Larry Sultan e o avesso da mitologia familiar no fotolivro Fotos de casa
Publicado em: 26 de junho de 2017Para que serve a fotografia? Na primeira ocasião em que Irving e Jean Sultan aparecem juntos em Fotos de casa (Pictures from home, em inglês), os vemos abraçados e dentro de uma fotografia. Numa fotografia dentro de outra, para dizer a verdade. Em moldura dourada sobre mesa branca, reduzidos à escala de pequenos artigos de cabeceira, lembram, de relance, figurinhas de bolo de noiva. Olhando bem, é um casal já saindo da meia-idade em traje de gala, risonho, talvez nos anos Nixon. Ela de branco, ele de smoking. Se reparar bem, poderá ver que falta o pé esquerdo de Jean: escondido sob o longo vestido, assume por instantes a pose que irá se tornar sua segunda natureza (“como uma modelo calçando um par de saltos muito alto, invisível“). A imagem parece ter sido feita em 120mm, a julgar pelo formato de 6 × 7. Provavelmente uma daquelas festas corporativas anuais para a qual se contrata um fotógrafo profissional, e seu inevitável flash. E como estavam magníficos, os Sultan. Prósperos. Irradiavam êxito; autoconfiança; “americanidade”. Aqueles 1/125s fixados em gelatina são a personificação espontânea do casamento de sucesso. A família modelo. É para isso que serve a fotografia.
Mas para que serve, realmente, a fotografia?
Veja o par de óculos sobre a mesa; o inalador do descongestionante nasal; o medidor de pressão arterial; os collants revolvidos no interior da gaveta entreaberta; o copo no qual alguém acaba de tomar um gole de água; veja o Valium implícito que Larry, segundo filho nascido de cesariana (aquele que, para desapontamento dos Sultan, seguiu a fotografia e não a advocacia, abraçando o malogrado destino do baby boomer desenquadrado), acaba de subtrair da gaveta da mãe. Constatando em silêncio a imagem profissional sobre a cabeceira dos pais, pesa-lhe o contraste entre estes símbolos domésticos da finitude e aquele instantâneo estilo Frank Sinatra. Em cada adulto mora um pavor visceral de perder o controle sobre o modo como os outros o percebem. “Como vencer o instinto da pose?”, questiona-se Larry. No seu lugar, iria me comover um pouco a proximidade irônica (na verdade, quase cômica) entre aquela projeção pública de heroísmo e toda esta outra vida de pijama: remelenta, hipertensa, enfadonha, liberta da consciência de si. Há aqui, como em toda a obra de Sultan, um afeto pela veracidade da normalidade. Mas eis que, olhando a figura do pai alguns anos antes, o filho sente uma picada de injustiça alheia — não, raiva mesmo — pela aversão do capitalismo à velhice, pela maneira como “as corporações descartam os funcionários quando deixam de ser jovens, e como as frustrações e sentimentos de impotência decorrentes se infiltram nos laços familiares”.
Olhando o retrato dos pais sobre a cabeceira, Larry talvez não se aperceba ainda da censura reprimida que lhes dirige. São, afinal, criaturas do mesmo ambiente ideológico dentro do qual alguém como ele se vê paradoxalmente asfixiado. “Fotografar o meu pai”, explica ele, “tornou-se um modo de confrontar a minha confusão a respeito de o que significa ser um homem nesta cultura: estávamos nos anos Reagan, nos quais a imagem e a instituição da família eram usadas como símbolo inspirador pelos conservadores ressurgentes. Queria rasgar esta mitologia da família e mostrar aquilo que acontece quando nos deixamos levar por imagens de sucesso. E estava disposto a usar a minha família para provar esse ponto”.
Questionado a esse respeito, Larry Sultan observaria, no episódio 5 da série da BBC O gênio da fotografia (2007), que, tanto na esfera política como na pessoal, a fotografia é um dos mais poderosos instrumentos mitológicos. Se é para isso que serve a fotografia, ela também serve para a antimitologia. Em parte, Fotos de casa — realizado entre 1982 e 1992 na casa de seus pais, num subúrbio californiano, e mais tarde no condomínio privado onde terminariam os seus dias — critica, para não dizer renega, toda aquela concepção muito branca, muito republicana, capitalista, arrumadinha e “cristã” (se assim podemos dizer) da família norte-americana modelo; concepção que a grotesca fatalidade da presidência de Trump hoje reinvidica. Mesmo que não se interprete o momento da reedição do livro pela Mack como uma evidente declaração política, ela não poderia ter surgido em momento mais apropriado.
A forma como pulveriza esse grande mito talvez não seja a mais evidente para quem não se deixe cativar pela elegância enganadoramente clássica das imagens de Sultan. Não é o aspecto habitual de um livro de contracultura. Embora delicada e sobriamente emotiva, nenhuma das imagens deste livro é de fato tão ácida quanto o retrato dos pais sobre a mesa de cabeceira, na verdade, uma mise-en-abyme [narrativa em abismo]: um retrato dos três, unidos na incompreensão. Traz-me à cabeça certos contos de Clarice Lispector. Toda a ternura que possa existir na família Sultan já tem a sombra da incompreensão mútua e de uma hostilidade imanente.
Posicionada na abertura, esta imagem estabelece, desde logo, o conflito de visões em torno do qual todo o livro se estrutura: a saber, um conflito entre o gênero de fotografias em que os pais se sentem bem representados e as fotografias deles, de Larry, nas quais mal se reconhecem. A troca de motivos ensaiada entre pais e filho quase no fim é, quanto a isso, uma descrição exata e profunda do dificílimo jogo de cortinas, com o qual um fotógrafo se confronta com frequência quando tenta fotografar alguém para além da sua (de ambos) autoimagem.
De passagem, vale a pena notar que, para derrotar o instinto da pose, Larry Sultan recorre a um truque conhecido: a colaboração. Porém, ficamos sabendo que os seus pais não participam dessas encenações sem reclamar um pouco — especialmente Irving. (“Você parece ter um interesse em fazer-nos parecer ainda mais velhos e desesperados do que realmente nos sentimos”, protesta ele em certo momento. “Realmente, não percebo qual o seu objetivo.”) O livro constrói-se, assim, em torno de pequenas ficções baseadas no cotidiano de dois judeus americanos aposentados, cuja luta pelo sucesso é narrada por uma combinação de gravações editadas, imagens e documentos do arquivo familiar. Também digna de nota é a prosa madura de Larry Sultan. Mais do que um fotolivro, Fotos de casa é, na verdade, um romance de imagens. Romance cujo cerne o mesmo se encarrega de esclarecer logo no final do primeiro capítulo:
É difícil dizer o que me faz levar este trabalho adiante. Tem mais a ver com amor do que com sociologia, com ser uma personagem e não uma testemunha nesse drama. E no processo peculiar e atrapalhado de trabalhar nele, tudo se altera; as fronteiras são atenuadas, a minha distância esvai-se, vacila a arrogância e a ilusão da imunidade. Acordo no meio da noite, atordoado e cheio de angústia. Estes são os meus pais. Desse simples fato, tudo se segue. Apercebo-me de que, por detrás destes rolos de filme e de meia dúzia de boas imagens, das exigências do meu projeto e da minha confusão a respeito do seu significado, está o desejo de tomar a fotografia no sentido literal. Parar o tempo. Quero que os meus pais vivam para sempre.
Se, através de situações meio coreografadas, Larry Sultan revela uma face dos pais que estes não admitiriam deixar passar de outro modo, uma face liberta do instinto da pose (e de tudo o que ele implica), a exemplo do retrato sobre a cabeceira, reparemos agora no segundo aspecto interessante desse mesmo retrato: o de que aparecem abraçados em público.
Com uma exceção, já bastante perto do final, essa é a única vez em todo o livro na qual os vemos se tocarem. Pode ser que esta seja uma questão coreográfica, ou talvez não tenha sido preciso pedir-lhes que se afastassem. Como quer que seja, tal efeito de afastamento é sobretudo obtido pelo trabalho de edição. Repare-se que, da segunda imagem em diante, o contato físico entre Irving e Jean é praticamente inexistente (talvez aconteça aqui e ali, em alguns dos stills de filmes caseiros e nas fotos de álbuns família por intermédio dos quais — em papel fosco de gramatura mais leve, e estabelecendo a analogia entre o grão da impressão a partir de película e o difuso da memória — o passado assombra a velhice e adensa o livro). De imagem em imagem, opera-se, pois, um afastamento gradual entre eles; ainda que juntos, estão sempre afastados e jamais se tocam. Separam-nos campos visuais, focos de interesse, paredes, divisões, divisórias, peças de mobília, metros de carpete, enfim, 40 anos de casamento; outras vezes, ocupam zonas de sombra e luz opostas, aturando-se mutuamente com a mesma expressão com que Schmidt (a personagem de Alexander Payne imortalizada por Jack Nicholson no filme As confissões de Schmidt, de 2002) se questionava: “Quem é esta idosa vivendo em minha casa?”. Uma coisa é clara: na perspectiva do filho, Jean e Irving já não se tocam. Será que ainda se amam?
Qualquer que fosse a resposta, a estrutura de Fotos de casa emula, assim, o efeito da conjugalidade nos indivíduos. Aliás, este jogo de simetrias é levado ainda mais longe, a avaliar pela maneira distinta como, a partir de certa altura, quando um surge de costas, o outro aparece sempre de frente; se um está no enquadramento, o outro não está. O livro opõe os protagonistas de forma sistemática, procurando compreender de que maneira pode a individualidade sobreviver a um casamento de meio século. Montado em torno de simetrias e complementaridades, o seu modelo de organização é, literalmente, a relação dos pais. Não o casamento tal como estes o desejariam projetar, encarnando imagens de sucesso. Antes, o casamento tal como visto por Larry: estafado, mas solidário, sustentado na amizade, na duração, na compreensão, na monotonia, porventura no mútuo benefício, mas também na saúde, na doença etc.
Prova do alcance deste jogo de simetrias é a notória simetria entre capa e contracapa. No verso, vemos um instantâneo da fachada dianteira da casa, em 35mm, em preto e branco, com a legenda “a casa dos Sultan”, no qual, sob a luz forte do verão de 1962, vemos Jean ainda jovem diante da porta de casa, num gramado quase despido de vegetação de um subúrbio recém-construído. Na capa do livro, vemos uma imagem colorida, luxuriante, crepuscular, californiana, em médio formato, na qual Irving aparece sob luz laranja, dentro de casa, emoldurado pela arquitetura e por um jardim de hortênsias e buganvílias. Uma visão do paraíso, que é a primeira imagem do livro, e cuja paleta de cores marcante se conecta inequivocamente com o díptico com que o livro termina. Ela, de frente, numa piscina, de roupa de banho listrada, rimando com o jardim atrás; ele, de costas, de suéter laranja, deitado de bruços sobre a proa de um barco de passeio, como se medindo a distância até o mundo dos mortos. Talvez seja um sonho induzido pelo Valium, este em que um filho reconciliado se transforma em um Caronte fotográfico [o barqueiro de Hades, da mitologia grega, responsável por fazer a travessia das almas para o mundo dos mortos], conduzindo o barco que levará os três a uma deriva indefinida. E é realmente para isso e apenas para isso que serve a fotografia.
Larry Sultan faleceu em casa, na Califórnia, em 2009, apenas cinco meses após a morte do seu pai.///
Pictures from home
Larry Sultan
Editora Mack – 2017
196 pp.
23 x 27 cm
Humberto Brito leciona Literatura Portuguesa e Brasileira e é pesquisador do Instituto de Filosofia da Nova e do Programa em Teoria da Literatura, em Lisboa. Fundou e dirige a revista Forma de vida. É também fotógrafo e escreve sobre fotografia para o jornal online Observador.
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