Por trás da foto: Eder Chiodetto conta como foi fotografar a escritora Hilda Hilst em sua mesa de trabalho
Publicado em: 25 de julho de 2018
Em meados de 1997…
– Olá, bom dia. Posso falar com a Hilda? Aqui é um fotógrafo da Folha de S.Paulo. Hilda? Tudo bem?
– Tudo bem nada, meu filho. Quando um fotógrafo me liga com 50 anos de atraso, não está nada bem (risada alta e tosse intercaladas). Mas porque a Folha está me ligando? Querem saber se a louca morreu? (mais tosses).
– …Hilda, estou fazendo uma reportagem na qual entrevisto escritores e os fotografo no lugar onde eles escrevem. Sou fã da sua literatura e queria muito poder encontrá-la na Casa do Sol.
– Me fotografar? Nem pensar. Quando eu era bela e jovem as pessoas achavam que mulher bonita não podia ter talento. Agora que estou velha e feia todos querem me fotografar…
– Mas… mas…
– Você disse que gosta dos meus textos. Que livro você leu?
– Acabei de ler Fluxo-Floema.
– Tá certo. É tão raro conhecer um leitor meu… Pode vir. Mas venha sem a câmera fotográfica, ok? Ah, e traga uma garrafa de vinho do Porto.
Dias depois, chego, nervoso, à Casa do Sol. A câmera interditada fica escondida no banco de trás do carro da reportagem. Uns 30 cachorros me recebem efusivos sob o arco da entrada da casa. Uma empregada me acomoda na sala. Observo detalhes. A essa altura já estava fascinado pelos ambientes dos escritores. Fascinação que cinco anos depois me levaria a publicar o livro O Lugar do Escritor pela Cosac Naify. Olho para o relógio de parede. Ambos ponteiros estão quebrados e entre os doze algarismos leio a frase: “É mais tarde do que supões”. Fico sobressaltado e levo um susto quando sinto uma baforada de cigarro atrás de mim.
– Meu filho, como você é alto! Pressa de chegar no céu? Sente aqui nessa cadeira para eu não me sentir anã.
As três horas que se passaram a partir desse ponto até hoje se confundem em minha mente num mosaico de realidades inventadas e ficções documentais. Fizemos uma sessão de “transcomunicação” com o pai dela por intermédio de um rádio fora de estação.
– Ouviu? Você está ouvindo?
Interpelava a escritora, enquanto enchia a taça dela de vinho do Porto e reabastecia a minha com não mais que um dedo… Depois, contou-me que naqueles dias tinha horrorizado duas professorinhas chatas de Campinas que foram até a Casa do Sol querendo conhecer a famosa escritora.
– As senhoras fazem sexo oral com seus maridos? Eu tenho um problema no céu da boca, nunca encaixou bem, sabe? Me contem como é…
Rimos muito imaginando as professoras batendo em retirada. Aproveitei então o momento bem humorado e contei:
– Hilda, eu não te obedeci. Estou com a câmera fotográfica. Você se diz feia, mas eu acho essa vaidade uma tolice. E no mais, te acho linda. Quero fotografá-la!
– Ah, como você é danado. E ainda por cima alto assim… Sempre gostei de homens altos. Papai era alto também. Ok, vou deixar, mas antes… Vem cá comigo.
No quarto de dormir Hilda abre um baú repleto de roupas antigas. Dali retira uma echarpe, um chapéu e uns óculos.
– Vou me fantasiar.
E então começa a abrir várias gavetas. Temendo que ela se esconda em demasia com esses acessórios, pergunto o que mais ela quer.
– Eu adoraria colocar um bigode! Mas acho que não o tenho mais, pena.
Toda paramentada, Hilda me conduziu ao seu quarto de escrever. Sentada em sua mesa, na contraluz, finalmente posou para essa fotografia, não sem antes colocar uma luminária na frente de seu rosto. Gostei do clima de mistério. Deixei a luz que vinha pela janela estourar e regulei o fotômetro para a luz do seu rosto. Terminamos a rápida sessão com ela lendo para mim e para os cachorros em volta, uma frase do filósofo existencialista Soren Kierkegaard: “Ousar é perder o equilíbrio momentaneamente. Não ousar é perder-se”.///
Eder Chiodetto é mestre em Comunicação e Artes pela ECA/USP, jornalista, fotógrafo, curador independente e autor dos livros O Lugar do Escritor (Cosac Naify), Geração 00: A Nova Fotografia Brasileira (Edições Sesc) e Curadoria em Fotografia: da pesquisa à exposição (Ateliê Fotô/Funarte), entre vários outros.
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