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Entre criação, documento e edição: a fotografia nas artes negras

Alexandre Araujo Bispo Publicado em: 4 de março de 2020

Foto da série Kamafêu de Oxossi, de Silvana Mendes. Cortesia da artista.

A noção de “artes negras” e “arte afro-brasileira” completa 116 anos em 2020. O marcador? As bellas-artes nos colonos pretos no Brazil: a esculptura (1904), texto do médico racista Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), que se por um lado reconheceu tratar-se de arte o conjunto de esculturas presentes em seu artigo, delimitou também a ligação desta com a religiosidade como seu traço distintivo. Durante esse tempo, porém, a arte afro-brasileira foi transformando seu vínculo e função inicial de expressar a religiosidade e alargou-se a ponto de hoje reconhecermos sob essa denominação um sem número de autores negros, importando pouco se abordam, mantém ou remetem sua poética às questões do sagrado afro-brasileiro.  É esse alargamento que nos permite olhar – Emanoel Araújo (1940) foi fundamental na difusão dessa pedagogia – para criadores dos séculos 18, 19 e 20 identificando quem negro foi, passo importante para revisar a história da arte no Brasil, ainda cativa dos modelos euro-norte americanos de atribuição de valor.

A identificação e publicização de autorias negras também ajuda a desnudar o racismo latente na escrita da história no país que foi, gradativamente, invisibilizando a cor preta de seus criadores, sobretudo pelo retrato fotográfico, a televisão e a publicidade. A pressão dos movimentos negros para que o escritor Machado de Assis (1839-1908) seja apresentado em toda sua pretitude, ou ainda, a invenção de retratos para lideranças negras do passado – João de Deus Nascimento e Zeferina (2018) – cuja aparência não chegou até o presente, como propõe o artista Dalton Paula (1982), são aspectos desse ato de reconhecimento também no plano da cultura visual, hoje, em processo de revisão crítica.

Se no campo da pintura, escultura, arquitetura, mobiliário e joalheria há historicamente uma presença de negros a tal ponto de não ser possível fazer uma história da arte brasileira justa e honesta sem passar por eles – Manuel Raimundo Querino (1851-1923) é, talvez, o primeiro a empreender esse tipo de abordagem, todavia não identifique nas biografias que faz quem era negro –, o mesmo não acontece com a fotografia. Comparada às outras formas expressivas, ela não apenas demorou a chegar às mãos de pessoas negras, mas seus primeiros criadores sequer têm, ainda hoje, a visibilidade que merecem por suas contribuições à cultura visual fotográfica no país.

Foto da série Umbanda, de Jaque Rodrigues. Cortesia da artista.

Foi preciso mais de 100 anos desde a invenção da imagem-máquina, na década de 1830, para que os primeiros fotógrafos do segmento negro da população brasileira aparecessem em cena. Antes deles a pessoa negra figurou predominantemente como tema: trabalhador escravizado em áreas rurais e urbanas, pobre, marginal, representante da cultura popular e do folclore. Nesse perímetro temático sua imagem fotográfica serviu, como ensinam as obras que utilizam fotografias de acervos documentais Assentamento (2014), ¿História Natural? (2016) e A permanência das estruturas (2017), de Rosana Paulino (1967), para sustentar a crença na falsa tese da inferioridade natural da pessoa negra encobrindo o problema da segregação racial. Essa tese segue fazendo suas vítimas no mercado de trabalho, no ambiente universitário, na circulação de pessoas em espaços públicos, na presença minoritária de negros em posições decisórias entre outros lugares na política, nas instituições culturais, etc.

Ao que parece, é só a partir da segunda metade do século 20 que temos os primeiros nomes de uma narrativa que precisa ser mais explorada. Entre os pioneiros: Walter Firmo (1937-), Wagner Celestino (1952-), Bauer Sá (1950-), Lita Cerqueira (1952), Eustáquio Neves (1955-), Luiz Paulo Lima (1955-) e Duda Firmo (1967-), filho de Walter Firmo. Desse grupo, Eustáquio Neves é quem circula mais no circuito da arte contemporânea: sua série Arturos (1993/94) revela a potência visual da articulação entre memória, tempo comunitário, genealogias familiares, elementos que se justapõem pelo fio narrativo da ancestralidade negra em uma comunidade de Minas Gerais. Fotografias de Neves, Walter Firmo e Bauer Sá estiveram na exposição Histórias Afro-Atlânticas (2018), que afirmou as singularidades da imagem fotográfica no tratamento dos assuntos de interesse da enorme mostra.

Pontes sobre Abismos #24, de Aline Motta, 2017. Cortesia da artista.

O fato de aparentemente não “existirem” fotógrafos profissionais negros até a década de 1950 pode ser atribuído aos custos para a prática do tradicional formato analógico e todo aparato necessário para a produção de imagens de natureza físico-química. Com a “popularização” da câmera digital combinada à ampliação do acesso à internet a partir dos anos 2000, aumenta o número de fotógrafos, embora apenas nos últimos quatro ou cinco anos se possa ver mais facilmente seus trabalhos. Se antes, com a fotografia analógica, os criadores negros estiveram, digamos, interditados do acesso à prática do ofício – ainda que já fossem consumidores desse bem visual desde a segunda metade do século 19, como mostram os retratos feitos por Militão Augusto de Azevedo (1837-1908) –, o aparecimento do equipamento digital sozinho não explica a emergência de novos artistas. Outros fatores, como maior capacidade de compra no período 2003-2014, o financiamento público de cursos universitários, a política de cotas nas universidades, a oferta de cursos livres, palestras, workshops na área, fomento público a exposições e prêmios tem permitido à nova geração de artistas usarem mais a fotografia como forma de comunicarem opiniões, visões e ideias.

A internet é, talvez, a principal plataforma de difusão dessa produção, de maneira que é possível encontrar vários artistas em redes de compartilhamento de conteúdo como o Instagram, além de páginas personalizadas como blogs ou sites. É importante assinalar que, apesar da quantidade de novos criadores, a grande maioria ainda participa pouco de exposições em instituições culturais públicas ou privadas. Nesse sentido, retirar as imagens do meio digital e transpô-las para o espaço físico de uma galeria ou museu na forma de instalações, séries, grandes formatos fotográficos é algo bastante restrito.

Adotada por vários artistas ora como linguagem principal ou combinada a outros meios como colagem, vídeo, pintura, escultura e objeto muitas imagens interpelam criticamente questões como invisibilização e silenciamento, caras às minorias políticas. Nem todas são imagens criadas pelos artistas, algumas são apropriações – algo recorrente na arte contemporânea –, ao passo que outras resultam do diálogo do artista com fotógrafos que, sob sua orientação fazem, por exemplo, os registros de ações pensadas para se tornarem fotografias. Essa negociação é reveladora de como a fotografia como arte contemporânea tem sentido ampliado e não se restringe ao ato de manipular a câmera. Tendo em vista esse quadro anterior, destaco alguns artistas e os agrupo em função dos temas que encontrei em algumas obras: o sagrado afro-brasileiro, memórias e arquivos e corpo e identidade.

 

Sagrado afro-brasileiro

No primeiro grupo estão artistas que se interessam pelo sagrado afro-brasileiro que está, como vimos acima, na origem da definição do que seria uma arte negra. Alguns dos seus resultados são compartilhados com os adeptos das casas de candomblé, umbanda, quilombos ou grupos de cultura popular atravessados pela relação que mantém com a espiritualidade. Outros trabalhos parecem destinados a extrapolar o circuito religioso, o que não é novidade nesse campo, a exemplo de Mestre Didi (1917-2013), que produzia para dentro e fora do candomblé. Em São Paulo merece destaque o trabalho de Roger Cipó (1992), no qual figuram cenas do cotidiano religioso, da sociabilidade, a maternidade ou ritos específicos como saídas de iaô, uma das primeiras etapas da iniciação à vida religiosa no candomblé. No Ceará, na região do Crato, Jaqueline Barbosa Rodrigues (1989) olha para a cena da umbanda local com o cuidado, ao contrário de Cipó, em não mostrar rostos, atitude decorrente da intolerância religiosa que tem se esparramado também por outras regiões do país. A maranhense Silvana Mendes (1991) registra cenas e identifica pessoas ligadas ao terreiro Kamafêu de Oxóssi. Além do estilo mais acentuadamente documental, há obras que propõem sínteses líricas inspiradas nas tradições e modos de fazer característicos do candomblé. Assim, ebó arte é um dos nomes que o artista baiano Ayrson Heráclito (1968) dá às características estruturais de sua poética. O artista traz para os seus trabalhos palavras, objetos e substâncias de uso ritual como o azeite de dendê (epô), a pipoca (buruburu), cuja fabulação criativa resulta em imagens como Yaô da série Banhistas (2007). O artista paulistano Moisés Patrício (1984) inspira-se na multiplicidade de fazeres manuais do candomblé que dão origem à série Aceita? (2013-2020). Para Patrício a fotografia é o fim de um processo que começa quando ele habita momentaneamente lugares e relaciona-se com coisas naturais ou construídas neles encontradas. Uma das ideias da série é tanto discutir o fazer pintura com fotografia – composição, cor, equilíbrio, contraste – quanto refletir sobre a redução social da pessoa negra às tarefas manuais e, mais ainda, lembrar que a arte é pensamento, teoria, ponto de vista.

 

Memórias e trabalho de arquivo

Outro assunto que aparece na obra de alguns artistas é a memória e uma forma material específica dos documentos visuais de arquivos. Nessa corrente, Aline Motta, Rosana Paulino, Gsé Silva, Rafael RG, Renata Felinto, Rodrigo Lopes e Marcel Diogo estão entre aqueles que repõem criticamente em circulação imagens do passado, uns com mais intensidade que outros. Essas imagens provêm tanto do universo privado e doméstico deles – álbuns fotográficos, monóculos, retratos de parede, retratos avulsos 3×4 – quanto de acervos documentais públicos. Parede de memória (1996-2016), da paulistana Rosana Paulino, é uma obra reveladora do quanto o sagrado pode incorporar-se às fotografias de familiares substituindo a religião enquanto forma institucional de expressão de fé, crença e culto. Aline Motta (1974), artista fluminense que vive em São Paulo, vem fazendo uma série de cruzamentos de fontes documentais públicas e privadas. Um dos seus objetivos é refletir e narrar histórias submersas em silêncio e opacidade sobre sua família, atravessadas por temas como genealogia, parentesco, gênero, mestiçagem, deslocamentos afro-atlânticos e processos da formação – violenta – das famílias brasileiras. Esses assuntos aparecem em trabalhos como Filha Natural (2018), Pontes sobre abismos (2017), Se o mar tivesse varandas (2017) ou Outros fundamentos (2017-2019).

 

Corpo: identidades múltiplas

Há uma tendência entre diversos artistas de realizar trabalhos que tematizam seus próprios corpos ou os corpos dos outros. Nesse sentido, a fotografia aparece como um meio potente para discutir os constrangimentos que o racismo impõe ao estabelecer e manter estereótipos. Nesse segmento estão nomes como: Dalton Paula, Peter de Brito, Marcel Diogo, Herberth Sobral, Paulo Nazareth, Renata Felinto, Sérgio Adriano. O paulistano Peter de Brito (1967) cria autorretratos, sobretudo coloridos, da personagem Darcy Dias. Homem e mulher, negra e branco, Dias aparece como uma paródia de revistas de moda, arte, ciência e comportamento, podendo também figurar como modelo para a marca de perfumes e acessórios Kitschick, (2007).

Da enorme variedade de modos de fazer característicos de sua produção, o artista mineiro Paulo Nazareth (1976) usa a fotografia em uma multiplicidade de situações que lhe permitem questionar concepções essencializadoras sobre o que é, pode ou deve fazer uma pessoa não branca quando sai em deambulação pelo planeta terra. Qual conduta tomar? Como se comportar? Constrangimentos ao ultrapassar fronteiras – devido a suas origens indígena-italiana-negra – aparecem em algumas de suas imagens. Nelas, sozinho ou acompanhado das pessoas que conhece enquanto caminha, ele/elas seguram placas rústicas de papelão com frases escritas em duas ou três línguas: Você está satisfeito com este nego? (2011) ou Qual é a cor da minha pele? (2014). O goiano Dalton Paula explora a fotografia como parceira de trabalho, dando os créditos a quem registra a imagem que ele idealizou previamente. Obras fotográficas como A promessa P e A promessa B (2012) ou Cor da pele (2012), foram feitas em diálogo com Heloá Fernandes, ao passo que outras séries têm outros fotógrafos. Trata-se, no caso de Dalton, de uma exigência de qualidade que Paulo Nazareth, pela própria natureza de seu trabalho dispensa: desfoque, borrões ou definição “ruim” são indicadores das condições sócio-ambientais que o artista enfrenta em sua produção.

Apesar do aumento de artistas negros/afro-brasileiros que trabalham com fotografia – criando, documentando ou editando imagens – é preciso lembrar das vulnerabilidades que afetam diretamente artistas e obras produzidas por criadores do segmento negro. Daqui para frente eles devem estar presentes em mais exposições e suas obras precisam ser compradas, integradas a acervos particulares e públicos, figurarem em catálogos e se tornarem objeto de estudos críticos. Feito isso haveremos de ter um cenário muito mais rico e democrático para as artes visuais produzidas no Brasil e, consequentemente, para a solução de conflitos decorrentes das hierarquias raciais há muito vigentes no país. ///

 

Alexandre Araujo Bispo (1973) é doutor em antropologia social, curador, crítico e educador independente.

 

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