Leilão do Banco Santos fatia coleção de arte e desconsidera investimento público
Publicado em: 2 de setembro de 2020De 2005 até o começo deste ano, o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP) abrigou parte da coleção de arte do Banco Santos, amealhada pelo ex-banqueiro Edmar Cid Ferreira. A coleção, transferida para a massa falida do banco, reúne 1597 obras de arte moderna e contemporânea, incluindo preciosidades fotográficas, como o portfólio feito por Man Ray para a companhia de eletricidade de Paris em 1931.
Pelo acordo firmado com o poder Judiciário, o MAC foi responsável por cuidar da coleção durante quase 15 anos. Nesse período, conservou, restaurou, pesquisou e expôs as obras, realizando investimento estimado em 20 milhões de reais. Com o término da guarda e a notícia de que a coleção seria leiloada, o museu pleiteou o reembolso do valor investido ao longo dos anos por meio da incorporação de obras da coleção. O juiz responsável autorizou o reembolso de apenas 37 mil reais em dinheiro.
A seguir, Helouise Costa, docente do MAC e vice-diretora do museu de 2006 a 2010, conversa com Thyago Nogueira, coordenador da área de fotografia contemporânea do IMS, sobre a importância da coleção, o investimento público feito pelo museu, a decisão judicial que restringiu o reembolso do dinheiro, e os problemas de leiloar obras de arte sem levar em conta a integridade de seu valor cultural.
Quais são os destaques da coleção do Bancos Santos preservada pelo MAC durante 15 anos?
O segmento destinado ao MAC reunia 1597 obras de arte moderna e contemporânea, sendo que cerca de 1000 eram fotografias. Esse era um núcleo importante por oferecer um panorama da história da fotografia, desde o final do século 19 até a década de 2010, não contemplado em nenhuma instituição museológica no Brasil. Havia fotógrafos e conjuntos de imagens muito representativos, incluindo oitocentistas como Edward Muybridge e Étienne Jules-Marey; pictorialistas como George Seeley; fotógrafos de vanguarda como Alexander Rodchenko, Dora Maar, Man Ray, André Kertész e Brassaï; humanistas franceses como Robert Doisneau e Henri Cartier-Bresson; norte-americanos modernos, como Edward Steichen, Margaret Bourke-White e Berenice Abbott; modernos da Escola Paulista como Thomaz Farkas, Geraldo de Barros e German Lorca; japoneses modernos e contemporâneos como Shoji Ueda, Nobuyoshi Araki; além de contemporâneos de diversos países como Thomas Ruff, Cindy Sherman, Andres Serrano, Joel-Peter Witkin, Chris Bierrenbach, Rafael Assef, Cássio Vasconcelos, Vicente de Mello, entre muitos outros.
Por que o MAC foi escolhido para abrigar a coleção?
Com a apreensão da coleção pela justiça, o juiz Fausto de Sanctis, então encarregado do processo, escolheu sete museus e instituições da cidade de São Paulo para receberem diferentes grupos de objetos e obras de acordo com suas especialidades. O requisito principal era que fossem instituições públicas, como forma, segundo De Sanctis, de devolver à sociedade os recursos desviados em operações contra o sistema financeiro que teriam servido para a aquisição das obras. O MAC foi escolhido para receber as obras de arte moderna e contemporânea por ser o único museu de arte de São Paulo cuja gestão é integralmente pública.
Que tipo de investimento especializado foi feito para preservar uma coleção de tamanho importância e escala?
De 2005, quando o MAC passou a abrigar a coleção, por determinação judicial, até o final do ano passado, quando a coleção foi entregue para o leilão, o museu procedeu à guarda das obras em reserva técnica climatizada, realizou trabalhos de documentação e catalogação informatizada, conservação preventiva e restauro, troca de embalagens danificadas ou inadequadas, além de pesquisa e curadoria de exposições. Todas essas atividades foram realizadas pelo corpo técnico especializado com orientação dos docentes/curadores do museu. O MAC optou por cuidar das obras da coleção do Banco Santos do mesmo modo que faz com o seu próprio acervo, tendo em vista a responsabilidade legal que lhe foi atribuída.
Quais eram as expectativas do MAC em relação a essa coleção?
A expectativa era integrar a coleção às atividades de pesquisa, ensino e extroversão realizadas pelo museu. Isso de fato aconteceu após o período inicial de inventariamento das obras e estruturação de um banco de dados informatizado. Por exemplo, algumas das disciplinas ministradas pelos docentes do museu incluíam a apreciação das obras com o acompanhamento da curadoria e da equipe de conservadores. Chegamos também a receber visitas de professores e alunos de outras instituições. No que se refere à extroversão, realizamos duas grandes exposições da coleção em diálogo com o acervo do MAC. A primeira foi Fotógrafos da Vida Moderna, em 2008, e a segunda Fotógrafos da Cena Contemporânea, em 2012. Ambas exigiram pesquisas, inclusive sobre a procedência das obras, e mobilizaram também nossos alunos de graduação e pós-graduação em diferentes atividades, numa rica experiência de ensino e aprendizagem. Além disso, inúmeras obras da coleção passaram a integrar as mais diversas mostras do museu como resultado de uma ação sistemática de dar acesso público ao patrimônio sob sua guarda. Para o MAC, o mais importante foi preservar o valor cultural e artístico da coleção, como conjunto, e a possibilidade que ela oferece de produzir conhecimento. É por essa razão que o museu pleiteou na Justiça o ressarcimento de seus gastos através da incorporação de obras da coleção, para que essas atividades não fossem interrompidas e pudessem se expandir.
Com anos de experiência acumulada, profissionais altamente qualificados e infraestrutura própria, o MAC não só preservou como valorizou a coleção, que agora volta às mãos privadas. Quais são os equívocos embutidos na decisão judicial que deliberou sobre o pedido de ressarcimento do museu?
Para fins de ressarcimento do MAC, o juiz considerou apenas os gastos que o museu pôde comprovar por meio de nota fiscal, que somaram trinta e sete mil reais. Acontece que o museu não tem como apresentar nota fiscal do uso do espaço que a coleção ocupou em suas reservas técnicas climatizadas ao longo de todos esses anos, dos salários das equipes especializadas que trabalharam no tratamento da coleção, bem como dos insumos e materiais gastos na limpeza das obras, embalagens, molduras, etc., porque são gastos compartilhados com todo o acervo do MAC. O cálculo dos gastos apresentado pelo museu considerou todos esses fatores, levando em conta que a coleção passou a representar cerca de 15% do montante de obras abrigado em suas reservas técnicas. Profissionais da área de arte sabem os valores altíssimos cobrados pelo mercado para guarda de obras de arte em reservas técnicas climatizadas, o que significa que um perito poderia facilmente avaliar esses custos para subsidiar o processo. Lembro, ainda, que o museu não contabilizou o valor de seguro que seria exigido nesses casos. É importante reforçar que o museu buscou o ressarcimento de suas despesas por meio de obras da própria coleção, especialmente daquelas já exibidas em mostras que organizou e que, por isso, demandaram mais investimentos do que as demais sob sua guarda.
Obras raras e seriadas, como o portfólio de 10 fotografias de Man Ray comissionado por uma empresa de eletricidade, estão sendo vendidas de forma desmembrada. O leilão vem sendo conduzido de forma adequada?
Numa consulta rápida ao catálogo do leilão, me chamou atenção o fato de que as séries e portfólios estão sendo desmembrados para venda individual das peças. O caso do Man Ray é particularmente grave. Trata-se de um dos raros exemplares do portfólio Eletricidade (1931), trabalho encomendado a Man Ray pela companhia de distribuição de energia elétrica de Paris para presentear clientes especiais. No projeto, Man Ray produziu 10 de seus mais memoráveis fotogramas (que ele chamava de “rayogramas”), impressos em fotogravura, numa edição de 500 exemplares. Nesse trabalho, o artista materializou as pesquisas experimentais que vinha realizando desde a década anterior no contexto da fotografia surrealista. Desmantelar esse portfólio, na melhor das hipóteses, significa falta de entendimento do valor artístico-cultural de uma obra dessa envergadura ou, quem sabe, uma opção deliberada pelo lucro a qualquer custo, a despeito da integridade da obra de arte. O mesmo raciocínio vale para as outras obras seriadas que estão sendo levadas a leilão e submetidas ao mesmo tratamento.
Como o público e outras instituições devem se posicionar diante de uma situação como essa?
É importante ressaltar o caráter público e universitário do MAC, museu que pertence à Universidade de São Paulo e cujas atividades em torno do acervo visam a extroversão, a pesquisa e o ensino. O apoio das instituições culturais, dos museus, do público em geral e da imprensa é fundamental para o museu nesse momento. É preciso enfatizar o valor cultural e artístico dessas obras para além da simples mercadoria. Aos profissionais do MAC que zelaram por elas durante todos esses anos causa profundo desconforto vê-las agora reduzidas nesses termos. ///
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