o desafio lançado em 1961 por John Kennedy, então presidente dos Estados Unidos, para vencer a corrida espacial contra os soviéticos. Em meio à Guerra Fria, entre testes de bombas nucleares e mísseis intercontinentais, a criação do Programa Apollo (1961-1972) de viagens ao satélite natural da Terra atendia a estratégia dos EUA de exibir sua “supremacia tecnológica”, até então ofuscada pelo pioneirismo russo no domínio espacial.

O destino era a lua, mas durante o percurso, um evento “imprevisto” ou, no mínimo classificado como “não prioritário”, roubou a cena: a Terra vista pela primeira vez por olhos humanos em toda a sua completude flutuando no escuro espaço sideral.

Era véspera do Natal de 1968, quando os astronautas Frank Borman, James Lovell e William Anders, a quase 380 mil km de distância do nosso planeta, circum-navegavam a lua. A Apollo 8 foi a primeira missão espacial a realizar um voo tripulado que escapou dos arredores da Terra para orbitar seu satélite natural. Além de testar arriscadas manobras de transferência entre as órbitas terrestre e lunar, a missão tinha como finalidade o reconhecimento topográfico da superfície da lua para posterior definição de locais apropriados para o pouso do módulo lunar, que viria ocorrer na missão Apollo 11, em julho de 1969.

Para o registro das imagens, a tripulação dispunha de duas câmeras Hasselblad 500 EL especialmente adaptadas às especificidades do ambiente espacial. Cada câmera contava com uma lente objetiva Planar (80mm/F2.8) e apenas uma lente teleobjetiva Zeiss Sonnar (250mm/F5.6), além de equipamentos como filtros, medidores de exposição e outros acessórios. A pedido da NASA, a Kodak produziu filmes preto e branco e coloridos mais sensíveis e com uma emulsão especial. Os astronautas também carregavam uma câmera cinematográfica portátil Maurer 16mm, utilizada para transmitir imagens ao vivo, veiculadas para o público que acompanhou pela televisão aquele grande espetáculo espacial.

A tripulação da Apollo 8 circulou por dez vezes a lua para cumprir o plano de voo. Na quarta volta, quando deixavam de sobrevoar a face oculta do satélite, os astronautas foram surpreendidos pelo “nascer da Terra”. Das escotilhas da cápsula puderam observar o surgimento do nosso planeta na paisagem da órbita lunar. “Meu Deus! Olhe para aquela imagem ali! É a Terra chegando aqui. Uau, isso é lindo! ”, disse um dos astronautas, como pode ser ouvido nos registros sonoros da missão. Outro deles brincou: “Ei, não faça isso, não está no programa”.

O comandante Frank Borman registrou a cena em preto e branco. Depois, toda a tripulação se agitou para encontrar o filme colorido. O clique que capturou a Earthrise em cores, imagem registrada nos arquivos da NASA como AS08-14-2383, foi feito pelo astronauta William Anders, a exatas 75 horas, 48 minutos e 39 segundos de voo. Trinta segundos depois, procurando um novo ângulo, fez mais uma foto, a AS08-14-2384. Teoricamente, Anders deveria ser o responsável por pilotar o módulo lunar, mas como aquela missão não previa aterrisar na lua, fora incumbido de registrar imagens.

Na icônica foto, vê-se aproximadamente três quartos do globo terrestre levitar sobre a superfície lunar tendo o cosmos como paisagem de fundo. As cores da Terra, azul com algumas manchas marrons e esverdeadas, cobertas pelo branco das nuvens, contrastam com o negro do espaço e o acinzentado da superfície selênica.

O nome Earthrise contempla um duplo sentido. Ao mesmo tempo em que remete ao movimento do astro que se eleva no horizonte, também expressa o momento em que a Terra “nasceu” como um corpo inteiramente visível, graças à nova perspectiva sideral propiciada pelas tecnologias espaciais.

Dias após o retorno da tripulação da Apollo 8, a fotografia Earthrise foi divulgada pela NASA e amplamente veiculada por jornais e revistas planeta afora. Nos Estados Unidos, a revista semanal Life trouxe a Terra inteira ampliada na capa da sua edição especial “O incrível ano 68”, publicada em 10 de janeiro de 1969. Em seu interior, uma série de imagens da missão, com direito a duas páginas para Earthrise.

Posição original da fotografiaAS08-14-2384, com a Terra surgindo lateralmente, feita pelo astronauta Bill Anders as 75h49m09s da órbita 4. O primeiro nascer da Terra colorido registrado por um ser humano. Pesquisa de imagem por Ernie Wright no Estúdio de Visualização Científica da NASA, do Centro Espacial Goddard. Crédito: Laboratório de Análise e Ciência da Imagem, NASA – Centro Espacial Johnson.

No Brasil, a edição de 18 de janeiro de1969 da revista Manchete também dedicou páginas duplas à Earthrise. Encarcerado pela ditadura militar, logo após a edição do Ato Institucional n° 5 em dezembro de 1968, o cantor Caetano Veloso, inspirado pela imagem publicada na revista, anos depois compôs a canção “Terra”, lançada no álbum Muito (Dentro da Estrela Azulada). O compositor exprimiu assim o acontecimento: “Quando eu me encontrava preso na cela de uma cadeia / Foi que vi pela primeira vez as tais fotografias / Em que apareces inteira, porém lá não estava nua / E sim coberta de nuvens / Terra, Terra, / Por mais distante o errante navegante / Quem jamais te esqueceria? ”. Nos versos de Veloso ressoam o famoso epílogo citado pelo astronauta Anders e que consta em seu perfil no Hall da Fama Espacial Internacional, do Museu da História Espacial do Novo México: “Viemos de tão longe para explorar a lua e a coisa mais importante é que nós descobrimos a Terra”.

Apesar de a mídia ter, à época, veiculado a fotografia com a Terra inteira elevando-se no horizonte lunar, esta perspectiva não condiz com a visão que os astronautas tiveram da cena. Isto porque, sob o ângulo em que estavam, observaram a Terra surgir lateralmente à superfície lunar. Foi decisão da NASA “virar” a foto para que apresentasse uma perspectiva “mais familiar” e mais “terrestre”, segundo o historiador Robert Poole, autor do livro Earthrise, Como o homem viu a Terra pela primeira vez, publicado em 2010 pela Yale University Press. 

Na seleção das 100 fotografias que mudaram o mundo, feita pela revista Life em 2003, o fotógrafo de paisagens naturais Galen Rowell definiu a Earthrise como “a foto ambiental mais influente já realizada”. Adotada pelo emergente movimento ambientalista, a imagem colaborou para que a consciência ecológica abandonasse o âmbito local e se projetasse para o globo terrestre, expressão icônica da unidade e da interconexão de tudo o que compõe a Terra. Embora conflitos, ideologias e superpotências esquadrinhassem o planeta naquela época, a Earthrise evidenciou que, ao ser vista do espaço, existia “uma Terra somente”, como enfatizaram Barbara Ward e René Dubos no famoso relatório escrito em 1972 para subsidiar a Conferência das Nações Unidas sobre o ambiente humano, realizada em Estocolmo, na Suécia.

Há também quem defenda que a Earthrise, assim como as demais fotos inteiras da Terra que a sucederam, anunciaram o processo de expansão do mercado capitalista pelo planeta, conhecido como globalização, acelerado após o fim da Guerra Fria e o colapso da União Soviética. E igualmente não podemos deixar de observar nesta imagem o anúncio de mais uma transformação das sociedades contemporâneas que, cada vez mais, recorrem a tecnologias de vigilância para fazer funcionar suas específicas relações de poder. Não apenas as ruas das cidades e os espaços privados começaram a ser permanentemente registrados por câmeras. Desde Earthrise, a Terra não escapou à proliferação dos regimes de vigilância, tornando-se mais um corpo a ter seus espaços e fluxos permanentemente visualizados e monitorados, como fazem, por exemplo, os satélites que recolhem dados para os relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU.

Passados 50 anos do vislumbre da Earthrise, as hostilidades entre os países não findaram, como imaginara Hoyle. Da mesma forma, o despertar ecológico não conseguiu estancar a degradação do planeta, que continua de maneira mais “inteligente” e “sustentável”. Talvez a ideia mais poderosa que esta imagem tenha liberado seja a de que o planeta Terra também é uma criação humana e que sua existência depende diretamente das ações de todos que o povoam. Depois da Earthrise, a humanidade não tem mais como fechar os olhos para o que faz de sua morada e, tão pouco, apagar esta imagem de sua memória.///

 

Leandro Siqueira é doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pesquisador no Núcleo de Sociabilidade Libertária (Nu-Sol) da mesma universidade.

 

Tags: , ,