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Por que a capa da “Time” sobre Trump é uma obra subversiva de arte política

Jake Romm Publicado em: 15 de dezembro de 2016
Donald Trump fotografado por Nadav Kander na capa da revista "Time", edição Personalidade do Ano de 2016.

Donald Trump fotografado por Nadav Kander na capa da revista Time, edição Personalidade do Ano de 2016. A legenda diz: “Donald Trump, presidente dos Estados Divididos da América”.

Artigo originalmente publicado em inglês no site Forward.com em 8/12/2016. Traduzido com permissão.

 

Ano após ano, o anúncio da “Personalidade do Ano” da revista Time é grosseiramente mal interpretado. A Time é clara quanto a seu único critério de seleção: “a pessoa que exerceu mais influência, para o bem ou para o mal, sobre os acontecimentos do ano”. Mesmo assim, uma simples busca no Twitter revela um sem-número de pessoas que parecem acreditar que a escolha da “Personalidade do Ano” equivale a um endosso. Entre os vencedores até aqui estão Joseph Stalin (1939, 1942), o aiatolá Khomeini (1979), Adolf Hitler (1938) e outras personalidades que acredito poder afirmar com segurança que não contam com o endosso da equipe da Time.

Este ano, não deveria causar nenhuma surpresa o fato de o presidente eleito Donald Trump ser escolhido para agraciar a capa da edição anual da Time (retratado pelo fotógrafo judeu Nadav Kander). “Para o bem ou para o mal”, Trump, durante sua campanha e agora, depois de eleito, sem dúvida foi uma das pessoas que mais influenciaram os acontecimentos do ano. Podemos encontrar algumas pistas sobre as impressões da Time sobre o assunto – “para o bem ou para o mal?” – analisando a imagem escolhida para capa da edição. As determinações da Time com respeito à maneira de fotografar Trump revelam um campo de referências nuançado, com diversas camadas, que fazem da imagem, na opinião deste cronista, uma das grandes capas da revista.

Para desconstruir a imagem, focalizemos três elementos-chave (deixando de lado o posicionamento do “M” de “Time”, que dá a impressão de que Trump tem chifres vermelhos): a cor, a pose e a cadeira.

 

A cor

Observem como as cores estão ligeiramente lavadas, ligeiramente silenciadas, suaves. A paleta cria o que poderíamos chamar de efeito vintage. A nitidez e o detalhamento da imagem revelam a contemporaneidade da foto, mas a cor sugere um tipo mais antigo de filme, no caso o Kodachrome. O Kodachrome, filme produzido pela Kodak desde o início da década de 1900 e que teve recentemente sua produção descontinuada, tinha a função de operar a reprodução acurada das cores. Alcançou imensa popularidade entre o fim da década de 1930 e a década de 1970, e seu aspecto peculiar define nosso conceito visual comum de nostalgia.

Ao reproduzir uma paleta de cores Kodachrome, a capa da Time nos leva a reimaginar a capa como se ela fosse uma imagem da era em que o Kodachrome era muito popular. (Você é que sabe para onde vai sua mente quando pensa nos líderes da era da Segunda Guerra Mundial, da segregação e da Guerra Fria.) Esse deslocamento visual-temporal espelha, em certo sentido, uma série de tendências que impulsionaram a ascensão de Trump. A campanha de Trump se baseou em políticas e atitudes regressivas – antiproteção do meio ambiente, antiaborto, pró-carbono etc. Foi uma eleição voltada não apenas para políticas regressivas, como também para valores tradicionais (definidos basicamente pela direita cristã), para a nostalgia pela grandeza e pela segurança do país, para a nostalgia por um mundo pré-globalizado.

 

A pose

A pose de Trump pode ser percebida como uma intervenção subversiva em uma pose tradicional em retratos de poderosos (para outra versão esplendidamente subversiva da pose, veja-se o retrato feito por Delaroche de um Napoleão vencido – embora o tom desse retrato seja elegíaco, por oposição a maquinador).

Paul Delaroche, Napoleão I em Fontainebleau, 31 de março de 1814 © Le Gall, 1990/Musée de l’Armée, Paris.

As pinturas de monarcas sentados podem ser vistas como imbuídas de duas funções estéticas – operar a associação entre o personagem sentado e o trono, dando, desse modo, solidez à metonímia, e reforçar o sentimento de servidão no observador. O observador é forçado a aproximar-se do monarca; o monarca não se levanta com a chegada do observador.

Em nossos tempos pós-monárquicos, o poder do trono está praticamente extinto, mas o poder de um personagem sentado permanece. A cadeira em si é desimportante, o que importa é o ato de sentar. Quando incluímos um retrato nessa tradição, a cadeira assume o papel de trono e o personagem sentado o papel de rei (ou rainha) – o efeito visual é o mesmo.

Considerem esta imagem do Lincoln Memorial (para mais referências, ver imagens de Vladimir Putin e LL Cool J). Assim como as outras duas imagens, ela é uma versão exagerada da pose tradicional. Vemos nosso personagem de frente, porém, o que é mais importante, vemos o personagem de baixo. O ângulo nos obriga a olhar para cima para o personagem, o que, por sua vez, cria a impressão de que o personagem está olhando para baixo ao olhar para nós. Essa pose e ângulo, com o observador aparentemente (e literalmente, no caso do Lincoln Memorial) aos pés do retratado, fazem o personagem parecer dominador, poderoso, julgador.

Mas basta girar a imagem para que de repente tenhamos um conjunto totalmente novo de conotações. Na capa da Time, em vez de ver a cabeça de Trump de frente e de baixo, nós o vemos sentado, de trás e praticamente à altura do olhar. A relação de poder se apresenta de forma inteiramente diferente.

O giro de Trump em direção à câmera cria um tom mais conspiratório que julgador. Há duas imagens em jogo aqui – a imagem de poder imaginada, tomada de frente, e a imagem real, na qual Trump parece dirigir uma piscadela cúmplice ao observador, como se dissesse: olhem só como nós tapeamos aqueles idiotas que estão lá na frente (tanto Trump como o observador olham de cima para baixo para os que estão lá na frente). Ao subverter a dinâmica típica de poder, a Time, em certo sentido, envolve o observador na eleição de Trump, antes de mais nada no fato de ele aparecer na capa da revista.

Em outra camada, boa parte do que sabemos a respeito de Donald Trump foi reunido a partir de imagens. Ele é um mestre do branding, uma estrela de reality shows televisivos, há muito uma das personalidades prediletas de revistas e jornais de fofocas. Ao optar por não fotografar Trump de frente, a capa da Time quase nos oferece uma visão “de bastidores” do homem que passou uma parte tão importante de seu tempo diante das câmeras – realçando o tom conspirativo e a cumplicidade do observador. A natureza altamente posada e processada da fotografia cria ainda uma outra camada de ironia.

Por fim, registremos a sombra nefasta à espreita no plano de fundo. Trata-se de um pequeno detalhe, mas importante e inteligente. Assim como essa imagem nos oferece dois pontos de vista teóricos, ela também nos oferece dois Trumps – Trump o presidente eleito e o espectro de Trump o presidente, uma assombração nos bastidores, esperando o momento de se corporificar.

 

A cadeira

O golpe de mestre, o detalhe que completa a imagem toda, é a cadeira. Trump está sentado no que parece ser uma cadeira vintage “Luís XV” (que recebeu esse nome por ter sido concebida na França na época do reinado de Luís XV, em meados do século 18). A cadeira não apenas alude aos reinados aparatosos dos reis franceses logo antes da revolução, como também, mais especificamente, ao reinado de Luís XV, o qual, segundo o historiador Norman Davies, “estava mais interessado em caçar mulheres e cervos do que em governar o país” e cujo reinado se caracterizou pela “estagnação debilitadora”, as “guerras recorrentes” e a “crise financeira permanente” (soa familiar?).

A genialidade da cadeira, porém, deve-se mais ao jogo visual que ao histórico. Trata-se de um símbolo de mau gosto de riqueza e status, mas se observarem seu canto superior direito verão um rasgão no estofamento, representando a própria imagem partida de Trump. Por trás das fanfarronadas, por trás das exibições cintilantes de riqueza, por trás das promessas reluzentes, temos a dívida, a falta de gosto, a demagogia, o racismo, a falta de experiência ou conhecimento de governo (tudo isso fatos que infelizmente já conhecemos muito bem). Uma vez que percebemos o rasgão, as nódoas na madeira entram em foco, as rachaduras na maquiagem de Trump, o cabelo ralo, a mancha no canto esquerdo do assento, embaixo – e toda a ilusão de grandiosidade começa a desmoronar. A capa é menos a imagem de um homem no poder que a imagem congelada de um líder, e de seu país, em estado de decadência. A sombra fantasmagórica se projeta no tempo, aqui, ao sugerir um esplendor que já passou, se é que algum dia existiu mesmo.

Vistos em conjunto, esses elementos oferecem um retrato profundo de angústia em relação aos anos que estão por vir. Temos Trump implicitamente colocado em meados da década de 1900 (consultando os arquivos de capas da revista Time, não encontramos imagens que se assemelhem a essa capa, exceto a que vemos abaixo [uma comparação puramente visual]). Temos uma sugestão do lado oculto, sórdido, ardiloso do poder. Temos a aparência de riqueza decadente, que, como O retrato de Dorian Gray, sugere mais que uma simples deterioração física.

Como fotografia, é um feito raro. Como capa, é uma declaração.///

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Adolf Hitler como “Homem do Ano”, revista Time, janeiro de 1939.

tradução de Heloisa Jahn

 

Jake Romm é repórter de cultura do Forward.

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